QUASE VIVO
“Uma insólita viagem da alma
ao poço das maldades”
Sir Herzog Izael (1756-1805)
Abriu os olhos. Estava paralisado, não conseguia mexer qualquer parte do corpo. Viu os próprios dedos entrelaçados sobre o peito. Atônito, percebeu que estava num caixão. Olhou as pessoas em prantos, todos lamentando a abrupta separação.
— Meu Deus, tenha piedade desta alma que agora parte! — disse uma senhora com os olhos avermelhados.
Não! Algo estava errado, ele estava vivo, podia enxergar a todos, talvez fosse vitima de algum surto momentâneo do corpo ou estivesse sob efeito anestésico.
— Talvez eu tenha sido operado e esteja em coma induzido! – pensou ele, duvidando da própria indagação.
— Partiu tão novo — comentou ou senhora agarrada a um crucifixo.
— Socorro — gritou ele — estou vivo.
O caixão estava aberto, mesmo assim ninguém o estava ouvindo. Ele tentou coçar o testa, mas estava imóvel. Foi acometido por uma inquietação assustadora. Não havia ponderação no pensamento. Tentou se lembrar de algo que antecedesse à situação. Era um homem sem memória.
— Apesar de ser um traficante, até que ajudava as pessoas — disse uma velha balançando a cabeça.
— Traficante, eu? – perguntou-se ele inconformado.
— Traficante sim senhor! Você era uma peste, o senhor das maldades!
Ele ouviu com satisfação, finalmente alguém para conversar. “Senhor das maldades”
— “Senhor das maldades”,como assim, quem está falando comigo?
— Sou o morto do caixão ao lado.
— Morto? Mortos não falam.
— Não falam com vivos. Estamos bem mortos. Quando se morre pela primeira vez é quase impossível dissociar o corpo da alma. A abrupta partida causa desorientação. Imagino como dever estar se sentindo, não sendo mais alguém que você foi em vida.
— Não me lembro de nada.
— Não quer se lembrar.
— Estou impaciente,agindo de maneira irracional.
— Quando ocorre a escassez da paciência, a mente, numa mutilação desgovernada, emite comandos errôneos ao cérebro que por sua vez, redige loucuras, culminando na irracionalidade da alma!
— Está enganado, estou vivo!
— Você está num período de transformação. A partida é difícil. Abandonar parentes e amigos e consolidar o desapego desta vida não é tarefa fácil.
Ele sentiu o corpo tremer. Incompreendia o momento, mas talvez o colega morto tivesse razão. Chorou copiosamente, contudo, não sentiu as lágrimas escorrerem pela face gelada. Percebeu que podia ver a todos, entretanto, seus olhos estavam fechados.
— Acho que estou quase morto! — disse ele, mais para desabafar do que para acreditar.
— Quase morto? Essa é boa. Talvez, “quase vivo”!
— Que acontece agora, ou será como no filme Ghost, onde a alma era conduzida por anjos ou demônios?
— Esqueça tudo o que ouviu sobre o outro lado. Cada alma tem seu próprio destino.
— Como sabe?
— Não sei, ninguém sabe.
— Pensei que tivesse morrido outras vezes.
— Sei que morri, mas não me lembro de como revivi e estou morrendo de novo.
— Talvez não estejamos mortos, e apenas em meio a um pesadelo.
— Pode ser — assentiu o colega
— O que acontece agora?
— Seremos levados num cortejo fúnebre até a cova para sermos enterrados. Vem aquela ladainha, o caixão é fechado, alguém joga um pouco de areia e os coveiros terminam o serviço.
— E depois disso?
— Tudo é uma incógnita.
— Alguém deve ter a resposta para este enigma!
— Quem sabe não seja você quem decifrará o mistério da morte?
Uma repentina ameaça de chuva fez com que o cortejo fosse rápido. Seguindo o ritual, um idoso calvo proferiu algumas palavras e encerrou o pronunciamento. A chuva estava chegando. As primeiras gotas beijaram a terra árida. Ele viu o caixão sendo fechado. Sentiu a respiração faltar, debateu-se, gritou, implorou por ajuda, mas, combalido, quedou inerte. Fazia dia, mas fez-se noite em seu viver.
www.pauloizael.com
“Uma insólita viagem da alma
ao poço das maldades”
Sir Herzog Izael (1756-1805)
Abriu os olhos. Estava paralisado, não conseguia mexer qualquer parte do corpo. Viu os próprios dedos entrelaçados sobre o peito. Atônito, percebeu que estava num caixão. Olhou as pessoas em prantos, todos lamentando a abrupta separação.
