Gabriel, o velho amigo
Chegamos depois da meia noite. A viagem foi tensa, sinuosa. A pista pequena. Havia poucos lugares para a ultrapassagens. Jamais gostei de estradas. Havia sempre um mau pressentimento, no entanto, depois de algumas horas me sentia razoavelmente bem. Ana era uma companhia agradável e o perfume delicioso daquela mulher tomava conto de todo o ambiente. Às vezes eu me perdia observando os traços finos de sua face. Num dado momento, ela percebeu e me fitou divertida com o canto dos olhos.
- O que foi? Você está me olhando com uma cara. - disse Ana.
- Não foi nada. - despistei.
- Então, mais calmo agora? Nunca conheci alguém que sentisse medo de estradas.
- Mas eu sinto – respondi sorrindo.
Ana ficou pensativa e continuou dirigindo. Não demorou muito e chegamos ao lugar. Era, como Ana antecipara-me, uma enorme casa colonial que servia de pousada. Ficava numa montanha bem isolada de tudo. Paramos o carro e descemos. Pegamos uma trilha e caminhamos em direção ao casarão. Todas as luzes apagadas.
- Acho que estão dormindo. - comentei.
- Que estranho - disse Ana, irritada - eu tinha avisado que viria hoje.
- Vamos acordar todo mundo então.
- Eles bem que merecem. – disse-me Ana, aparentemente irritada com a situação.
Só que não foi preciso. Do interior da pousada surgiu um homem, vindo em nossa direção. Era o dono do lugar e amigo de Ana. Devia ter um pouco mais de cinqüenta anos. Os cabelos eram grisalhos, no entanto, ele ainda tinha uma aparência rija. Era apenas um pouco mais baixo do que eu.
- Oi, Roberto, pensei que ia ter que dormir no carro.
- Ana, minha querida, sinto muito! Estava meio ocupado lá dentro e não ouvi o barulho do carro. - justificou-se Roberto, olhando-me com curiosidade. Ana percebeu e me apresentou.
- Esse aqui é Carlo Pinheiro. É escritor e faz algumas traduções para a editora.
- Como vai, Carlo? Seja bem vindo!
Fiz um cumprimento, mastigando um oi meio burocrático. O homem pareceu não notar a minha frieza e nos acompanhou sorridente à pousada. Nossos quartos já estavam arrumados e Roberto nós levou até eles. O meu ficava encostado ao de Ana. Despedimos-nos e cada um entrou no seu. Joguei minha mala dentro do guarda roupa e tomei um banho. O frio fustigava. Vesti um pijama e me enfiei embaixo dos cobertores. Nem consegui reparar direito no quarto. Muito sono.
Acordei no dia seguinte com um rumor de vozes vindo da cozinha. Apesar da vontade de dormir mais um pouco, quis conhecer de uma vez os idiotas com os quais seria obrigado a passar aqueles dois dias. Vesti uma roupa e fui fazer contato. Ao passar por uma das empregadas da pousada, perguntei se todos já haviam levantado. Ela me disse que sim e indicou o caminho da cozinha onde provavelmente estariam tomando um café. Enquanto caminhava passei os olhos pelo interior da casa, fazendo uma rápida inspeção. Era um imóvel bem cuidado, no entanto, os móveis não eram luxuosos. Objetos rústicos, já que Roberto era um apreciador de antiguidades. Aquele lugar era um autêntico museu. Infelizmente nunca gostei muito de história e toda aquela parafernalha antiga não me comoveu. Na cozinha, encontrei três mulheres conversando. Uma delas não aparentava mais que dezoito anos. Possuía um rosto muito bonito. Oval e seus cabelos lisos não passavam dos ombros. Sua testa era recoberta por uma franjinha que lhe dava uma aparência bastante infantil. As outras eram duas velhas. Uns trinta e cinco mais ou menos. Também não eram feias.
- Olá. - falei, aparecendo na porta da cozinha.
As três interromperam a conversa e viraram os rostos na minha direção. Observaram-me por alguns segundos como se quisessem me identificar.
- Olá. - responderam finalmente.
- Você chegou ontem? - quis saber a mais nova.
Puxei uma cadeira e sentei ao lado delas.
- Sim - comecei - depois da meia noite. Aparentemente vocês dormiam.
- Qual o seu nome? - perguntou-me uma das velhas.
- Carlo.
Ela me apresentou às amigas. A mais nova se chamava Isabela e era mulher de Roberto. A outra se chamava Gabriela. Era poetisa. Já havia publicado dois livros. Era loira e demonstrava uma grande indiferença por tudo à sua volta. Ficou calada a maior parte do tempo. E coisa incrível: Pareceu não gostar muito de mim!
- E você? - perguntei logo após ela ter feito as apresentações.
- Paula. - respondeu.
Era crítica literária e escrevia para uma revista associada à editora.
- E você, o que faz? - perguntou Isabela.
- Faço apenas algumas traduções. - respondi com modéstia, embora o tom da minha voz quisesse dar a entender que não era só isso.
