A Bailarina, Romance, Cap. IX
A agitação de Marluce ao chegar em casa foi aos poucos aplacada pela necessidade de se organizar para o dia seguinte. Sua mãe iniciara a arrumação da mala, mas ela fazia questão de dar uma última olhada. E teria que ser antes de dormir. Afonso tinha estabelecido o horário de 6h30 em frente ao teatro. Não haveria tempo para muita coisa depois que acordasse.
Como as outras alunas, ela tinha sido muito exigida nesse último ensaio. Especialmente a partir do momento em que Marcel assumiu a coordenação das ações. Talvez essa exigência toda, em relação a ela, pudesse ser confundida, ela via agora, como uma tentativa de punição, em função de Marluce ter atraído a atenção de Afonso para um campo além do profissional. Poderia ser também vaidade, decorrente da necessidade de Marcel se sobrepor, não só em relação a ela, mas também ao grupo, marcando posição como a figura de maior realce no Corpo de Baile depois do diretor.
Era no que pensava, após a rápida refeição com seus pais, a muito custo convencidos de que não deveriam acompanhá-la a Blumenau. Poderiam no máximo levá-la de manhã cedo até ao teatro, para não correr o risco de se atrasar.
-Mãe, seria a maior caretice. Nenhuma das meninas vai com os pais. Nem mesmo a Camila, que só tem 15 anos.
-A Camila também? Já com esse cheirinho de preconceito? Ela, principalmente, deveria ter os pais por perto.
-Não acho que os pais devam estar afastados em tudo, embora a gente deva ser criada para o mundo, como você mesma já disse. Mas já pensou – todo mundo lá sem seus pais e eu com vocês a tira-colo, mesmo que viajassem em outro avião?
-Não vejo nada demais. Ficaríamos em outro hotel e a nossa presença, sempre discreta, se daria apenas nos dias das exibições, observou recatadamente a mãe de Marluce.
-Ah! E Vilma, Érica e Camila não conhecem vocês, não é? Acho que isso deve ficar pra mais tarde. Quando eu tiver mais independência.
-Aí é que você talvez não precise da gente.
-Talvez não tanto da proteção, mas da amizade, do apoio e até mesmo do carinho... Além do mais, mãe, o friozinho por lá, mesmo nessa época do ano, não lhe faria bem à bronquite.
Antonia sentiu-se desconcertada pela observação da filha. Não no que se referiu à saúde. Os filhos às vezes acham que os pais não adoecem. Marluce fora irônica. Não contava era com aquela reação mais adulta da filha, com a referência a valores de que normalmente cuidamos depois de mais velhos. Não encontrou, por isso, palavras para refutá-la, embora achasse que devesse fazê-lo. Ezequiel teve vontade de aplaudir a menina, mas preferiu retirar-se para sintonizar o noticiário na TV, aproveitando-se do final da novela.
Marluce não se lembrou de ligar para Ingrid. Depois de ter colocado na mala a câmera digital, presente de aniversário de Ezequiel e último item para que achasse que tudo estava preparado para a viagem, entendeu que um banho quente acabaria de vez com toda aquela ansiedade observada a partir do momento em que chegara em casa.
A água morna caindo sobre os bicos rijos dos seios era agora uma agradável sensação, ampliada naturalmente pelas reações musculares e cinéticas decorrentes dos exercícios realizados nos ensaios. As gotas d’água salpicadas em sua pele trouxeram-lhe a lembrança da pele sardenta de Ingrid, seus cabelos ruivos e a boca vermelha aproximando-se da sua naquele dia no bar. E no mesmo dia, a cabeça do pau de Afonso roçando-lhe a fenda sobre o collant conduzia-lhe agora os olhos para a vagina encharcada, cujos pelos ela imaginava confundirem-se com os pentelhos certamente ruivos de Ingrid. Desejou os dois, sentiu as mãos de cada um deles apalpando-lhe as ancas, enquanto a dela friccionava o clitóris enrijecido até a produção do orgasmo. Cósmico. A pele sardenta de Ingrid, sua principal atração. Assim como deveriam ser as estrelas a atração do luar.
Ingrid conseguiu não esperar pelo telefonema de Marluce. Embora fossem apenas três noites, mantivera-se inteiramente ocupada no preparo da única mala que levaria. Não podiam faltar os perfumes, shampoos e cremes para o corpo, talvez muito mais importantes que as peças de roupa a serem separadas. E, claro, uma garrafa de vinho. Havia a possibilidade, que não deveria ser considerada remota, de ela e Marluce ficarem no mesmo quarto. E ainda a própria expectativa da viagem, com todas as despesas pagas pela Prefeitura da cidade e contando o grupo com nove titulares do Corpo de Baile do Teatro Municipal, contribuíra para que ela pegasse no sono logo após ter concluído a arrumação da mala. Também havia a preocupação em atender ao que estipulara o diretor: todos deveriam estar às 6h30 em frente ao Teatro Municipal para dali saírem em três vans contratadas para levá-los ao aeroporto. O vôo estava marcado para as 9h30.