— Meu Deus, tenha piedade desta alma que agora parte! — disse uma senhora com os olhos avermelhados.
Não! Algo estava errado, ele estava vivo, podia enxergar a todos, talvez fosse vitima de algum surto momentâneo do corpo ou estivesse sob efeito anestésico.
— Talvez eu tenha sido operado e esteja em coma induzido! – pensou ele, duvidando da própria indagação.
— Partiu tão novo — comentou ou senhora agarrada a um crucifixo.
— Socorro — gritou ele — estou vivo.
O caixão estava aberto, mesmo assim ninguém o estava ouvindo. Ele tentou coçar o testa, mas estava imóvel. Foi acometido por uma inquietação assustadora. Não havia ponderação no pensamento. Tentou se lembrar de algo que antecedesse à situação. Era um homem sem memória.
— Apesar de ser um traficante, até que ajudava as pessoas — disse uma velha balançando a cabeça.
— Traficante, eu? – perguntou-se ele inconformado.
— Traficante sim senhor! Você era uma peste, o senhor das maldades!
Ele ouviu com satisfação, finalmente alguém para conversar. “Senhor das maldades”
— “Senhor das maldades”,como assim, quem está falando comigo?
— Sou o morto do caixão ao lado.
— Morto? Mortos não falam.
— Não falam com vivos. Estamos bem mortos. Quando se morre pela primeira vez é quase impossível dissociar o corpo da alma. A abrupta partida causa desorientação. Imagino como dever estar se sentindo, não sendo mais alguém que você foi em vida.
— Não me lembro de nada.
— Não quer se lembrar.
— Estou impaciente,agindo de maneira irracional.
— Quando ocorre a escassez da paciência, a mente, numa mutilação desgovernada, emite comandos errôneos ao cérebro que por sua vez, redige loucuras, culminando na irracionalidade da alma!
— Está enganado, estou vivo!
— Você está num período de transformação. A partida é difícil. Abandonar parentes e amigos e consolidar o desapego desta vida não é tarefa fácil.
Ele sentiu o corpo tremer. Incompreendia o momento, mas talvez o colega morto tivesse razão. Chorou copiosamente, contudo, não sentiu as lágrimas escorrerem pela face gelada. Percebeu que podia ver a todos, entretanto, seus olhos estavam fechados.
— Acho que estou quase morto! — disse ele, mais para desabafar do que para acreditar.
— Quase morto? Essa é boa. Talvez, “quase vivo”!
— Que acontece agora, ou será como no filme Ghost, onde a alma era conduzida por anjos ou demônios?
— Esqueça tudo o que ouviu sobre o outro lado. Cada alma tem seu próprio destino.
— Como sabe?
— Não sei, ninguém sabe.
— Pensei que tivesse morrido outras vezes.
— Sei que morri, mas não me lembro de como revivi e estou morrendo de novo.
— Talvez não estejamos mortos, e apenas em meio a um pesadelo.
— Pode ser — assentiu o colega
— O que acontece agora?
— Seremos levados num cortejo fúnebre até a cova para sermos enterrados. Vem aquela ladainha, o caixão é fechado, alguém joga um pouco de areia e os coveiros terminam o serviço.
— E depois disso?
— Tudo é uma incógnita.
— Alguém deve ter a resposta para este enigma!
— Quem sabe não seja você quem decifrará o mistério da morte?
Uma repentina ameaça de chuva fez com que o cortejo fosse rápido. Seguindo o ritual, um idoso calvo proferiu algumas palavras e encerrou o pronunciamento. A chuva estava chegando. As primeiras gotas beijaram a terra árida. Ele viu o caixão sendo fechado. Sentiu a respiração faltar, debateu-se, gritou, implorou por ajuda, mas, combalido, quedou inerte. Fazia dia, mas fez-se noite em seu viver.
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