A Bailarina, Romance, Cap. III
No início da noite de sexta-feira Marluce estranhou a presença de uma mulher de meia idade no camarim. Posso me vestir sozinha. Deve estar aqui para outras coisas. Certamente a mulher estaria ali sob as ordens do assistente do diretor do Corpo de Baile, que cuidava dos últimos detalhes antes do início da apresentação. A Professora Ingrid deveria ocupar uma das primeiras filas destinadas a convidados especiais. Os pais de Marluce tinham adquirido os ingressos com antecedência e certamente também ocupariam dois dos bons lugares da platéia. Por algum motivo Marluce pensava em Eleonora. Será que ela está melhor agora, após quase uma semana do ocorrido? Será que lamenta não poder estar aqui, perdendo essa chance? Durante a semana Marluce soube dos vários pontos na cabeça que Eleonora teve de suportar. Estava bem fisicamente. Estaria também emocionalmente?
A despeito dessa repentina preocupação com o estado de Eleonora, Marluce achava-se preparada para fazer parte das “imagens do eterno feminino a alegrar os sonhos de um poeta em busca de um ideal” – Les Sylphides. A coreografia do russo Michel Fokine, com a música de Chopin, constituía-se na suíte de uma dança “em um ambiente romântico à luz do luar”, como dizia um folheto sobre a obra. Sabia que dela seria exigida muita concentração para a realização dos movimentos que favorecessem a atmosfera dessa peça romântica do início do século XX. A mulher no camarim proporcionara-lhe o melhor atendimento possível. Até cafezinho e guardanapo foram providenciados, além de água mineral. Contudo, Marluce observou, enquanto se vestia, que a mulher parecia fazer questão de estar presente, não se preocupando em se manter discreta. Até quando resolveu sair. O que deu a Marluce a chance de poder ler com mais atenção o folder que recolhera sobre a bancada onde pusera suas roupas.
Imbuída de todo um espírito de romantismo, que tinha muito a ver com a cuidadosa criação proporcionada por seus pais, cercada de toda segurança e garantia de que as situações adversas da vida estariam sempre mais próximas dos outros, Marluce dançou com a toda a leveza e graça de que nem ela mesma suspeitava que estivesse ao seu alcance. Embora fluíssem naturalmente, mostrando-se bastante autênticos, seus movimentos realizaram-se com a maior perfeição possível, não podendo ser apontado o menor descuido que tivesse sido provocado por ela. Uma exibição impecável. Uma adequação perfeita à exuberante música do grande Frediryk Chopin.
O grupo todo foi delirantemente aplaudido ao final de espetáculo. Marluce, em especial. O diretor do Corpo de Baile apressou-se em convidá-la para uma tournée na cidade de Blumenau, dali a vinte dias, em meados de outubro. Esperava não ter, como deixou claro, um não como resposta. A Professora Ingrid surpreendeu-se com a performance da aluna, reagindo também de forma alegre e positiva à toda aquela emoção comunicada pela platéia. Compreendeu imediatamente, no entanto, que o lugar de sua querida Eleonora não poderia ser de novo tão facilmente ocupado pela mesma.
Depois da irretocável exibição de sexta-feira, que se repetiu no sábado e no domingo, dentro dos mesmos padrões de qualidade e desempenho, o diretor do Corpo de Baile fez questão de que Marluce tivesse aulas no Teatro Municipal pelo menos duas vezes por semana até à data da viagem para Blumenau. Isso praticamente acabou com as esperanças de Ingrid de ver Eleonora ocupando uma posição que deveria ter sido sua, se não tivesse ocorrido a terrível agressão de que fora vítima. Na verdade, contar com Eleonora também não seria fácil, na medida em que a recuperação emocional da menina se dava de forma irremediavelmente lenta. Certamente ela não poderia voltar às suas atividades normais nem dentro de um mês. Por isso o mais inteligente seria aceitar que Marluce liderasse a equipe das melhores alunas da academia e que, muito provavelmente, fosse apontada como a grande revelação do balé nacional. Tipo do comentário que já pôde ser lido nas colunas especializadas dos jornais da cidade a partir da segunda-feira após o espetáculo. Antônia e Ezequiel guardaram pelo menos dois recortes.
Na terça-feira à tarde, à hora combinada na noite anterior, Ingrid estacionou seu carro em frente ao prédio onde Marluce residia. A movimentada avenida exigia que a menina estivesse na portaria, para que não houvesse problemas com os guardas de trânsito. Marluce deixou a portaria do prédio tão logo avistou o carro azul da professora.
