Ah, o nosso velho e bom amigo câncer.
Abri os olhos lentamente. Demorei alguns segundos para me situar e perceber ainda estar no apartamento de Ana. Sentei na cama. Esfregando os olhos. Inchados ainda pelo pouco que dormi. Olhos de cachorrinho, como diria a diabinha. Ana estirada na cama, descoberta, nua. Dormia um sono inocente de anjinha deflorada. Numa posição para lá de libertina. Dei uma inspecionada em seu corpo. Largadinha e alargadinha. Ao que parece fiz um grande trabalho na noite passada, pensei. Em minha boca ainda vagava um sabor do uísque, tabaco e de porra feminina da madrugada anterior. Congratulações, Ana. Melhor maneira de se começar um dia impossível.
Levantei da cama, vesti o roupão e levei minha carcaça até à cozinha para preparar um café. Enquanto a água fervia acendi um cigarro. Ok. Acender um cigarro logo nas primeiras horas da manhã e em jejum é algo meio porco para se fazer, mas precisava oxigenar os pulmões. Quando o café ficou pronto, tomei um gole e lá se foi o gosto de porra feminina. Uma pena.
Depois do café, fui ao banheiro e tomei uma chuveirada. Sorrateiramente voltei ao quarto, onde Ana ainda dormia, surrupiei minhas roupas de lá e fui me trocar na sala, da onde me evadi, como uma sombra sinistra.
Na calçada em frente ao prédio de Ana parei numa banca, olhei um jornal e pronto, descobri surpreso ser Sábado. Eu podia jurar ser ainda sexta. A cada porre, uma nova amnésia, pensei. Mas era Sábado. Definitivamente era Sábado. Inconfundível o dia. Ensolarado. Aquele movimento de pessoas despreocupadas, felizes até, casaizinhos de mãos dadas indo ao cinema. Vovôzinhos e vovózinhas puxando pelo braço os netinhos, provavelmente levando os fedelhos ao zôo para dar pipoca aos macacos, como dizia o maluco da música.
Familia, crianças, macacos, pipoca, zoológico, argh! Deixar um pedaço de mim para a posteridade? Jamais. Bendita vasectomia. Valeu cada segundo dos cortes que fizeram no meu pau.
Um espelho na banca. Olhar brevemente o meu reflexo foi o suficiente para constatar a palidez do meu rosto, a barba por fazer. Um vampiro não teria melhor aspecto. Comprei uma caixa de marlboro. Puxei um cigarro para acender, mas não sem antes dar uma examinada na foto da caixinha. Aquelas imagens um tanto quanto idílicas de fumantes para os quais aparentemente algo falhou. O buraquinho na garganta da traquéia perfurada, o cadáver aberto em V no peito e um corte vertical começando no meio da caixa torácica e terminando no abdômen, a famigerada gangrena com seu insaciável apetite, voraz, devorando tudo, uma perninha aqui, outra acolá ou então qualquer parte mais substancial de um corpo.
Ah, o nosso velho e bom amigo câncer! De todas as doenças é definitivamente aquela que nos oferece o maior número de opções para o fim. E também a que nos proporciona os maiores atrativos. Definhar em uma cama. Com tudo findo, vaidade, desejos, remorsos para aqueles que os têm, sonhos, paixões, prazeres, tendo como lenitivo apenas um pouco de morfina, que a gente vai aplicando a cada novo espasmo de dor. Sublime.
Mas apesar dessas indagações ainda exista o enigma Camila para decifrar. Que obsessão era aquela minha? Estava fundada unicamente no fato dela ser uma grande escritora e eu um merdinha? Ou então dizia respeito àquela carinha bonita, ao par de olhos verdes sem mácula? Pouco provável, pensei. Garotas bonitas já tinha fodido várias. Todas eram. Lindas. Algumas mais apertadinhas, outras nem tanto. Gostosas. Marcantes e por fim...padronizadas.
Seria amor então o que sentia? Mas sociopatas amam? Ou apenas mascaram seus sentimentos, troçando e substituindo o objeto de sua afeição, como se o mundo inteiro fosse uma marionete, uma cobaia gigante e as mulheres brinquedos descartáveis, cuja importância era reduzida e equivalente àquela mesma nutrida por um serial killer em busca da fantasia perfeita, que depois de saciado seu desejo sádico desova suas vitimas inanimadas e anonimamente em uma lata de lixo qualquer?
Eis uma grande questão, que infelizmente eu só conseguiria desvendar no momento em que me encontrasse com a escritora pela primeira vez....