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Este conto foi escrito em 1844. É o último caso do detetive Dupin escrito por Poe, que já o havia usado nos contos "O Crimes da Rua Morgue" de 1841 e "O Mistério de Marie Roget" de 1842
A CARTA ROUBADA
Edgar Allan Poe
Tradução: JB Xavier
Em Paris, ao cair de uma noite de outono de 18..., estava eu desfrutando da companhia de um velho amigo, C. Auguste Dupin, em sua pequena biblioteca, quando a porta de repente se abriu e entrou o Sr. G., o Chefe de Polícia da cidade.
Ficamos contentes, pois havia já alguns anos que não o víamos. G. disse que tinha vindo nos consultar - ou melhor, ao meu amigo Dupin - sobre um negócio oficial que vinha lhe causando grandes problemas.
"Em poucas palavras, eu lhes contarei", ele nos disse, "mas antes de começar, deixem-me avisá-los de que é um assunto muito secreto e de que todo o meu poder e minha posição poderiam se desmantelar, caso venha a público o que aqui se está a dizer."
"Prossiga", eu disse.
"Bem, recebi a informação confidencial de que um documento muito importante foi roubado dos aposentos reais. Sabe-se que quem o roubou foi o Ministro D., e a pessoa de quem a carta foi roubada precisa muito dela, mas não pode, é claro, agir abertamente, e o caso então foi entregue aos meus cuidados."
"Comecei”, ele disse, "fazendo uma inspeção cuidadosa no apartamento do ministro. Claro que o fiz em segredo, sem o seu conhecimento, pois não queria que soubesse que dele suspeitávamos. Por sorte, os hábitos cotidianos do ministro nos ajudaram imensamente. À noite, estava quase sempre ausente de casa, e os poucos criados de que dispõe não dormem em seu apartamento. Como sabem, disponho de chaves com as quais posso abrir, em Paris, toda e qualquer porta. Durante três meses, nem uma só noite se passou, sem que eu não estivesse, sem sucesso algum, pessoalmente ocupado com a investigação em seu apartamento. Já agora estão em jogo a minha reputação e a minha honra, sem contar o fato de que, revelado o segredo que a carta contém, só poderão ser nefastas as conseqüências. Assim, não posso suspender a investigação, até estar inteiramente seguro de ser o ladrão mais esperto do que eu. Estou certo de ter examinado todos os cantos do apartamento onde era possível estar escondido o papel", encerrou G., desanimado.
"Mas não é possível", sugeri, "que mesmo que o ministro tenha a carta, não a tenha escondido em outro lugar?
"Oh não", disse o Chefe de Polícia, "duas vezes ele parou meus homens na rua, acusando-os de ladrões, por o estarem seguindo, mas eles não lhes disseram nada sobre a investigação. Sabemos todos os lugares aonde ele vai e também já os investigamos."
"Diga-nos o que exatamente investigou no apartamento", eu disse. "Tenho longa experiência no ramo", respondeu o policial, "assim, examinei o apartamento, sala por sala, levando uma semana inteira em cada uma delas. Examinamos a mobília, abrimos todas as gavetas; e, suponho que saiba, para um experimentado policial coisas como gavetas secretas não existem! A seguir examinamos as cadeiras e retiramos as tampas de todas as mesas."
"Mas, eu disse, "você sabe que não poderia revistar todas as peças de uma mobília. Seria impossível!"
"Correto", ele respondeu, "mas fizemos mais do que isso! Examinamos todas as peças da mobília com poderosos microscópios e não encontramos indicações ou marcas de que tenha sido tocada ou danificada para esconder a carta. Depois disso, examinamos o apartamento propriamente dito. Dividi toda a área interna em secções e dei um número a cada uma delas, assim não corríamos o risco de esquecer nenhuma. Por esse método, esquadrinhei cada polegada quadrada do apartamento."
"Examinou os jardins?"
"Sim, mas tivemos algumas dificuldades. Os jardins são pavimentados com ladrilhos. Examinamos cada ladrilho e também a grama que há entre eles, e não encontramos qualquer indício de ter sido remexida."
"Verificou os papéis do ministro e por entre os livros da biblioteca?"
"Certamente! Revistamos cada pacote que havia, e não somente examinamos os livros, como também folheamos cada página de cada volume. Inspecionamos também uma a uma as capas dos livros com o microscópio."
"Examinou o assoalho, por baixo do carpete?"
"Evidentemente! Removemos todos os carpetes e verificamos todas as tábuas.
"E o papel de parede? "
"Também!"
"Olharam o porão?"
"Olhamos."
"Então", eu disse, estão enganados e a carta não está no apartamento."
"Temo que esteja com a razão. E agora, Dupin, o que acha que devo fazer?"
" Acho que deve dar uma segunda busca no apartamento", disse Dupin.
"Mas tenho a certeza de que lá a carta não está", respondeu o policial.
