Eutanásia

Quando saí, já era quase de manhã. Acho que fiquei umas duas horas no quarto com a garota. Assim que acabamos, pedi mais bebida. Márcia não queria me deixar ir embora. Ficou terrivelmente bêbada e quis me contar a história de sua vida. Acho que me julgou com cara de psicólogo de vagabunda. Também chorou um pouquinho. Assim que dormiu, vesti minha roupa, apanhei a comanda, bebi o último gole de uma cerveja quente, perdida em meio a um punhado de garrafas vazias e fui descobrir qual o preço daquela noite estúpida. Perguntei ao sujeito do caixa quanto devia. Ele cobrou as bebidas, mas a garota não.

- E a menina? - perguntei.

- Ela avisou que não cobraria nada de você. Acho que você fez uma conquista. - disse ele com um desenho irônico na cara.

- É parece que fiz. - respondi. Paguei as bebidas e saí. Lá fora, ainda não havia amanhecido. Garoava e fazia frio. Vestido apenas com uma camisa precisei me abrigar embaixo de uma árvore, na calçada. Esperei alguns minutos e um táxi apareceu. Entrei, disse ao motorista o endereço e me encolhi no banco de trás fazendo um esforço gigantesco para não dormir. Acendi um cigarro. Meu estômago naturalmente se rebelou e deu uma cutilada. Devo estar com uma úlcera, pensei, mas nem por isso deixei de fumar meu cigarro até o filtro. Chegamos até a minha rua rapidamente. Desci do táxi e entrei no meu prédio. Cumprimentei o porteiro e rumei apressado para o elevador. No meu andar, noite. Duas Lâmpadas queimadas. Somente fiquei tranqüilo quando, através da penumbra do corredor, consegui identificar o número do meu apartamento. Já com a chave na mão e pronto para abrir a porta, pisei em alguma coisa. Baixei os olhos para ver no quê e me deparei com Patrícia descomposta no chão, dormindo, escorada na porta. Empurrei seu corpo com a ponta do sapato. Ela acordou confusa, esfregando os olhos.

- Está fazendo o que aí? - perguntei.

Patrícia me lançou um olhar suplicante. Ao que parecia estava arrependida por ter sido tão injusta comigo naquela manhã.

- O que você acha, idiota? - respondeu, enquanto se levantava. Depois, começou a limpar a poeira do chão impregnada em sua roupa.

- Você bebeu? - perguntei, enquanto abria a porta.

- Se eu bebi? É claro que eu bebi! - falou Patrícia, entrando bruscamente no apartamento. Fiz o mesmo e fechei a porta. Fui direto para o sofá e, cinicamente, num suspiro de saciedade:

- Ah, que noite fantástica!

Patrícia fingiu não ter ouvido e se acomodou no sofá. Havia inércia em seus olhos azuis e pensei que fosse chorar.

- Sinto o que aconteceu ontem, Patrícia. Foi uma situação estúpida. - comentei displicentemente.

Ela não respondeu nada e se encolheu no sofá. Devia estar com muito sono, pois dormiu quase que imediatamente. Apesar de tão cansado quanto ela, ainda fumei um último cigarro. Depois, fui para o quarto. Patrícia ficou sozinha na sala, descansando, ou melhor, jazendo em paz.

Apenas levantei no dia seguinte. Patrícia ficou no apartamento. Quis bancar a namoradinha e lavou algumas roupas. Só não cozinhou porque não sabia. Mas era uma mulher inteligente e já estava, há meses, praticando o preparo de um arroz. Em alguns anos talvez conseguisse aprender. Como me conhecia bem, não ousou incomodar enquanto dormi. Talvez por causa disso acordei surpreendentemente de ótimo humor naquela manhã. Encontrei Patrícia na mesa, tomando café.

- Bom dia. - falei para ela.

- Oi. - respondeu lacônica - quer café? -acrescentou, estendendo-me a garrafa térmica.

Enchi uma xícara e bebi um gole.

- Está muito bom, Patrícia. - me apressei em dizer, embora estivesse uma merda.

Patrícia tentou sorrir, mas não conseguiu. Em seguida, nervosa, apanhou um cigarro na mesa e o acendeu. Deu um trago e cruzou as pernas. Vestia um dos meus agasalhos e estava só de calcinha.

- Bonita camisa. - comentei.

- Foi o que consegui encontrar.

- Colou muito bem em você. Ficou deliciosa. - falei para ela, que a despeito do mau-humor sorriu para mim agradecida.

Aquele meu comportamento era idiota. Não devia ficar encorajando-a com tais gentilezas.

- Por que você fez aquilo comigo? - perguntou Patrícia de súbito.

Olhei para ela e respondi com displicência:

- Aquilo não foi nada. A garota era uma universitária. Começamos a conversar sobre literatura e ela me pediu alguns livros emprestados. Quando chegamos ao prédio, acabou se empolgando e me atacou.

