MUNDO DAS NOITES BRANCAS - PARTE 5
Fiquei a viver na igreja! Num gesto de pura bondade, Igor, o misterioso padre adivinho, decidiu abrigar-me. Os meses que se seguiram decorreram em monótona tranquilidade; exclusivamente dedicados à criança que crescia dentro de mim.
Certo dia, enquanto assistia à celebração da missa de domingo, julguei entrever Lourenço sentado no último banco da nave central. O terror voltou a apoderar-se de mim. E, então, novamente decidi fugir. Agora de Portugal.
Nesse mesmo dia comuniquei a Igor a minha decisão. Jantávamos na sala. O concerto para piano de Tchaikovsky substituía o silêncio em que ambos permanecíamos. Eu por desorientação, Igor por hábito pessoal.
Como cedo descobrira, Igor tinha tanto de bom ouvinte como de péssimo conversador. Meditativo por natureza, não se entregava a diálogos de circunstância nem alimentava o espírito de trivialidades. No entanto, sempre que falava, as suas palavras enformavam uma sabedoria incrível. Ouvi-lo era uma experiência emocionalmente transbordante; as suas palavras detinham o poder de aquietar os meus mais atormentados e angustiosos pensamentos sobre a vida, principalmente, a futura.
Quando lhe contara como Lourenço quisera matar o filho que eu carregava no ventre, disse simplesmente que certos homens não escolhem o que fazem, são escolhidos para o fazerem. Esta incógnita só me revelou o sentido alguns dias depois, quando do púlpito ouvi Igor proferir um inflamado sermão sobre a arte do demónio. Guardo, até hoje, na memória o sentido de tremenda descoberta vivenciada no meu espírito. Esse foi, certamente, o princípio do perdão a Lourenço mas também o do absoluto terror da sua proximidade a mim. E, também, à criança. Ainda que Igor nunca o haja afirmado, daquelas palavras pressenti que havia fundado a crença de que a menina, que anunciara, era indesejada.
Quando o primeiro movimento do concerto chegou ao final, Igor levantou-se e interrompeu a reprodução do CD. Quando retomou o lugar à mesa, afastou o prato para longe. Verifiquei que o jantar ainda estava intacto. Depois cruzou as mãos e poisou-as sobre a toalha. Notei-as, subtilmente trémulas. Observou-me inquisitivo.
"Tenho de partir!...", anunciei, pressentindo que ele já o saberia.
Depois de um silêncio abstracto, interrogou:
"Porquê, Isabel?"
(Continua...)
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