Não houve protestos. Não houve súplicas.

No fim das contas, acabei aceitando. Realmente não tive opção.

Logo no dia seguinte, ainda na cama, quis saber se eu aceitaria o emprego ou não. Abri os olhos e ela estava deitada, ao meu lado, observando-me.

- Então, aceita? – ela perguntou.

- O quê?

- O emprego. Trabalhar comigo.

Sabia que ela não daria sossego enquanto eu não lhe dissesse sim.

- Aceito. – falei rendido.

Ela pulou por cima de mim e nós fizemos amor novamente. Depois, dormimos por mais de uma hora e fomos para a editora. Lá, ela me apresentou aos seus colegas da diretoria. Trocamos as palavras de ocasião e Ana me levou até uma sala. Um belo escritório com uma ampla visão. Quis que eu começasse imediatamente. Uma funcionária trouxe-me uma pasta. Era um livro que eu deveria avaliar para já ir ambientando-me ao novo trabalho. Achei aquilo engraçado. Quando a mulher saiu, fui até à cafeteira e peguei um café. Acendi um cigarro e joguei as pernas em cima da mesa. Coloquei aquela montanha de folhas no meu colo e comecei a leitura. A autora era uma sujeitinha chamada Camila Peixoto. Antipatizei com o nome e pensei que o livro deveria ser uma bosta. Não era. Na décima página já estava preso. A mulher tinha estilo. Imagens para uma descrição que jamais me ocorreriam. Como escritor, diante dela, me senti um merdinha. Nem em mil anos conseguiria escrever páginas como aquela. Veio-me de repente o tamanho gigantesco da minha mediocridade. Pois bem, a mulherzinha tem talento, pensei, vamos ver se consegue manter o tom até o final. Quando alguma cena me empolgava, pegava mais café, acendia um cigarro e dava uma corrida até à janela, olhava o movimento da rua e depois voltava. Algumas horas depois, quando Ana veio me buscar para o almoço, me encontrou entretido com uma folha na mão e completamente subjugado pela narrativa da escritora.

- Olá! – disse-me sorrindo.

Não escutei a saudação.

- Carlo, acorda!

Levantei a cabeça.

- Oi Ana. – falei, enquanto ordenava as folhas para continuar a leitura mais tarde.

- Vamos almoçar. – convidou-me.

Ana parecia muito feliz, entretanto,diante dos outros funcionários, mantinha o tom informal de uma superior perante o subalterno. Ao entrarmos no elevador, ela encontrou alguns colegas que a cumprimentaram e a mim também. Posicionei-me atrás de seu corpo e enquanto ela conversava com um sujeito qualquer, eu a acariciava. Quando a libidinagem se tornou muito inconveniente, ela me deu um coice com o seu salto.No entanto, ao descermos, ela estava rindo.

- Você é maluco! Completamente maluco!

Michele me viu da recepção. Fiz um aceno.

Paramos naquele mesmo lugar, onde havíamos tomados uns drinks antes da viagem. Nem todos da editora almoçavam lá. Somente alguns altos funcionários do alto escalão. Ana já tinha mesa cativa e foi onde nós sentamos. Não estava com fome e por isso, pedi uma bebida. Ana não me acompanhou e quis um suco. Em seguida, começou a perguntar como eu estava me sentindo, se estava feliz, se precisava de alguma coisa e mais um inferno de perguntas.

- Não preciso de nada. Está tudo perfeito.

Ainda assim, ela disse que mandaria instalar uma poltrona para que o lugar ficasse mais confortável. Também mandaria vir um computador. Quando ela conseguiu calar um pouco a boca, perguntei:

- Essa Camila Peixoto já publicou alguma coisa ou esse é o primeiro livro dela?

- Que Camila Peixoto?

Fiz um gesto de impaciência com as mãos e ela entendeu.

- Ah! A autora do livro que você está lendo né?

- Ela mesma.

- Não, é o primeiro livro dela. Por quê? Você gostou?

- Assim. Assim. – falei, balançando desdenhosamente uma das mãos. Em seguida, saquei um cigarro do bolso e o acendi.

O garçom apareceu e serviu o almoço. Primeiro cuidou de Ana. Quando pegou o meu prato para me servir, pedi que colocasse bem pouca comida e que me trouxesse mais um uísque.

- E você, já conheceu essa Camila? – quis saber, continuando o interrogatório.

- Não, Carlo, ainda não, mas por que o interesse? – questionou Ana em alerta..

- Isso faz parte do trabalhinho que você me arrumou, não faz, quer dizer, conhecer um pouco da vida dos escritores, dos quais estou avaliando o trabalho?