"Não tenho sugestão melhor a lhe dar", disse Dupin,"mas, naturalmente, você tem uma descrição detalhada da carta..."
"Oh, sim", disse o policial e, tomando de sua agenda, pôs-se a ler uma descrição minuciosa da carta desaparecida. Quando terminou, sobre ele abatera-se um tal desânimo, como eu nunca vira antes.
Quase um mês depois, novamente ele nos visitou. Estávamos na biblioteca, como da vez anterior.
"Bem, o que há de novo sobre a carta roubada?", eu lhe perguntei antes mesmo que se sentasse. Suponho o que você conclui finalmente que o ministro é muito esperto para ser pego de surpresa."
"Maldição! É verdade", ele respondeu, "tornei a examinar o apartamento, como sugeriu Dupin, mas sem sucesso."
"Que recompensa oferecem pela carta?", perguntou Dupin.
"É muito grande", respondeu G. "Na verdade a quantia dobrou recentemente. Mas mesmo que fosse três vezes maior, eu não poderia fazer mais nada além do que já fiz para encontrar a carta. E lhes digo mais! Daria cinqüenta mil francos de meu próprio dinheiro a quem encontrasse a carta para mim!"
"Nesse caso", disse Dupin, enquanto abria a gaveta e procurava pelo talão de cheques, "preencha-me um cheque com essa quantia e, uma vez assinado, eu lhe darei a carta!"
Ambos, eu e o policial estávamos boquiabertos. Por um momento, ficou paralisado pela surpresa, mas depois, voltando a si, pegou a caneta, preencheu um cheque de cinqüenta mil francos e o repassou a Dupin, que cuidadosamente o examinou e colocou no bolso. Abriu então uma gaveta, tirou a carta e a entregou ao policial. Era a carta roubada!
Este a pegou com mãos trêmulas, leu aliviado e, num frenesi, saiu pela porta afora. Depois que se foi, fiquei a olhar para Dupin esperando uma explicação.
"Eu sabia", disse o meu amigo, "que o ministro é muito esperto. É um matemático, um poeta e também um homem muito ousado. Concluí que um homem assim estaria familiarizado com as ações habituais da polícia, as quais ele mesmo às vezes programava."
Logo percebi que a sua constante ausência de casa à noite não passava de um truque. Ele sabia que a polícia revistaria cada palmo do apartamento e, assim, permitiu que o fizesse livremente, pois era a única maneira de se livrar dela. Percebi também que, em função de tudo isso, ele seria forçado a fazer algo bem simples. Este é o ponto. Teria que ser algo bem acima ou bem abaixo da compreensão da polícia. G., por exemplo, nunca suspeitou de que o ministro pudesse ter escondido a carta num lugar bem à mostra, bem sob o nariz de todo mundo, impedindo apenas que alguém a visse!
Foi com essas idéias que coloquei os meus óculos escuros e, numa linda tarde, fui visitar o ministro em sua residência. Disse a ele que os meus olhos estavam muito fracos e que a claridade excessiva os irritava, mas, na verdade, com os óculos escuros eu poderia inspecionar todo o apartamento sem que ele notasse o movimento dos meus olhos. Finalmente percebi uma pequena caixa, bem à vista, sobre a lareira. Nessa caixa havia cinco ou seis cartões de visita e uma carta. A carta estava um pouco suja e rasgada, e havia sido colocada na caixa com descuido. Assim que a vi, tive certeza de ser o que estava procurando. Certamente que sua aparência era um pouco diferente da descrição original. O endereço no envelope era outro e a letra também. Era uma letra pequena e feminina, como se tivesse sido escrita por uma mulher, mas o tamanho era o mesmo!
Examinei a carta o melhor que pude e para mim ficou claro que havia sido virada pelo avesso, adaptada, reendereçada e ligeiramente alterada.
Desculpando-me por estar já atrasado, despedi-me do ministro, mas propositalmente deixei minha cigarreira sobre a mesa. Na manhã seguinte, voltei para apanhar a cigarreira, e de novo começamos a conversar. De repente, porém, houve um tiro de pistola na rua. D., sempre alerta, foi depressa até a janela e lá permaneceu por alguns instantes, olhando para a rua. Na verdade, era um homem contratado por mim, que, para chamar a atenção de D., disparara acidentalmente. O fato é que, enquanto ele olhava pela janela, fui até a lareira, apanhei a carta e, em seu lugar, deixei uma cópia exata, que eu já havia preparado no dia anterior.
"Mas por que você trocou a carta pela cópia? Por que não apanhou a carta simplesmente quando da primeira visita?"
"D. é um homem inteligente e perigoso", replicou Dupin, "e havia na casa muitos empregados. Se eu cometesse a imprudência por você sugerida, é bem provável que não deixasse o lugar vivo. E o bom povo de Paris jamais tornaria a ouvir falar em meu nome!"
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