Continuamos a conversar, enquanto tomávamos café. Depois, nos levantamos e as três mulheres se ofereceram para me mostrar o lugar. Quando saímos da casa é que tive a dimensão real da pousada. Na escuridão da noite anterior foi impossível enxergar qualquer coisa além da trilha e do carro. Uma fileira de montanhas era paisagem dominante. Havia até uma espécie de bosque. Alguns esquilos saltitavam pelas árvores. Isabela mostrou-os para mim entusiasmada. Dei um sorriso, indicando que gostei muito dos bichinhos, embora para mim parecessem ratos. Andamos mais alguns metros e encontramos todos reunidos na beira de um lago. Lá, uma churrasqueira e mesas. Muita comida, muita bebida, enfim, a merda toda. Ao redor do lago, pequenos grupos de homens e mulheres conversavam. Num relance de olhos reconheci pelo menos uma dúzia de imbecis. Ao nos avistar, Roberto afastou-se de dois sujeitos, vindo em nossa direção. Abraçou e beijou Isabela, como para demonstrar a certidão de sua posse. Cumprimentou-me com a cabeça. Ao contrário dos meus maus modos da noite anterior, dessa vez fui razoavelmente gentil.
- Bom dia. O lugar é lindo. Parabéns. E aqueles móveis antigos, formidáveis.
O homem gostou do elogio e me agradeceu. Avistei Ana sentada em uma das mesas. Ela também me viu e chamou. Deixei Roberto e as três mulheres. Fui ao encontro da executiva. Estava muito bonita. Usava um vestido branco florido.
- Até que enfim, dorminhoco. - brincou.
- Você está linda.
- Você também. - ela disse, passando em seguida uma das mãos pela minha cabeça. Fez com que eu me sentisse um poodle.
- Vem – disse-me, segurando a minha mão - vou apresentar você a um amigo.
E levou-me à mesa de um velho. Ele estava só. Apenas uma garrafa de uísque como companhia. Fumava um charuto e olhava, distraído, o lago.
- Gabriel, este aqui é Carlo Pinheiro.
O homem levantou preguiçosamente a cabeça e me estendeu uma mão cansada. Em seguida nos ofereceu um lugar. Ana não pôde sentar, pois alguém a chamou.
- Vou Lá. - disse Ana.
E saiu apressada. Fiquei sozinho com o velho.
- Você bebe? - ele perguntou.
- Claro que sim.
Gabriel pegou a garrafa e com ela, empurrou um copo na minha direção, enchendo-o. E continuou a fumar o seu charuto como se estivesse sozinho.
- Tem algum sobrando? - perguntei.
Ele enfiou a mão num dos bolsos internos do paletó, retirou um charuto e me entregou. O dia estava nublado, dando a impressão de que iria chover a qualquer momento. Nem por isso os convidados daquela festinha cretina estavam receosos. Todos pareciam felizes e, à medida que bebiam cada vez mais turbulentos. A churrasqueira levantava uma nuvem de fumaça e um odor de carne queimada infiltrava-se nas nossas narinas. Como fazia muito frio, aquilo era até agradável. Os únicos que pareciam deslocados eram Gabriel e eu. Continuávamos imóveis na beira do lago sem intenção alguma de sermos sociáveis. Num dado momento, Isabela passou por nós e acenou. O velho elogiou a beleza da garota e eu concordei. Um garçom passou rente à nossa mesa e nos ofereceu algumas fatias de carne. Recusamos e continuamos a beber. Quando Ana voltou, sentou-se entre a minha cadeira e a do velho. Isabela também apareceu e Gabriel pediu que ela sentasse ao seu lado. A garota obedeceu e o velho começou a elogiá-la. A menina parecia gostar. Agradecia vaidosa, mas olhava para mim. Num determinado momento, o homem segurou em uma de suas mãos e ela não se importou. Ana flagrou a cena e pareceu um pouco incomodada. Em seguida, bruscamente, quis saber de Gabriel se ele gostou de mim.
- É uma companhia interessante. Possuí uma qualidade rara. Sabe manter a boca fechada. - disse o velho. Ana sorriu e observou:
- Meu Deus! Como é simpático!
Gabriel não se importou com a ironia e continuou conversando com Isabela. Deslizava as mãos pelo rosto e corpo da garota. A cena era observada por Ana, que embora estivesse conversando comigo ficava de soslaio registrando as atitudes do velho. Achei tudo muito engraçado e como estava sendo ignorado pela executiva, levantei e fui dar um giro à cata de mais uísque.
- Nossa garrafa secou. Vou atrás de mais. – disse à Ana. Ela assentiu com a cabeça. Levantei e fui perambular por entre os convidados. No caminho, encontrei Maurício, um dos executivos da editora. Não gostava muito de mim e vetara meses antes uma seleção de contos que eu mandara para a editora publicar. Mais do que isso; chegou mesmo a dizer que as minhas histórias eram dejetos de uma intelectualidade em formação. Quando me viu passando, conversava com sua mulher, Lúcia, que eu já havia visto com ele na editora.
