A Bailarina, Romance, Epílogo
Capítulo XIX
O vôo de regresso à cidade natal tinha saído pontualmente de Blumenau às 8h40m. Os integrantes da equipe de Afonso haviam chegado ao aeroporto na hora, apesar de toda a movimentação da madrugada, e o vôo não sofrera atraso. Coincidindo talvez com os interesses e preferências das pessoas do grupo, a Afonso e seus assistentes couberam os assentos da frente e a Ingrid e suas alunas os do fundo do avião, ficando os do meio com as bailarinas titulares de Afonso – Telma e Andreza entre elas. Praticamente todos vieram dormindo, até mesmo Marluce. Exceção feita apenas à Ingrid, que achava que alguma coisa mais tinha acabado, junto com o fim daquela excursão.
Cerca de duas horas e dez minutos depois, já no saguão do aeroporto da cidade, Marluce corria para o abraço dos pais, que a esperavam provavelmente desde a hora em que o avião saíra de Blumenau. Presença aquela reconfortante. Ingrid aproximou-se dos três depois e Vilma seguia-a, conversando pelo celular com alguém. Érica e Camila tinham ido ao banheiro.
-Como está, professora Ingrid? Já sei que foi um sucesso a temporada lá em Blumenau, disse a mãe de Marluce.
-Foi, sim, D. Antônia. Tudo correu muito bem. Sua filha está vindo consagrada.
-Bondade dela, mãe. Vilma, Érica e até Camila, que também dançou, brilharam igualmente. Assim como as bailarinas titulares de Afonso.
-Por sinal, por onde ele anda?, indagou Antônia. Gostaria de conhecê-lo.
-Já foi, informou Ingrid. Alegou compromissos. Falou comigo rapidamente.
O grupo todo praticamente se dispersou logo após o check out. Afonso e seus assistentes saíram apressados na frente, despedindo-se apenas de Ingrid. Fingiram não ver Marluce correndo para o abraço dos pais. Telma e Andreza nem chegaram a se despedir direito, ignorando também o resto do pessoal. Parecia nada ter acontecido entre elas na noite anterior. Que de resto parecia não ter existido. As demais titulares de Afonso também saíram apressadas, após rápidas e furtivas despedidas. Ficaram um pouco mais no aeroporto apenas Ingrid e suas alunas.
-Acabei de falar sabem com quem?, anunciou Vilma. Bom dia, Seu Ezequiel. Bom dia, D. Antônia. Esqueci de cumprimentá-los. Acabei de falar com Marcel.
-Ah, é? E como ele está, indagou Ingrid.
-Está bem. Disse que depois nos conta tudo. Está na casa de uns tios em Curitiba.
Marluce apressou-se em se despedir, alegando cansaço. Temia que, com o prolongamento da conversa, sua mãe, pelo menos, ficasse sabendo do desaparecimento repentino de um dos integrantes do grupo. Lembrou-se, contudo, de sugerir a Ingrid que ligasse para Eleonora. Iria fazê-la feliz. Deixou um beijo para Érica e Camila, que lá no fundo do saguão saíam do banheiro, e cumprimentou rapidamente as mães das duas que vinham se aproximando. Sumiu depois com seus pais, dirigindo-se ao estacionamento. Ingrid notou, ao se despedir da aluna, a frigidez de seus movimentos. Sabia que a partir dali teria que lutar bastante para não ficar cada vez mais decepcionada ou aborrecida.
Conforme combinaram por telefone, na ligação feita ainda do aeroporto, por sugestão de Marluce, Ingrid chegava à casa de Eleonora por volta de seis e meia. Alegou cansaço por não ter ido visitá-la assim que deixou o aeroporto. A recepção foi calorosa. A visita é que não fazia jus. Ingrid disfarçava como podia os sinais de preocupação.
-Como está bonita!, disse com gosto Eleonora, sem se preocupar com a presença de sua mãe. Aproveitou bastante?
-Foi bom. Visitamos alguns lugares bonitos, fizemos compras. O hotel era uma maravilha. Correu tudo bem. Trouxe essas duas lembranças.
-Puxa, legal! Muito obrigado. E no teatro, como foi?
-Marluce foi muito aplaudida. O grupo todo, aliás. Ontem a platéia delirou ao final do espetáculo. Dava gosto de ver. Tiveram que voltar várias vezes após se fecharem as cortinas.
-Não houve nada demais? Você não parece assim tão animada.
-Não, nada. É que estou um pouco cansada. A viagem até que é curta, mas tivemos que acordar cedo hoje. Fomos dormir muito tarde ontem.
-A esticada habitual. E eu não sei?
-Nem tanto. Mas, é claro, não podíamos deixar de celebrar.
Ingrid não conseguiu permanecer na casa de Eleonora por mais de duas horas. Retirou-se logo após o jantar, sem que as duas tivessem tempo para ficarem sozinhas. O que não passou despercebido por Eleonora. A cobrança ficaria para o dia seguinte.
