Um coiote farejando sangue

Gabriel deu sorte e foi embora antes do temporal. Alguns outros fizeram o mesmo e se evadiram antes do anoitecer. Maurício, o figurão da editora, e a esposa ficaram. Eu também fiquei. Assim como Ana, que dormia despreocupada no quarto o seu sono de bêbada. Além de nós, Gabriela e Paula. Todos estavam conformados, exceto Maurício. Andava de um lado para outro da sala, resmungando ter um compromisso importantíssimo para à tarde do dia seguinte. Se aquela chuva não parasse, as estradas ficariam inacessíveis e ele não poderia sair daquele lugar estúpido. Era o que dizia. Perguntou ao dono da pousada quando a chuva pararia.

- Talvez chova por uns dois dias. - disse Roberto. Ora, como não havia mesmo alternativa, tratei de relaxar e afundei o meu corpo numa das poltronas antigas da sala. A lareira estava acessa e emanava um calor agradável. A chuva, lá fora, permanecia intensa e também fazia muito frio. O termômetro da sala marcava quatro graus. Estava escurecendo e duas cozinheiras preparavam o jantar. Isabela, junto com as outras mulheres, também se acomodou na sala. Todos estavam tranqüilos. Maurício, no entanto, continuava a reclamar.

- Droga, Roberto, por que você não avisou que o tempo aqui é está porcaria! E de quem foi a idéia idiota de fazer essa festa aqui?

Roberto meio constrangido ainda tentava explicar, mas era em vão. O homem não queria entender. Houve uma discussão ríspida e Maurício foi para o quarto. Sua mulher fez o mesmo. Minutos depois começou uma gritaria vinda do aposento do casal.

- Eu vou embora hoje! Você vem comigo ou não? Vamos, responda!

A mulher ainda tentava argumentar, só que era inútil. Maurício a interrompia, berrando. Ao perceber que não conseguiria mesmo acalmar o idiota, Lúcia começou a chorar. Percebi que o seu choro era bem ritmado. Não eram daqueles que começam numa melodia grave para depois ir afinando de maneira ridícula no final. As mulheres da sala estavam indignadas. Isabela implorou para que o marido fosse até lá e acabasse de uma vez com aquilo. Era exatamente o que ele ia fazer, mas não foi preciso, pois Maurício saiu bruscamente do quarto. Passou correndo por nós, abriu a porta e desapareceu na noite gelada. Chovia muito e forte. Isabela e as outras garotas acorreram até o quarto para descobrirem o que havia acontecido com Lúcia. Fiz o mesmo. Encontramos a mulher espatifada no assoalho do aposento. Seu nariz sangrava. O vestido tingido de sangue. Isabela e Paula colocaram-na deitada na cama. Gabriela foi à cozinha e voltou trazendo algumas pedras de gelo. Roubei duas delas e as arremessei no meu copo de uísque. Em seguida, me escorei na porta do quarto e fiquei observando a cena. Um coiote farejando sangue! A degradação daquela mulher me excitou. Tratei de arraigar a cena no cérebro. Talvez pudesse usá-la em algumas das minhas histórias. Puxei a minha camisa para fora da calça. Não queria que ninguém percebesse minha ereção. Gabriela colocou as pedras dentro de um lenço e o pressionou contra o nariz de Lúcia. Como tudo já estava bem e nada mais emocionante aconteceria, deixei o quarto e voltei à sala. Senti fome. Aquele espancamento aguçou meu apetite. Acendi um cigarro e fiquei esperando a comida. Foi quando Ana apareceu:

- O que está acontecendo? - perguntou, sentando-se ao meu lado.

- Uma briga.

- Como?

- Maurício bateu na mulher. - expliquei.

- Sério?

- Não está ouvindo o choro?

Ela fez com a cabeça que sim e cobriu as costas com um cobertor abandonado ao seu lado, no sofá. Pousou uma das mãos na cabeça e reclamou que ela doía.

- Quer um café? - perguntei.

- Não obrigado.

- Conseguiu dormir um pouco?

- Sim consegui. Bebi demais e não estou acostumada. Sinto muito ter saído daquele jeito.

