AD AETERNUM - Parte Um
EXTRAORDINÁRIO. Esta palavra nunca se aplicara a nenhuma área de sua vida. Pelo menos, não até aquele dia fantástico.
Não era extraordinariamente bonito nem feio; não era extraordinariamente alto nem baixo, nem demasiadamente gordo ou magro, orelhudo, narigudo, não tinha pés ou mãos enormes, não era dotado de habilidades incomuns para esportes, nem para a matemática ou literatura; enfim: nada, absolutamente nada indicava que ele, justamente ele e não Napoleão ou Alexandre ou Mozart ou Borges ou eu ou você, dentro da incontável miríade de geniais, heroicos, valorosos, banais, medíocres ou desprezíveis seres humanos produzidos ao longo da História, poderia ser o que, no futuro se descobriria, ele era.
Sim, era bem verdade que desde pequenino demonstrara alguma aptidão para o desenho; era verdade que seus traços firmes e bem delineados, além de sua noção -avançada para um garoto de sua idade- de anatomia e das proporções do corpo humano (tinha alguma dificuldade em desenhar cavalos) impressionavam os parentes, e era verdade também que aquela tia, embevecida, vislumbrava no menino um grande pintor (a tia sonhadora chegou mesmo a custear seus estudos junto à única professora de artes plásticas da cidade, que havia sido, em sua juventude, uma pintora com certos dotes e que alcançara algum sucesso no meio artístico); porém o brilhante futuro no universo das artes imaginado pela tia nunca chegou a se concretizar. Um tanto por influência de sua mãe, diga-se. A boa senhora, pragmática e, além disso, profunda conhecedora do intrincado funcionamento das engrenagens do mundo dos homens, não via com bons olhos os projetos do menino, seduzido pelo canto da sereia de um universo voltado para o belo, para o etéreo, para o lúdico, para os sonhos. Precavida, tinha mais de formiga do que de cigarra, e sempre torcera o nariz para as aspirações artísticas do menino, e recriminava firmemente os devaneios inocentes da irmã, ela sim, a própria cigarra da famosa fábula. Achava que o filho devia se voltar para uma carreira mais segura e rentável, como a advocacia, a medicina ou a engenharia, carreiras, dizia, que lhe proporcionariam as bases para constituir família e levar uma vida estável e para, na velhice, desfrutar seus últimos dias de maneira tranquila, sem sobressaltos e privações; além disso, teria condições de ajudar a cuidar do restante da família. Tais benefícios, dizia, seriam impossíveis de serem alcançados se ele optasse pelas incertezas e surpresas frequentes na carreira artística, de sucesso geralmente efêmero e na maioria das vezes incerto. O pai, falecido anos atrás, não teria como opinar a respeito do seu futuro; porém, segundo a mãe, o velho advogado tinha um sonho: que seu único filho homem seguisse a respeitável carreira de engenheiro e construísse pontes imponentes que encurtassem as distâncias entre os homens, subjugassem abismos e rios e oceanos e fizessem seu nome ecoar através dos tempos.
Mas não foram só os conselhos e apelos da mãe que abortaram -era essa palavra que a tia utilizava quando queria censurar a irmã por interferir daquela maneira, inviabilizando o desenvolvimento do raro talento natural que ela percebia claramente no menino- sua incipiente carreira de pintor. Pelo contrário; talvez tenha sido, acima de tudo, sua própria natureza, melancólica e um tanto indolente, quase apática, que o tenha impedido de perseverar no longo, árduo e sacrificado caminho que produz, de tempos em tempos, um Michelangelo, um Mozart, um Goethe, um Cervantes, um Borges ou um Einstein. Apesar de seu temperamento contemplativo, seu embevecimento diante das mínimas belezas do mundo –era capaz de gastar horas assistindo uma pequena aranha tecer sua teia ou esperando que um inseto caísse na laboriosa armadilha para vê-la enrodilhando a presa indefesa no terrível fio de seda que seu abdômen ia produzindo imediatamente-, sua invencível tendência ao ócio e à procrastinação tiravam-lhe completamente o ânimo e da determinação necessárias para se tornar um grande artista. Não; definitivamente, aquelas mãos não dariam ao mundo uma nova Cistina. Mas, em um certo sentido, sua tia –que acabou se tornando uma espécie de guru esotérica, uma conselheira espiritual das outras senhoras respeitáveis do bairro e até mesmo de outras partes da cidade- estava certa: o garoto cresceu, formou-se com alguma dificuldade num curso superior qualquer, escolhido aleatoriamente –para grande desgosto de sua mãe- e para o qual não dava muita importância e acabou arrumando, por influência de um grande amigo de seu pai e, além de tudo, irmão maçom, grau trinta e três, da Grande Loja do Oriente, um cargo público numa repartição desimportante qualquer. Onde, finalmente, ele exercia displicente e sem maiores preocupações o seu grande talento, desenhando e redesenhando fachadas de prédios a serem construídos ou reformados pela municipalidade. E, como, nas repartições municipais, ocorrem situações estranhas para qualquer cidadão pouco afeito às regras e procedimentos do serviço público -especialmente em países da América Latina-, às vezes chegava a desenhar fachadas de prédios que seriam derrubados tão logo ficassem prontos.
P.S.: Se você se interessou pela narrativa acima e quer descobrir o que vai acontecer com o nosso personagem, leia:
http://www.recantodasletras.com.br/contosdesuspense/3310970
http://www.recantodasletras.com.br/contosdesuspense/3360707
http://www.recantodasletras.com.br/contosdesuspense/3378178