A Bailarina, Romance, Cap. XVI

Logo depois do almoço, Vilma, Érica e Camila deram por falta de Marluce. Estavam nos jardins do hotel.

-Ela deve ter subido com a Ingrid para a reunião com a Wandinha, informou Vilma.

-Reunião com a Wandinha?, indagou Érica, mostrando-se intrigada.

-Vocês não sabiam? Wandinha está com a Ingrid. Roger e Marcel foram procurar os dois amigos cubanos do Afonso. Parece que o diretor quer montar a sua própria companhia.

-E pretende nos aproveitar. Será?

-Acho que você está ficando esperta, Érica! É por isso que a Ingrid tá lá em cima.

-Caraca! Cê sabe tudo mesmo, Vilma. E nós aqui, totalmente por fora, disse Camila.

-Foi Marcel quem contou. Afonso está pensando até em programar uma apresentação em Cuba.

-Cuba! Nossa! Seria maravilhoso, legal. Foi bom você ter se aproximado do Marcel. Não iríamos ficar sabendo de nada, observou Érica.

-Negativo, meninas. A Ingrid ia contar pra gente. Mas de qualquer modo, peguei o celular do Marcel. É bom estar informada.

-Pô, cê num brinca mesmo em serviço, garota!, falou Camila.

Tomando a comprida lateral do hotel, paralela à rua por trás do muro frontal, Vilma, Érica e Camila caminharam pela calçada interna junto àquela fachada do prédio até o fim do jardim. Como a calçada se estendia mais um pouco, dobraram para continuar caminhando, agora junto à fachada dos fundos. Logo se depararam com uma porta metálica de pequena largura, totalmente pintada de vermelho. Como não estava trancada, resolveram entrar. Assim que o fizeram, a porta se fechou, como se fosse pela ação do vento. Tudo ficou logo escuro. Mais próxima da porta, Camila conseguiu alcançar a maçaneta, apenas para verificar que a porta estava trancada. Imediatamente passaram a escutar urros abafados em meio a gritos estridentes. Podiam ser de meninas assustadas. Ou de meninos também com medo, que pareciam correr. De repente os ruídos cessaram. O silêncio foi total. Nenhuma das três se mexia. Também não queriam falar. Logo depois o barulho voltou, os ruídos recrudesceram, como se fosse para inibir a conversação que pudesse acontecer entre elas. Que não tinham idéia do que fazer para sair dali. Apenas reconhecendo que o nervosismo aumentava. Quando a situação aproximou-se do desespero, do descontrole total, as luzes se acenderam e um homem alto, de aspecto ameaçador e vestido de palhaço, surgiu diante delas. Que não tiveram a mínima condição de sorrir. Botas compridas parecendo cheias de ar na ponta dos pés, paletó amarelo quase todo esfarrapado, uma bola redonda na ponta do nariz, bermudão estampado de fundo roxo ou anil, o homem saltava e fazia caretas e gracinhas diante das três. Foi Camila, a mais jovem, que se atreveu a perguntar:

-Como saímos daqui, moço?

-Sair daqui? Mas, já? O show nem começou!

-É sim, E agora, ouviu-se a voz enérgica de Érica, certamente estimulada pela ousadia de Camila.

O homem deu mais alguns saltos, dessa vez acompanhados de um barulho ensurdecedor, dirigiu-se à porta e a destravou. As meninas saíram correndo sem olhar para trás. Decidiram nada comentar até a chegada à sua cidade. Na verdade o erro fora delas. Não deveriam ter entrado ali.

Como o toque da campainha foi ignorado, ouviram-se três batidas normais na porta da suíte presidencial. Algum tempo depois, outras três, agora mais violentas. Antes das próximas três batidas, que aconteceriam certamente com muito mais violência, Afonso e Marluce já estavam vestidos. Marluce não esperava a hora da porta se abrir para sair daquele apartamento. Podia imaginar qual seria a reação de Marcel.

Quando a porta foi aberta, Marluce saiu quase correndo pelo corredor, do que se aproveitou Marcel para dizer-lhe em voz baixa:

-Vagabunda!

E depois repetir, num tom bem mais alto, quando ela já se afastara:

-V A G A B U N D A!

Mas Marluce já tinha alcançado o vão da escada, e descia apressadamente para fugir do andar e do constrangimento.

Só agora resolvera chorar, ao deslocar-se sem direção definida pelo corredor do andar de baixo. Sentimento de pena, vergonha e resignação forçada confundiam-se em sua consciência. E o reconhecimento, que progressivamente se acentuava, do que era ser violentada. A partir do momento em que ficou de costas para Afonso, não soube explicar porque teve a idéia de que encontraria em sua face, se estivesse olhando-o, um certo aspecto de maldade, rancor, mágoa ou vingança; lamúria em lugar de lascívia, ódio transmutado em necessidade física.

Seria preciso combater esse aturdimento. Pensava assim ao se aproximar do hall dos elevadores. Acionou sem muita vontade o botão de descida. Quando a porta se abriu, sentiu-se mais animada porque viu que desceria sozinha. Ninguém para vê-la secando com as mãos o que havia ainda de lágrimas e ajeitando os longos cabelos negros diante do espelho.