- Não foi nada. Logo começou a chover e a festa acabou.

- Gosto de você - disse Ana - sabe ser compreensível. Obrigada.

- Não há o que agradecer, afinal, somos amigos, não somos?

- Sim, somos! - confirmou Ana, estendendo-me a mão.

Roberto e as três garotas voltaram para sala. Começaram a discutir a agressão de Maurício. A mulher, Lúcia, ficou descansando no quarto. Isabela quis lhe fazer companhia, mas ela quis ficar sozinha. Disse que precisava pensar.

- Oi, Ana. Que bom que acordou! Já ficou sabendo o que aconteceu? - perguntou Roberto.

- Já fiquei sim. É lamentável. Sinto pelo transtorno. E o Maurício, já voltou?

- Ainda não.

- Quando voltar, falo com ele!

- Vai ter que pedir desculpas para a mulher! - intrometeu-se Isabela.

- É verdade. - assentiu Ana, balançando a cabeça.

Fiquei fora da conversa. Toda aquela solidariedade feminina me interessava muito pouco. Depois de uns vinte minutos à espera que Maurício voltasse, Roberto achou melhor que começássemos a jantar e para isso fomos à cozinha. A mesa já estava arrumada. Sentei ao lado de Isabela e Ana. Paula, na minha frente. Roberto ocupou a cabeceira. Enchi meu prato e comecei a comer, em silêncio. Roberto e Ana conversavam. O homem dizia que talvez a chuva parasse.

- Espero que sim. - disse a executiva.

Nesse momento, observamos um vulto deslocando-se rápido por nós. Era Maurício voltando e indo direto para o quarto da mulher. A porta estava trancada e ele começou a bater, gritando para que Lúcia a abrisse. Ela não respondia e o homem gritava cada vez mais alto.

- Não. Não é possível! Será que esse idiota não vai parar nunca? - falou Ana, levantando-se em seguida. Automaticamente todos fizemos o mesmo. Quando a comitiva chegou na frente do rapaz, ele parou de bater.

- O que vocês querem? - gritou.

Ana se destacou do grupo e foi até ele.

- O que você está fazendo, Maurício, ficou maluco? - perguntou, ao mesmo tempo em que puxava o braço do rapaz e o arrastava para um quarto. Enquanto eles discutiam, fomos para a sala. Quando finalmente a discussão cessou, Ana reapareceu. Estava com o rosto vermelho e sentou-se ao meu lado.

- Acabou? - perguntei.

- Sim, Carlo. Finalmente.- disse Ana, arrumando alguns fios de cabelo que se alvoroçaram pela discussão.

- Roberto, falei pra ele dormir em outro quarto. Não tem problema, não é? Não quero esse animal perturbando Lúcia ainda mais.

- Ora, Ana, é claro que não! - respondeu Roberto com a solicitude abjeta de sempre.

- Eu, por mim, punha esse cafajeste para fora hoje mesmo! - esbravejou Isabela.

Por fim, depois de alguns minutos tudo se normalizou. A chuva estava fraca, quase inexistente, mas o frio continuava incômodo. Isabela sugeriu um drink. Foi à cozinha e com a ajuda de uma das empregadas preparou um vinho quente. Trouxe a bebida para sala. Ana, ao contrário do que imaginei, quis beber também e encheu uma caneca de vinho. Eu dispensei. Decidi continuar com o meu uísque. Roberto foi até uma das prateleiras e pegou uma garrafa. Já era tarde. Onze da noite. Mesmo assim os empregados não haviam recebido autorização para dormir. Ana estava ao meu lado, no sofá. Sua cabeça estava recostada sobre meu ombro e ela segurava minha mão. O restante do grupo conversava. Lúcia continuava trancada no quarto e nem ao menos aceitou jantar. Maurício também não quis nada. Quando já estava na segunda dose do meu uísque, Ana inesperadamente convidou-me para um passeio. É claro que aceitei. Isabela achou loucura e disse que a noite sair naquela noite gelada. Ana ignorou o comentário, e me conduziu pela mão, levando-me até a porta. Saímos. Ventava. O frio era insuportável. Ana protegeu suas costas com o cobertor e me abraçou. O calor do seu corpo era bom.