- Calma, Carlo! Só estava curiosa. Quando você voltar, peça pra Roberta lhe trazer a ficha dessa Camila. Ok?

- Maravilha.

E não toquei mais no assunto. Minutos depois, cada um seguiu rumo diferente. Ana foi ao Shopping, onde um dos escritores da editora promovia uma sessão de autógrafos. Quis que fosse com ela, mas eu não quis. Preferi voltar para a editora e continuar com a leitura da história da escritora. Foi o que fiz por aproximadamente umas três horas e, quando terminei, estava aniquilado. Amontoei novamente as folhas eu sua pasta e as fechei. Afrouxei o nó da gravata e apoiei os dois cotovelos na mesa, segurando o queixo com uma das mãos. Quanto ao meu despeito, não cabia em apoio nenhum. Alguém bateu na porta e, em seguida, entrou. Era a secretária que vinha com a ficha da escritora. Entregou-me e saiu apressada. Deixei a ficha na mesa e fui até à janela fumar um cigarro. Lá fora estava um dia bonito. Muito Sol e as pessoas transitavam apressadas. Olhei para um bar. Não era o mesmo onde tinha almoçado. Era um lugar muito mais simples, no qual apenas alguns velhos aposentados bebiam. Nesse instante, desejei estar lá também. Longe de tudo, principalmente da minha insipidez como escritor, talvez lá, naquele bar, conseguisse esquecê-la. Olhei o meu relógio. Quatro da tarde. Voltei para a mesa e, impaciente, fiquei remexendo em alguns papéis. Por fim, não agüentei mais. Levantei-me, apanhei o paletó, segurei-o com uma das mãos. Na outra, ia a pasta com os escritos de Camila, juntamente com o envelope que continha a sua ficha. Tranquei a porta e corri para o elevador. Ele estava no subsolo. Resolvi descer pela escadaria mesmo. Quando cheguei à recepção, escorei uma das mãos numa parede e respirei fundo em busca de oxigênio. Depois disso, me senti melhor. Michele ainda estava trabalhando, sentada no seu posto da recepção. Pretendia passar direto por ela, mas a garota me viu e chamou.

- Como? Já vai embora? – disse-me.

- Já. – respondi, sem o mesmo ânimo demonstrado em nossa primeira conversa. Ela percebeu e ficou meio sem jeito. Recolheu o sorriso da cara e falou desculpando-se:

- Sinto muito. Não quis bancar a curiosa.

Disse isso e abaixou os olhos em direção à minha pasta. Parecia ser uma garota muito tímida. E como nos últimos tempos só estava saindo com vagabundas, senti vontade de conversar com uma mulher de gênero diferente.

- Não! Não é nada disso, Michele! Não há pelo quê se desculpar. Apenas o meu dia que não foi muito bom. Primeiras horas no novo emprego. Uma chatice. Você deve saber como é.

Ela disse que sim, que sabia. Aquele terrível medo de errar e fazer alguma besteira etc.etc.etc. Fiquei ouvindo e balançando a cabeça em sinal de concordância, esperando que ela terminasse. Quando isso finalmente aconteceu, perguntei se não poderia se encontrar comigo depois do trabalho. Disse-lhe que estaria no bar da rua de trás e que seria muito bom poder conversar um pouco com ela, conhecê-la. Michele me olhou por um minuto e por fim, num tom de voz quase inaudível disse-me que sim, que iria.

- Você não vai demorar muito, vai? – perguntei.

Explicou que não. Que sairia no máximo em uma hora. Depois de tudo acertado, caminhei em direção ao portão e saí. Meu celular tocou, mas não atendi. Do bolso da camisa, puxei meus óculos escuros e o coloquei no rosto. Comecei a andar e entrei à esquerda para contornar o quarteirão. Num passe de mágicas a balbúrdia da avenida principal desapareceu. O bar ficava numa ruazinha tranqüila. Levantei a cabeça e enxerguei os fundos do prédio da editora. Também vi a sala que me foi designada e ao vê-la senti asco de mim mesmo. Continuei andando. Uma vontade alucinante de fumar, mas os cigarros tinham acabado. Quando cheguei ao barzinho, fiquei entusiasmado. Era escuro. Pequeno. Sujo. Piso de madeira marrom escuro. Balcão da mesma forma. Um punhado de bancos com assentos confortáveis, o quê, aliás, era o único luxo do lugar. Uma televisão no alto da parede. As indefectíveis garrafas de bebidas por todos os lugares. Expostas aos olhares famintos dos bêbados da região.E, finalmente, um velho carrancudo e não muito limpo, que era o sacerdote responsável pelo funcionamento daquilo tudo. Uma taverna fétida, mas aconchegante. Em suma, o meu tipo de lugar. Entrei. O velho me viu, mas nem me cumprimentou e muito menos fez menção de se levantar do seu banco. Ocupei um lugar perto da porta. Estirei meu terno e a pasta em cima do balcão. Dois homens bebiam e me olharam com curiosidade. Disse-lhes boa tarde e fiquei esperando para ser atendido. O velho continuava ignorando a minha presença. Impaciente, dei um grito chamando-o. Ele me olhou aborrecido e finalmente resolveu vir me atender.

