A Bailarina, Romance, Cap. I
As meninas na escola comentavam animadamente como seria o treino na quinta-feira à tarde para o jogo de domingo. Se o treinador colocaria mesmo o ataque titular contra a defesa do time principal para exigir mais das jogadoras tidas como as melhores. Marluce sentia um pouco de inveja de não poder participar do futebol feminino, atividade não muito indicada para moças. Pelo menos para moças do seu tipo, segundo sua mãe, que tinha muita influência sobre ela.
-Não se trata de achar que essa atividade é para mulheres não muito femininas, Marluce. É que, olhe bem pra você: cabelos longos, quase na cintura; seios meio volumosos, pernas longas e rijas, pouco musculosas; cintura discretamente marcando o corpo acentuadamente magro; e finalmente um rostinho angelical, desses que não teriam nada a ver com uma atleta robusta, com disposição suficiente para sair do chão com facilidade para cabecear uma bola e mandá-la ao fundo das redes. Nada a ver, meu amor.
-Puxa, mamãe. Acho que você quer me ver longe disso mesmo. Não precisava caprichar tanto no discurso. Parece até a fala de um locutor esportivo!
-Desculpe, querida. Não fiz por mal. É que vejo você muito mais como uma bailarina, o que você já é. Ou, na pior das hipóteses, numa capa de revista, podendo ser até mesmo essas do tipo “só para homens”.
-Você consentiria que eu posasse nua?
-Isso você teria que perguntar a si mesma. Se você resolvesse jogar futebol, na verdade eu não poderia interferir. Aos dezessete anos já está na hora da gente começar a pensar em tomar as próprias decisões.
Na verdade Marluce fazia balé desde os seis anos. Iniciara numa escola do subúrbio onde morava, com a falecida Professora Carmem, que sempre dissera a seus pais que o destino da menina seria o de se tornar uma “grande bailarina”. No início Marluce era apenas uma aluna aplicada. Depois, sobretudo após o falecimento de Carmem, foi se identificando cada vez mais com o balé, como que talvez procurando fazer jus às previsões de sua antiga professora.
Contudo, quase sete anos depois dos últimos contactos com a Professora Carmem, Marluce continuava achando que o “grande bailarina” usado pela mestra, se fosse o caso, iria se referir mais à sua compleição física do que aos seus atributos artísticos. Pelo menos é o que deduzia, a partir do relacionamento frio e estritamente profissional mantido com a atual professora. O que contrastava com a professora anterior. Pelo fato de morarem próximas, quase sempre Carmem e Marluce iam juntas para as aulas de balé. A professora era também uma visita habitual na casa da aluna, tendo-se estabelecido fortes laços de amizade entre ela e Antônia, mãe de Marluce. A proximidade entre Carmem e Marluce decorria também do fato de haver apenas cinco alunas na turma. Nada comparável com a situação atual, tendo a Professora Ingrid cerca de vinte e cinco alunas em seu curso de balé, ministrado em amplo salão – herança do pai de Ingrid – de um prédio comercial na zona sul da cidade. Marluce morava agora de frente para o mar. Seus pais tinham sabido economizar. Também haviam trocado as salas de cinema do shopping suburbano pelos salões do Teatro Municipal, onde tinham a vaga esperança de um dia presenciar as apresentações da filha única, criada com equilibrado carinho.
O projeto de ingressar na faculdade de medicina, discretamente mais alimentado por ela mesma que pelo desejo de seus pais, poderia vir a interferir com o curso de balé. Mas Marluce não pensava em desistir facilmente, pois já assumira que não poderia viver sem a dança, em que pese os tímidos estímulos que recebia de sua atual professora.
Apesar de tudo, Marluce sabia que poderia eventualmente integrar o Corpo de Baile do Teatro Municipal de sua cidade, por estar entre as quatro melhores alunas da sua academia. Quando havia necessidade de bailarinos para participar das óperas, o diretor do corpo de baile recrutava os melhores alunos das academias com as quais mantinha contactos mais freqüentes. O grupo das melhores alunas da Professora Ingrid era liderado por Eleonora, a preferida da mestra. Marluce achava difícil que ela pudesse ser indicada por entender que Eleonora reunia qualidades bem superiores às suas. O que era reforçado pela atenção, privilégios e carinho com que a melhor aluna era tratada pela professora. Esse tratamento diferenciado não a preocupava ou aborrecia. Talvez por achar que Eleonora fizesse-o por merecer. Estranhamente isso a estimulava a se dedicar mais intensamente às aulas e aos ensaios, talvez por não ter a responsabilidade de se preocupar com os holofotes, no dever de representar da melhor maneira possível o nome da academia. Essa preocupação deixava-a com seus pais, que não escondiam o desejo de vê-la integrando o Corpo de Baile do Teatro Municipal em caráter permanente. Viviam dizendo que a profissão de bailarino, reconhecida e regulamentada por lei (sabiam de cor o número da lei e a data da sua promulgação), faziam dos profissionais da dança uma categoria destinada a contribuir para o desenvolvimento cultural do país.
Essa posição de seus pais confortava-a. Mas não seria o fator determinante na sua dedicação ao balé. Marluce havia há muito introjetado a idéia de que a dança era como um alimento que a ajudava a viver. Sentia-se solta, livre, leve para transitar com facilidade pelos árduos penhascos, ladeiras e subidas, campos macios ou estradas esburacadas, chão de tristezas ou de efêmeras alegrias em que se tornam de repente muitos momentos de nossas vidas. A dança representava para ela um elixir de poderoso conteúdo moral, capaz, ao final de uma sessão, de curá-la de um estado emocional comprovadamente depressivo. Ou de recarregar-lhe os neurônios de um potencial afrodisíaco, predispondo-a ao sabor de experiências sensoriais ou sensuais de surpreendente vigor. De um modo geral reservadas para o refúgio solitário de seu quarto, à hora de dormir. Sob o edredon macio numa noite de inverno.
Marluce acompanhava sempre com interesse a evolução da dança, que exigia agora do bailarino um trabalho de corpo e até uma performance teatral, aspectos que considerava importantes, porém secundários em relação ao “culto ao corpo”. Porque este se ligava diretamente ao quadro de ”vida, saúde e energia” proporcionado pela dança e que era o elemento primordial na sua dedicação ao balé.
Para ela não havia preferência por estilos. A dedicação era a mesma, quer se tratasse do estilo clássico, com seus “tutus” e sapatilhas de ponta, ou a dança moderna ou contemporânea, quando as malhas de lycra passaram eventualmente a fazer parte dos figurinos e os pés podiam ser vistos descalços nos palcos. Sentia-se levemente atraída pelos movimentos corporais estranhos à dança clássica e lamentava que a Professora Ingrid não se ativesse mais ao Balé Stagium, como na única vez em que durante um mês detiveram-se na peça “Kuarup”. Achou que a música original das tribos indígenas do Xingu poderia de alguma forma ter algo a ver com o seu estilo de vida.