OBSESSÃO

“Se me observa, diga-me. Quero entender essa sua obsessão, e comparar com a minha.”*

Ruim era aquela sensação que se mostrava pertinente a cada momento. Nada foi diferente naquela noite chuvosa. Da janela do apartamento, oculta pelas cortinas, ela observava os que transitavam pela rua deserta. Tratava-se de uma área residencial e já eram altas horas, além de fazer muito frio. Isso não dava motivos pra tanta movimentação. Provavelmente aquela movimentação era somente obra do caso, e o restante era tudo fruto de sua imaginação… Talvez a única obsessão ali fosse a dela ao se considerar perseguida e observada a todo instante. Ainda machucada pelo passado e colhendo os frutos dele, sentia-se incomodada com qualquer presença que, em seu inconsciente, lhe soasse como estranha; se sentia invadida por qualquer sujeito que, mesmo indiretamente, se interpusesse em seu caminho.

Entre os transeuntes e ocupantes da calçada, um deles chamou-lhe a atenção. Tratava-se de um caminhoneiro que há mais de hora tentava consertar seu caminhão debaixo de chuva para, supostamente, poder seguir viagem. Um conserto sem fim, iluminado pela fraca luz do poste na calçada. Uma imagem até inocente, de um velhinho com semblante enrugado, esquálido e exaurido por uma vida inteira de trabalho pesado. Seria aquele homem um observador disfarçado e plantado propositalmente ali para acompanhar sua rotina ou fazer-lhe algum mal? Seria enviado de um alguém maior que ainda insistia em saber de sua vida e medir seus passos? Ou seria, de fato, apenas um caminhoneiro com problemas em seu veículo?… Muitas perguntas e poucas respostas circulando em uma mente que já não sabia se conseguia se manter sã frente a tantas dúvidas. Não, não podia ser… Aquela era apenas uma pessoa comum como tantas outras que deveras passavam ali; aquele era apenas um caminhoneiro cuja ferramenta de trabalho, já gasta pelo tempo e com ajuda da chuva, apresentava defeito mais uma vez. Tentava se convencer disso, enquanto encarava o sujeito por trás das cortinas daquele ambiente mal iluminado. Certamente ele nem sabia que ela estava ali à espreita, obsessiva, vigiando sua conduta… Sem nenhuma certeza disso ou de qualquer outra coisa, decidiu render-se ao sono que já ameaçava chegar e deixar de lado o caminhoneiro e seu conserto na calçada. A vida lhe impunha responsabilidades e realidades ao amanhecer e ela não podia ficar ali a perder tempo com mais uma de suas cismas. Deu às costas para a janela e dirigiu-se à cama sem perceber que, nesse exato momento, de soslaio, o caminhoneiro a olhou.

Do outro lado da cidade, sentado em frente à TV em uma luxuosa sala de estar, com duas garrafas vazias de vinho caídas a seus pés e uma taça de cristal com resíduos do líquido escuro, apesar do adiantado da hora, ele ainda aguardava o telefonema de seu contratado que, disfarçado de caminhoneiro, havia se posicionado embaixo de uma janela em uma rua residencial naquela noite chuvosa.

***

Nem sempre as coisas são o que parecem ou o que imaginamos que possam ser; mas em algumas vezes elas são…

*A citação usada é de Latumia (WJF).

Barbara Nonato
Enviado por Barbara Nonato em 18/10/2011
Código do texto: T3284399
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