Ingrid não tivera ânimo para retirar a poeira dos móveis. Hélida que se encarregasse disso no outro dia. Depois que chegou do hotel, arrumou suas coisas e passou o resto do dia, até a hora de ir à casa de Eleonora, pensando em ligar para Marluce.
Foi a primeira coisa que fez após chegar da casa de Eleonora à noite.
-Ela dormiu cedo, professora. Parecia bem cansada, disse a mãe de Marluce.
-Ah, está bem. Eu também vou dormir logo. Foi tudo muito estafante. Pode falar com ela que ligo amanhã?
-Claro, professora.
No momento em que essa ligação acontecia, Marluce, que não dormia, comentava com seu pai as fotos que conseguira em Blumenau com a câmera digital que ele lhe dera. Ela, ainda durante o almoço, havia instruído sua mãe no sentido de não lhe passar ligações de Ingrid. Para a surpresa dos pais, notadamente a da mãe, decidira abandonar o balé e se dedicar inteiramente ao ingresso numa faculdade de medicina. As explicações seriam dadas ao longo do tempo. Por hora bastava que eles entendessem que, excetuando-se a beleza da cidade e as acomodações do hotel, não gostara de muitas coisas que tinha visto em Blumenau.
-Mas, filha, logo agora que você está quase a um passo de ser reconhecida com uma grande bailarina de fato, capaz de aparecer em grandes jornais e revistas do ramo?
-Mãe, pode parecer pretensioso, mas o primeiro reconhecimento de mim quem faz sou eu mesma.
Foi uma outra ocasião em que Antônia não se sentiu animada a prosseguir com o diálogo. Esse temperamento arredio e marcante deve estar baseado nas coisas que essa menina lê. E o pior é que não dá nem pra contrariar. O que quase sempre não adianta.
-E nós, D. Marluce?, ironizou a mãe.
-Em vocês presto muita atenção, respondeu a filha.
Ingrid ligou no dia seguinte e em quase todos os outros quinze dias que se sucederam. Não foi atendida por Marluce, que dera orientação à mãe para dizer que não estava em casa. Antônia ainda tentou obter da filha mais alguma explicação. Não conseguiu mais do que a alegação de que o ambiente artístico podia ser tão sórdido e belo quanto mundano. Tentou argumentar com a filha, permitindo-se alguma incursão em terreno que não lhe agradava, que tais características podiam estar presentes nas mais variadas atividades profissionais.
-Mas não quando se procura realizar essa atividade com a maior profundidade a que podemos chegar em termos de emoção.
Mais uma vez Antônia decidiu não prosseguir. Era melhor mesmo, como dizia Ezequiel, que Marluce se habituasse a tomar decisões que influíssem diretamente em sua vida, sem que fosse imprescindível a interferência dos pais.
Uma semana depois do regresso de Blumenau, Ingrid soube por Vilma, com riqueza de detalhes, a razão do desaparecimento de Marcel. Sem qualquer contacto com Marluce, que não tinha aparecido nem para dizer que abandonaria o curso, incumbência que deixara a cargo da mãe, Ingrid viu seu desespero crescer em função do afastamento da aluna. Tentou então, sem sucesso, o contacto por telefone durante toda a semana seguinte. Queria dizer-lhe que absolutamente não tinha importância o que tinha acontecido entre ela e Afonso. Que não era em hipótese alguma decepcionante. Que ela teria toda a ajuda do mundo para a superação do desgaste emocional. Que ela não deveria abandonar a brilhante carreira que se iniciava, etc. Que, no mínimo, ela lhe desse a chance de continuarem amigas.
Ingrid levou mais de três meses até desistir da procura por Marluce. O que lhe custara o afastamento de Eleonora, que não pôde ser levado em conta pela professora em razão do seu desespero pela ausência de Marluce
Uma andando atrás da outra e uma outra andando atrás da uma, Ingrid costumava pensar quando decidia ainda caminhar pelo calçadão em frente à casa de Marluce, na esperança da provocação de um encontro “acidental”.
O afastamento de Ingrid contribuiu a seu modo para a apreciável recidiva de uma infecção pulmonar contraída por Eleonora quando era ainda criança. A amargura e o desencanto podem ser grandes parceiros de vírus indesejáveis. Foi o que a mãe de Eleonora ouviu de Benito Khalmo, um misto de curandeiro, pai-de-santo e seminarista que vivia numa modesta habitação na periferia da cidade.
Da qual Ingrid decidira sair ao deixar o CTI onde Eleonora achava-se internada, naquela tarde de uma sexta-feira chuvosa em que quem está em paz quer dormir. As folhas enchiam o chão da calçada no estacionamento do hospital, fazendo uma cama em volta de uma grande árvore com uma boca de lábios escuros no meio, provocada certamente por fogo. Afinal, era ainda o mês de outubro.
Outubro de 2005