- Uma vodka. – falei, apontando para uma garrafa.

- Pura? – perguntou o sujeito com um forte sotaque português.

Anui com a cabeça. A ficha de Camila estava na minha frente. Peguei o envelope e olhei para ele, tentando me decidir se o abriria ou não. Quem será afinal essa mulher, pensei. Fiz com que o sujeito deixasse a garrafa de vodka no balcão. Enchi meu copo. Os dois velhos já tinham ido embora e eu estava sozinho. Apareceu uma moça. Era a filha do português. Cabelos encaracolados e uma pele morena. Muito bonita. Ela passou por mim e foi direto ao pai. Entregou-lhe um papel que parecia ser uma conta paga e entrou por uma portinhola que dava acesso à cozinha. Em seguida, começou a fritar algumas coxinhas. O cheiro era bom, mas eu não estava com fome. Tentava não olhar para a ficha, mas não conseguia. Finalmente, enfiei a mão dentro do envelope e retirei duas folhas que estavam lá dentro. Quando iria começar a ler uma delas, encontrei a foto. Sim. Fiquei abismado. Era uma garota. Sim! Uma garotinha! Uma maldita garotinha!Uma face pálida e um par de olhos verdes sem mácula. Foi inevitável não me sentir um idiota. Não me lembrar de todo meu sacrifício inútil para tentar escrever alguma história razoável e ser atropelado pelo talento natural de uma escritora iniciante. Nesse momento, a filha do português apareceu. Trazia numa das mãos uma travessa de coxinhas. Olhou para mim e sorriu. Transpirava, tendo alguns fios do seu cabelo crespo colados na testa.

- Acho que vou querer uma. Pega pra mim? – pedi, apontando para na direção da comida.

A garota me serviu. Começamos a conversar, mas o português deu um grito chamando a filha de volta à cozinha. Peguei o salgado e experimentei, mas meu estômago não suportou e rebelou-se, regurgitando a coxinha num cesto de lixo, que estava no chão, aos meus pés. Que maravilha, pensei, nem vinte e cinco anos ainda e já com as vísceras completamente apodrecidas. Mas e agora, o que vou fazer, perguntei a mim mesmo, ficar trancafiado na editora trabalhando? Ou o que é mais repulsivo e degradante, me transformar num gigolozinho de executivas? Peguei os papeis de Camila e os guardei de novo no envelope, contudo, a folha, na qual estavam anotados os seus dados pessoais, coloquei na minha carteira, junto com a foto. Dei uma espiada na garrafa de vodka e ela já estava pela metade. Era a única bebida que realmente conseguia me deixar bêbado. E louco. Levantei por um instante e fui até a calçada respirar. Acendi outro cigarro. Bagas de um suor gélido e rancoroso lavavam minha testa. Meus pensamentos na cabeça giravam, giravam, giravam, mas sempre paravam na imagem de Camila. O barulho da TV incomodava. No noticiário, uma velhinha chorava. Velhas suplicantes não me comovem mais, pensei, aliás, nunca comoveram. Pedi à morena que desligasse a televisão. Foi o que ela fez. Uma olhada no relógio. Cinco e meia. Michele não vem, pensei. Um equívoco. Dez minutos depois ela apareceu. Ainda com o seu uniforme de recepcionista. Mascarei minha cara de transtornado e fui ao seu encontro. Beijei seu rosto comportadamente e ofereci um lugar para ela se sentar.

- Então você veio. – disse-lhe.

- Eu prometi. – falou, olhando para a minha garrafa de vodka.

- Você já bebeu tudo isso? – ela perguntou.

- Já e pretendo beber muito mais. E você? O que vai querer?

- Um refrigerante.

- O quê! Uma puritana?

- Não sou puritana – respondeu constrangida – apenas não gosto de beber.

- Tanto melhor! – exclamei. Em seguida chamei o português e pedi o refrigerante de Michele. Depois que trouxe a bebida, estacou na nossa frente e ficou olhando fixamente para Michele, como se estivesse se perguntando o que ela estaria fazendo na companhia de um sujeitinho pulha como eu.

- É só isso. Pode ir embora agora. – falei ríspido.

