MUNDO DAS NOITES BRANCAS - PARTE 4

Não ouvi os passos. A interpelação sobressaltou-me:

- O que te traz a esta hora à casa do Senhor, minha filha?

Levantei os olhos na direcção da voz. Na minha frente, descobri um homem alto e esguio, envergando uma longa batina negra, cingida por uma faixa acetinada no mesmo tom. Possuía um rosto seco, coberto parcialmente por uma hirsuta barba negra, onde predominavam os olhos de um azul magnético. Observava-me com ostensiva curiosidade.

- Precisava de um lugar para pensar. - retorqui numa voz trémula.

- Vieste ao lugar certo! - exclamou, sorrindo amistoso.

Assenti com a cabeça.

- Olha, eu ia tomar agora o pequeno-almoço... que achas da ideia de me acompanhar? Talvez possamos conversar um pouco... - propôs, depois de um breve silêncio. E estendeu-me a mão.

O gesto apanhou-me desprevenida. O que me fez ficar desconfortável. Não estava certa se me apetecia falar com um estranho; mesmo que este fosse um padre habituado a ouvir dos outros as maiores misérias. Depois pensei na mancha de sangue da saia. Não! Era-me impossível levantar. Não tinha coragem de mostrar o sinal da minha desgraça.

- Agradeço-lhe, senhor padre, mas não tenho fome!

Os olhos do padre percorreram-me num longo silêncio, avaliadores.

- Tu podes não ter, mas a tua filha tem! - disse finalmente, avançando obliquamente o queixo na minha direcção.

- O quê?!...

Desorientada pela perplexidade, julguei não ter compreendido bem o que acabara de ouvir. Imbuída de uma tremura interior, baixei os olhos para a saia. Instintivamente procurei o vestígio da hemorragia. Mas já não o encontrei. Onde antes existira a estrela sanguinolenta, era agora tecido alvo; imaculado.

Aquilo ultrapassava impossivelmente o nível da minha compreensão. Não sabia o que pensar nem sequer interpretar o que me estava a acontecer. O choque tornou-se violento. Desatei num choro convulsivo; a erupção pungente de todas as emoções interiores. Incontrolável, prolongou-se por um tempo indefinido. Os contornos desses momentos são escassos. Apenas a memória da sensação de delírio se transmitiu ao futuro.

Lembro-me de voltar a acordar deitada numa cama, envolvida pela penumbra incompleta do entardecer. E, logo, pressentir que estava a salvo. Que as duas estávamos a salvo!

(continua...)

Conto originário do blog da autora:

mundodasnoitesbrancas.blogspot.com

olinda morgado
Enviado por olinda morgado em 03/10/2011
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