Esperaria por Ingrid no salão de jogos. Sabia que a professora iria procurá-la ao final do encontro com Wandinha. Se já não a estivesse procurando. É claro que não vou comentar nada com ela. E nem com ninguém. Mas vou chorar em seu ombro. E ela nem vai perceber.

No salão de jogos achou um telefone.

-Alô! Pai? Cê tá passando bem? Tá tudo legal por aí?

-Tudo, querida. E aí? Muito frio?

-Não, fresquinho só. E só à noite. Durante o dia tem feito sol.

-E a apresentação de ontem? Muitos aplausos?

-Sim, fomos muito aplaudidos. Hoje termina. Ainda bem.

-É? Saiu alguma coisa de errado, algum contratempo?

-Não, pai. É que é muito desgastante. Ensaios, exercícios físicos, adaptação com a equipe de bailarinos da cidade... Muita coisa.

-Bastante atividade. Mas é bom a gente estar ocupado. E o turismo, sobrou tempo pra alguma coisa?

-Ah, sim. Visitamos o Museu de Cristal, o Morro do Aipim, o Porto Fluvial de Blumenau e outros pontos. Meio corrido, mas deu pra se ver alguma coisa. A mãe tá por aí?

-Aqui do lado. Um minuto só. Beijos pra você.

-Pra você também, pai.

Bom conversar com meu pai. Preciso fazer isso mais vezes. A intuição de que o pai poderia ter impedido muito do que tinha acontecido. Talvez até fisicamente. A partir do que ele lhe tivesse transmitido, e tivesse sido usado por ela no devido momento. Mas isso se ela estimulasse o diálogo entre os dois. Marluce avaliava que não dava chance a seu pai de ser mais seu amigo.

-Mãe? Como você está?

-Oi, Lu. Vou indo, meu bem. E você, já conquistou Blumenau?

-Não é muito fácil, mãe. E tem muita gente boa por aqui.

-Mas você é a melhor. É preciso ser mais confiante.

-E a bronquite, mãezinha. Tá se cuidando?

-Tudo legal. Tô com saudades. Você chega a que horas amanhã?

-Por volta de meio-dia. Também estou louca pra voltar. Me pegam amanhã no aeroporto?

-Claro, Lu. Meio-dia. Mas houve alguma coisa?

-Não, mãe. É só mesmo saudades também.

-Tudo bem. Beijos, então, Lu. Celular é caro.

-Beijos, mãe.

Ao concluir a ligação, Antônia mostrava-se intrigada. O que chamou a atenção não foi o telefonema, apesar de não estar aguardando a chamada. Marluce dissera que só ligaria do aeroporto, quando tivesse regressado. O tom suave de voz e o interesse em saber como os pais estavam passando era o fator destoante. Não era muito usual em sua filha.

Foi preciso agir com violência para fazer com que Marcel entrasse na suíte. Era preciso evitar o escândalo. Contido pelos braços fortes de Afonso, Marcel foi empurrado para dentro do apartamento. A porta imediatamente trancada pelo diretor.

Na sala de estar mais ampla, com um dos conjuntos de sofá ainda meio fora de lugar, Marcel notou a mancha escura num dos assentos, denunciadora de alguma umidade, no exato momento em que Afonso se aproximava na tentativa de se explicar. O violento empurrão que recebeu do rapaz quase leva o diretor ao chão.

-Tu é um viado mesmo! E escroto!, disse Marcel, encaminhando-se a passos rápidos para o quarto.

Afonso não teve reação. Era preferível ouvir a ladainha sentado no sofá, sobre as gotas de esperma já diluídas no tecido. Não houve ladainha. Em seu lugar o silêncio de pouca duração, quebrado pela figura de Marcel saindo apressadamente do quarto com a mochila nas costas. Ele que tinha o hábito de nunca desfazer inteiramente a mala. Saiu sem dizer palavra.

No domingo não houve exercícios respiratórios. Roger foi instruído por Afonso para que os ensaios, a serem conduzidos de maneira habitual, tivessem curta duração. Seria apenas uma passagem rápida dos passos e movimentos principais previstos para a encenação da obra. Uma forma de justificar a presença dos titulares do Corpo de Baile de Afonso, do de Blumenau e de Vilma, Érica e Camila. Marluce interfonara para Wandinha, dizendo que não se sentia bem e que precisava dormir. Para que estivesse em condições de atuar à noite. Ingrid lhe faria companhia.

Temeroso de que Marcel não voltasse, o que não poderia ser descartado em função do seu temperamento extremamente rebelde quando magoado, Afonso reuniu-se com Wandinha, algum tempo depois da saída de Marcel, determinando-a que conseguisse um substituto para o solista. Wandinha não teve sucesso na busca, surgindo então a idéia de que uma bailarina do Corpo de Baile de Blumenau, devidamente caracterizada, pudesse contracenar com Marluce.

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 25/10/2011
Código do texto: T3296791
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