- Para o lago? - confirmei.

- Para o lago. - confirmou Ana.

Seguimos pela trilha. Ana agarrou-se a mim com mais força.

Ao chegarmos no lago, encostei as costas numa das árvores e bebi um gole do uísque. Ana me abraçou. Enlacei sua cintura com cuidado.

- Muito bom você estar aqui comigo. - disse Ana e virou o rosto em direção ao meu. Olhou-me por um instante e em seguida me beijou. Quando comecei a exploração do seu corpo, ela me faz parar. Pegou o seu copo de vinho e bebeu.

- Me dá um cigarro. - me pediu.

Tirei o maço do bolso e lhe entreguei um cigarro. Ela abaixou-se com o cigarro na boca e eu o acendi. Deu uma longa tragada e sentou-se no chão. Fiz o mesmo. Novamente ela envolveu suas costas com o cobertor.

- Preciso revelar um segredo pra você. - disse-me.

- Acho que já sei o que é.

- Sabe? - perguntou, olhando para baixo e fugindo dos meus olhos.

- Sei. É Gabriel, não é?

Continuou com os olhos abaixados e não respondeu.

- Então, não é isso? Falei besteira?

Levantou vagarosamente a cabeça e a virou em direção ao lago. Acompanhei seu olhar.

Enfiou o braço ao redor do meu e abandonou novamente a cabeça no meu ombro.

- Eu o amei muito, sabe. Até hoje sua presença incomoda. Vê-lo se destruir desse jeito acaba comigo. Ele está se matando, se matando! - exclamou, numa voz estrangulada e caindo em prantos. Enquanto chorava, estiquei meu braço e agarrei meu copo, bebi uma pequena dose de uísque e olhei distraído as trevas da noite, um tanto enojado de tédio por estar sendo exposto àquela sessão sentimental promovida pela executiva. Fiquei em silêncio à espera que ela continuasse. Quando parou de chorar, prosseguiu:

- Ele tinha sido mandado embora da faculdade quando o conheci. Foi há alguns anos. Eu estava iniciando meu trabalho na editora e fui enviada para convencê-lo a publicar alguns dos seus escritos. Gabriel era conhecido por alguns textos que publicou em revistas especializadas. Na de Paula, por exemplo. Só que nunca havia aceitado reunir o que escreveu num livro. Fui incumbida de fazê-lo mudar de idéia. Nessa época ainda era possível encontrá-lo sóbrio.

- E você conseguiu? - perguntei, demonstrando em minha voz um interesse que estava longe de sentir.

- Não foi fácil, mas sim, eu consegui! Assim que cheguei à cidade, precisei andar uns dois dias à sua procura. Ninguém sabia onde ele estava. Sua reclusão já durava um mês. Por fim, depois de muita insistência, consegui encontrar um professor que me deu uma informação. Disse-me onde Gabriel estava. Ficou feliz que alguém fosse averiguar o estado do amigo. Quando o vi, não me impressionei. Estava bêbado e com uma garrafa de uísque ao seu lado. Resumidamente lhe fiz a proposta da editora. Quando terminei minha exposição, Gabriel não disse nem sim nem não. Falou que precisaria pensar e que eu poderia dormir na cabana. Aquela proposta me pareceu descabida, mas estava querendo subir na editora e por isso, disposta a tudo. Se conseguisse sua adesão, poderia galgar algumas posições entre os membros da diretoria. Para resumir, aceitei, ele aceitou que a editora editasse seu trabalho e o resultado disso foi que nos envolvemos e passamos a morar juntos no meu apartamento. Ele viveu comigo por pelo menos um ano. Só o mandei embora, quando percebi que a sua única intenção era beber até morrer. Tentei ajudá-lo, mas foi em vão. Ao anúncio de que deveria deixar minha casa, ele não fez nenhum esforço pra ficar. Simplesmente arrumou suas coisas e saiu. Até hoje não sei se ele um dia gostou de mim. Demorei muito para tirá-lo da cabeça. Não gosto de contar essa história pra ninguém, Carlo, apenas estou te contanto, porque sinto que você é um rapaz correto.

Mal sabia ela, coitada.