Às 6h25 daquela manhã o volume do tráfego ainda era pequeno. A calçada em frente à entrada lateral do Teatro Municipal não era suficiente para o grupo de pessoas que ali se reuniu no aguardo do transporte ao aeroporto. Alguns bailarinos ocupavam um trecho da caixa da rua próximo ao meio-fio, conversando animadamente. Às vezes jogavam amendoim ou cascas de tangerina em alguns pombos que teimavam em permanecer no outro lado da calçada, tirando proveito do fato de ela se achar àquela hora praticamente vazia. Um mendigo, sentado na calçada em que se aglomeravam os pombos, parecia indiferente à quase algazarra provocada pelos bailarinos. Recostado à parede do prédio em frente, mantinha sobre a cabeça um quepe com a inscrição 88, similar ao que usavam os antigos motorneiros de bonde. Ninguém olhou as caretas aleatórias que o mendigo fazia, nem mesmo quando ele tentou, com uma de suas pernas esticadas, afugentar um ou dois pombos mais próximos.
Afonso estava bastante agitado com a movimentação, embora pudesse contar com a funcionária Wanda, na função de assistente administrativo, que ficaria encarregada de toda a orientação que deveria ser dada ao grupo. Wanda já tinha lembrado ao diretor que apenas Roger e Marluce ainda não haviam chegado. Dissera-lhe também, na esperança de tranqüilizá-lo, que o agente de viagens já estava se deslocando para o aeroporto com as 18 passagens e vouchers de todo o grupo. Afonso estava levando 10 titulares do Corpo de Baile, entre eles o solista Marcel. Com as quatro alunas da academia de Ingrid, tinha-se o total de 14 bailarinos. Somando-se as presenças do diretor, dos dois assistentes e de Ingrid, uma espécie de convidada especial, perfazia-se o total de 18 passageiros naquela excursão. Aos bailarinos liderados por Afonso deveriam se juntar 15 integrantes do Corpo de Baile do Teatro Municipal de Blumenau.
Uma das integrantes da equipe titular de Afonso teve a idéia de ir com uma colega tomar um cafezinho no bar que se abria àquela hora do outro lado da calçada. Ao passarem pelo mendigo, uma delas se deteve na inscrição do quepe que ele mantinha na cabeça. A reação foi imediata: “Qual é, suas babaca? Vão andando, suas buceta. Olha aí, héin, bucetão sujão!”, bradava o mendigo, na banalização de um termo de elevado conteúdo afrodisíaco, no dizer de Camilo Pestana, discreto apreciador de mulheres, frescas e de tenra idade, do Engenho de Dentro, bairro do Rio de Janeiro. Por sinal, bairro onde tinha vivido o mendigo na sua mocidade, como se comentava no local. O incidente não passou despercebido a Ingrid, cuja atenção fora atraída pela voz grave do mendigo. A bailarina que olhou o quepe do mendigo parou e sorriu, mostrando-lhe sua língua vermelha e gordinha. Que ele poderia ter confundido com um grelo enorme. Se só pensasse naquilo. Ou se não fosse inabilitado para as funções sexuais. Mas ele preferiu sorrir também, mostrando os poucos dentes amarelados que tinha. As meninas afastaram-se depois apressadamente em direção ao bar, mas não tiveram tempo de pedir o café. O carro dos pais de Marluce aproximava-se do meio-fio, seguido imediatamente pelas três vans que deveriam conduzir o grupo ao aeroporto, assumindo o conjunto a aparência de um comboio. Ou, pelo menos, pareciam ter combinado o horário de chegada. Roger, o assistente artístico da equipe, já havia chegado também e era repreendido por Afonso.
Marluce e Ingrid não chegaram ao aeroporto na mesma van. Disso aproveitou-se Ingrid para alcançar o celular no fundo da bolsa preta de mão.
-Oi, meu bem. Estou te acordando?
-Que nada. Achei que você nem fosse ligar!, era a voz de Eleonora e seu dengo habitual.
-Amor, são apenas 7h30 ainda. Não quis incomodar. Imagina se eu ligasse às seis!
-Eu já estava acordada, aguardando. Mas, tudo bem. E aí, tá animada?
-Claro, né, Leo? Você bem que poderia estar aqui – imagino que você vai achar que é uma resposta fácil, prosseguiu Ingrid, temerosa com a própria observação.
-Não precisa se preocupar. Torço pra que tudo dê certo. Nem sempre a vida acaba num dia, furtando-se agora ao dengo, habitual quando atendia.
-Ligo pra você no sábado e no domingo, está bem?
-Estarei aguardando. Ligue pro celular.
-Isso aí. Saia, passeie, vá ao cinema. Tente fazer isso sozinha. Mas comporte-se, viu! Não dê bola pra ninguém.
-Será que posso pedir o mesmo a você?
-Você sabe que não precisa. Adoro esse denguinho pra mim. Principalmente quando ele volta de novo.
-Beijos, querida. É segunda que vocês vêm, não é isso?
-Devemos chegar por volta do meio-dia. Se der, vou direto ver você. A desculpa será a preocupação com a sua recuperação, disse Ingrid, procurando mostrar convicção no que afirmava.
-Ligue do aeroporto então.
-Ligo sim, amor.