No trajeto no largo calçadão até o carro de Ingrid, Marluce reconheceu-se novamente ansiosa. Atribuía esses assomos de ansiedade ao momento que vivia, tudo tendo começado depois da exibição do fim-de-semana. Lembrou-se dos comentários alegres de seus pais na mesa de jantar na noite anterior, a frente dos recortes de jornais exibidos como dois troféus, e da excitação que haviam criado. Excitação que felizmente fora contida pela voz de Ingrid ao telefone, fazendo-a interromper o jantar para atender a ligação da professora e com ela combinar o encontro do dia seguinte para irem juntas à primeira sessão com o diretor do Corpo de Baile. Notou especialmente o carinho de Ingrid e a forma de tratamento que lhe estava sendo dispensada. O que nunca tinha acontecido.
-Tudo bem, professora?, disse Marluce, entrando rapidamente no carro.
-Tudo, querida, respondeu Ingrid, encontrando tempo para dois beijinhos nas faces da aluna, apesar do apito do guarda.
Saíram apressadamente e Marluce pode observar a desenvoltura da professora no tráfego, conseguindo ultrapassar pela esquerda os dois carros à sua frente para dobrar à direita com o sinal ainda aberto.
-Afonso está nos esperando às três horas. Temos apenas vinte minutos. Estacionamento por ali não é fácil. Ele é muito rigoroso com horário. Vá se acostumando.
Favorecida pelos cuidados da professora com o tráfego intenso, Marluce pôde observar que Ingrid não estava vestida para participar ou mesmo presenciar alguma aula prática. A saia vermelha, que lhe deixavam descobertos os joelhos de pele bem clara, e a blusa de viscose estampada combinavam com o tom ruivo de seu cabelo, que Marluce sabia ser natural. A sandália preta de salto alto realçaria a sua estatura quando saísse do carro. Ela havia se preparado para um encontro social. Logo em seguida retornaria aos seus afazeres na academia. Não haveria porque permanecer no teatro com o diretor do Corpo de Baile e sua equipe. Ingrid não se encontrava com o diretor com a freqüência que Marluce imaginava. De qualquer modo, Marluce percebia que a professora, que insistia em não abusar da maquiagem, resolvera deixar que vissem a bela mulher que era. Marluce, como toda mulher, nunca negligenciara o fato de que saber se vestir era muito importante. E de que isso podia ser tão indispensável, dependendo de quem tivéssemos que impressionar. Tanto quanto o que tivéssemos de dizer.
-Você esteve realmente maravilhosa neste fim-de-semana. Nem tivemos tempo de conversar ontem.
-Acho que todo o grupo, professora. Foi muito bom mesmo. Se a opinião da crítica for a mesma que a do público, a gente vai se sentir mais confiante.
-É verdade. Não podemos dizer que isso não conta. Mas foi realmente impressionante a reação da platéia. Ficaram um bom tempo, no final, aplaudindo de pé. Também o fato de o Afonso ter chamado você e as meninas para essa turneé..., quase não acredito. E a atenção que ele lhe dedicou ao final do espetáculo... Tenho que reconhecer que nem mesmo Eleonora conseguiu isso.
-É mesmo, professora? E ela, como ela está?
-Marluce, você pode me chamar de Ingrid. Acabou de ser promovida, disse sorrindo a professora, aproveitando-se do sinal fechado para olhar demoradamente sua aluna. Fisicamente está bem. Visitei-a no sábado e no domingo pela manhã. Emocionalmente não. Continua praticamente sob o mesmo estado de choque provocado pela ocorrência.
-Muito chato isso, coitada. Ela não deve nem estar indo à escola.
-Não está indo, não. Está sob tratamento psicológico. Iniciou ontem. Eleonora sempre foi uma menina muito meiga e carente. E bastante responsável. Você deve ter percebido que nunca ninguém conseguiu chegar antes dela para as aulas. A sua dedicação era tanta que foi inevitável uma convivência maior entre nós duas. Acabei até, algo indevidamente, dedicando-me a ela mais que a todos.
-Ela deve estar sentindo muito a falta das aulas na academia.
-O pior é que acho que não, Marluce. Sente muito medo ainda em sair sozinha. Voltou-se muito pra dentro do lar, pro carinho da mãe. Está sendo um problema pros pais.
-O que você acha de lhe fazermos uma visita?
-A idéia é boa. Só que não é ainda a hora.