O homem me olhou com rancor, mas obedeceu. Enchi o copo de Michele com o refrigerante, mas, maldosamente, quando ela foi ao banheiro, acrescentei algumas doses de vodka em seu copo. A morena percebeu a minha operação e sorriu-me com cumplicidade. Michele voltou e sentou-se novamente ao meu lado, no banco. Perguntei se ela não queria ira para uma mesa e ela me disse que sim. Escolhi um lugar meio obscuro, no qual estaríamos ao abrigo da indiscrição do português. Michele parecia deslocada. Ao que parecia, não estava acostumada a freqüentar inferninhos como aquele. Segurava seu copo desajeitadamente e me olhava com uma expressão de espanto. Fiquei aguardando que ela provasse o refrigerante. Ela bebeu um pequeno gole e não notou a adulteração.

- Por que você veio aqui? – perguntei de súbito.

- Você me convidou.

- É que você não me parece o tipo de garota que saí com um sujeito sem conhecê-lo direito.

- E não sou! – disse ela taxativamente.

- Então?

Michele baixou os olhos. Pegou o copo. Bebeu mais um gole da sua bebida. Baixou os olhos novamente e, depois de alguns segundos de hesitação, mirou meu rosto e disse:

- É que eu gostei de você. Desde que te vi parado lá na minha frente, no saguão, penso em você todo o tempo. Foi uma coisa instantânea. Sou muito tímida, sabe. Mas com você não! Com você tudo se torna mais fácil. Falar se torna mais fácil.

É. Outra. Pensei. E lhe sorri com complacência. Enchi meu copo com mais uma dose de vodka e bebi. Acendi outro cigarro.

- Você fuma? – perguntei, oferecendo-lhe meu maço.

Ela meneou a cabeça. Negativamente.

- Bem, acho que vou beber alguma coisa. Mas não vodka que isso é muito forte. Peça alguma coisa mais leve pra mim. – disse Michele.

- Peço.

Levantei e fui até ao balcão. Voltei com uma garrafa de vinho. Enchi um copo e lhe entreguei. Ela bebeu quase metade.

- E o que mais? – perguntei.

- O que mais o quê. – quis saber Michele.

- O que mais você gostou em mim?

- Do seu rosto. – respondeu ela de pronto.

Virei a cabeça e olhei aborrecido em direção à rua. Noite já.

- Vem, vamos sair daqui. – falei de súbito.

- Mas para onde? – perguntou Michele.

- Não sei. Apenas quero sair daqui.

- Está bem. – ela anuiu.

Pedi que o dono do bar me trouxesse a conta. Ele me atendeu prontamente, talvez feliz, por finalmente se livrar da minha sombria presença. Deixei o dinheiro em cima da mesa, vesti meu terno e agarrei o braço de Michele, arrastando-a para a calçada.

- Pra onde nós vamos? – perguntou ela novamente.

Não respondi. Não estava mais tão abafado. A noite trouxe consigo algumas nuvens. Ventava. Michele parecia estar com frio. Passamos rente a um ponto de ônibus e ela estacou.

- É aqui meu ponto.

- E daí? – eu disse.

- Vou esperar meu ônibus.

- Vai?

Ela fez que sim com a cabeça. Não havia mais ninguém na rua, apenas nós dois. Na nossa frente um terreno baldio. Virei minha cabeça em direção a ele. Instintivamente Michele fez o mesmo e em seguida, recuou dois passos e encostou-se a um poste. Fui em direção a ela e a beijei. Ela deixou. Suspendi o beijo e segurei a sua mão. Estava rendida e nós atravessamos a rua. Não precisei dizer nada. Na parede do terreno baldio, uma enorme fenda. Foi por onde nós entramos. Um rato nos viu e correu assustado. Michele também se assustou, mas não correu. Ficou parada e olhando.

- Aqui não! É sórdido! – tentou ainda dizer.

Em vão. Novamente uma parede. Novamente um beijo. Minhas mãos levantaram a sua saia e alcançaram a sua calcinha. Outra fenda. A umidade do seu sexo inundava meus dedos.

- Agora ajoelha! – gritei.

Não houve protestos. Não houve súplicas. Ela obedeceu. Alguns minutos depois estava sentada, com sua roupa descomposta e um filete branco escorrendo de seus lábios. Foi quando saí. Meu apartamento não ficava longe, mas eu fiz sinal e parei um táxi. Realmente, eu tinha hábitos de uma prostituta. Quando cheguei em casa fui direto para cama. Estava tão bêbado que não consegui tirar a roupa. Deitei na cama e vomitei. Com uma das mãos, limpei a sujeira do canto da boca, mas não tive forças para me lavar. Dormi bem. Acalentado pela minha imundice.