- Você também foi convidado? - perguntou-me, enquanto eu corria os olhos pela mesa de bebidas.
- Se estou aqui. - respondi sorrindo, ao mesmo tempo em que mirava, sem muito tato, os peitos da esposa do rapaz. Ela ficou meio constrangida, não sabendo o que dizer e o que fazer com eles... Conhecia o gênio do marido e sabia que ele não me suportava.
- Quem convidou você - insistiu Maurício - Ana?
- Você está linda. - disse para Lúcia, ignorando o interrogatório de Maurício.
A mulher sorriu e agradeceu.
- Ora, não é nada. - falei. E tratei de sumir, pois um outro funcionário da editora se aproximava e conversar com dois cretinos ao mesmo tempo estava além das minhas possibilidades. Maurício ainda fez um movimento indicando que iria tentar me reter, mas achou melhor não fazer escândalos. Caramba, esse cara me detesta mesmo, pensei, enquanto inspecionava uma fileira de garrafas. Peguei um uísque e uma Malibu. Quando voltei para minha mesa, Ana e Gabriel ainda estavam lá, mas Isabela já tinha ido embora. O velho me viu com a garrafa e se levantou, subtraindo o uísque da minha mão.
- Até que enfim, rapaz, pensei que não fosse voltar nunca!
Sentei no meu lugar. Ana estava quieta no dela. Segurei uma de suas mãos.
- Tudo bem? - perguntei, acariciando seu rosto.
Ela esquivou-se e quis saber:
- Por que você demorou tanto?
- Demorei?
Não respondeu e pegou um copo, enchendo-o com uma dose de Malibu.
- Odeio essa bebida - reclamou - não tinha nada melhor?
- Não tinha.
- Essa bebida é branca. Esquisita. Parece sêmen. - reclamou, enquanto bebia com desespero o líquido branco de seu copo.
Repentinamente Gabriel, que escutara calado o meu dialogo com a executiva, levantou-se e foi dar uma volta. Ana fez um movimento de contrariedade com a cabeça.
- Aborrecida? - perguntei.
Ela franziu a testa e me olhou pensativa.
- Não. Não é isso. Na verdade é um assunto meu que você não entenderia.
- Qual a história desse Gabriel? - quis saber.
Ana deu um longo suspiro e pediu que eu colocasse um pouco mais de bebida em seu copo. Acendeu um cigarro, embora tivesse parado de fumar havia alguns meses. Em seguida, olhou pensativamente para o lago, onde alguns patos e cisnes navegavam. Parecia procurar inspiração ou coragem.
- Gabriel é um abortado. Era professor de filosofia. Um dos mais brilhantes da faculdade, até que resolveu parar com tudo. Vive somente dos rendimentos de três livros que publicou há alguns anos. Está sempre sem dinheiro. Só por isso ainda está vivo, do contrário, já teria bebido até morrer. Um pobre infeliz só isso, nem vale a pena pensar nele. - disse Ana por fim, demonstrando não estar disposta a responder mais perguntas sobre o velho.
- E vocês se conheceram como? - insisti, ignorando o mal estar que o interrogatório causava na executiva.
- Não quero falar mais sobre ele. - suplicou com uma voz pastosa de bêbada.
Aproveitei que ela estava assim e puxei a minha cadeira para mais perto.
- Desculpa. É que eu quero te conhecer um pouco melhor. Só isso. - falei para ela e deslizei a mão por uma de suas coxas. Ela se desvencilhou da carícia e pegou mais um cigarro. Era estranho, mas parecia um pouco incomodada com o meu assédio. Confesso que aquilo me surpreendeu um pouco, pois geralmente as mulheres rastejavam. Esperava que ela não fosse dizer mais nada sobre Gabriel, no entanto, Ana quebrou o silêncio e com uma tristeza inexprimível na voz, disse-me:
- Fui eu quem o convenceu a publicar o seu primeiro livro. Foi como o conheci. Mas ele não era isso que você viu! Era um outro homem! - exclamou Ana com emoção. Eu até ia fazer um comentário qualquer, mas não houve tempo, pois a executiva afastou a cadeira e levantou-se.
- Estou meio tonta já, Carlo, vou ver se descanso um pouco no quarto. Depois a gente se fala, tá.
Fiquei sozinho e bebendo. Ainda restava uma ponta do charuto. Peguei meu isqueiro e o acendi. Nuvens negras se apoderam do céu e a chuva era questão de minutos. Alguns empregados transportavam as comidas e bebidas para um local coberto. O churrasco foi interrompido. Um vento gelado soprou e varreu alguns papéis que estavam na mesa. Eram guardanapos, onde Gabriel escrevera algumas anotações. Tentei ler. Não consegui. Letras indecifráveis. A primeira gota de chuva caiu e apagou o charuto. Algumas pessoas correram em busca de abrigo. Tentei ainda permanecer sentado, quieto, apenas existindo, mas foi impossível, pois a chuva recrudesceu. Sem alternativa, peguei a garrafa de uísque e segui a procissão de idiotas que se dirigiam apressados rumo ao casarão.