Assim que conclui a historinha, olhei para Patrícia. Queria ver o efeito da conversa fiada em seu cérebro de gelatina. Ela me olhou meio desconfiada e resmungou:

- Você acha mesmo que vou acreditar nessa sua conversa. Pelo amor de Deus, Carlo, não insulte a minha inteligência. Você escreve, poderia ter bolado uma desculpinha mais original.

Fiquei calado. Minha intenção era que Patrícia se aborrecesse, vestisse sua roupa e sumisse. A diaba parece ter percebido, pois pegou um cigarro e disse-me já num tom de voz mais brando:

- Certo. Vou fazer um esforço e acreditar em você. Não quero estragar tudo. Você sabe o quanto eu te amo, né, seu desgraçado!

Eu sabia e isso era uma bosta.

- Nós precisamos conversar, Patrícia. - falei, já preparando o terreno para o golpe de misericórdia.

- Não precisa. Eu não quero falar mais nisso. - atalhou-me.

- Talvez você devesse ir embora e voltar noutro dia. - tentei ainda dizer.

- Pra quê, se já está tudo acertado. Perdôo você.

Ora, ora, como todas as tentativas para me livrar da sarna fracassavam, corri até a cozinha atrás de algo para comer. Não encontrei nada, mas peguei uma bebida. Enquanto vasculhava os armários e a geladeira, Patrícia observava-me de soslaio.

- Você é muito complicado! - disse ela.

- Sou. - respondi da cozinha.

Retornei, trazendo cerveja e copos.

- Ah não, Carlo! É muito cedo para começar. Não são nem onze horas ainda. - reclamou Patrícia.

Ignorei a lamentação e enchi nossos copos. Estávamos sentados, lado a lado, no sofá. Ela levou sem muita vontade a cerveja aos lábios, mas bebeu. Bebi também e fui até a mesa à cata de cigarro. Acendi um e voltei para o sofá. Patrícia, assim que me sentei, me abraçou e me deu um beijo.

- Eu te amo muito, ouviu? E você, me ama?

Desconversei, levantando e dizendo que o tempo estava muito bonito. Perguntei se ela queria ouvir música. Respondeu que sim e foi até onde estavam os cds. Voltei para cozinha e abri a geladeira em busca de alguma coisa. Não havia nada. Peguei o telefone e disquei o número da pizzaria. Nunca gostei muito de pizza, mesmo assim decidi pedir uma bem grande, afinal, esse era o pratinho favorito da minha namorada. Por que não encher bem a sua barriquinha, pensei, antes da eutanásia.

- Está com fome? - perguntei.

- Um pouco.

- Então? - falei, apontando para a pilha de cds.

- Não consigo encontrar nada.

Passados alguns minutos, o interfone tocou. Era o porteiro avisando da chegada da pizza. Em menos de cinco minutos, o rapaz na minha porta com a encomenda na mão. Dei uma gorjeta minguada e ele foi embora, olhando sem muita simpatia. Coloquei a comida na mesa e abri uma garrafa de vinho. Patrícia foi até o banheiro e quando voltou me encontrou comendo. Passei para ela um pedaço de pizza.

- Quer vinho? - ofereci.

- Quero.

Quando acabamos de comer, voltamos para a sala. Patrícia começou a me beijar. Pedi, sorrindo, que ela parasse. Concordou e foi pegar a garrafa de vinho e os copos. Não era muito resistente ao álcool e por isso já estava ficando meio alta. Também parecia muito feliz. Eu também não estava mal e resolvi ser gentil. Arrumaria um jeito de me livrar dela mais tarde. A pobrezinha, inocentemente, acreditava que tudo estava bem. Sua confiança e felicidade eram contagiantes, todavia, incapazes de sufocar a náusea causada pela sua presença. Assim que voltou para o sofá, encheu nossos copos. Bebi um gole do meu vinho e Patrícia fez o mesmo. Em seguida, deitou e aninhou a cabeça no meu colo. Mecanicamente comecei alisar os seus cabelos. Enquanto fazia isso, pensei na viagem organizada pela editora. Eu não queria ir. No entanto, Ana Dummont, que era a vice-presidente da editora Prometeu, o lugar para onde eu mandava as minhas traduçõezinhas fedorentas, insistia para que eu fosse. Minhas respostas até então tinham sido todas vagas, mas diante do problema patrícia comecei a pensar que ficar o final de semana fora de São Paulo seria uma ótima idéia. Nem sabia direito para onde seria o passeio. Nem o que a editora comemorava, mas isso não importava. Quando me levantei do sofá já tinha me decidido pela viagem e sobre o futuro com Patrícia.

- Fica aqui. Está tão bom! - disse-me ela, segurando meu braço.

- Preciso te pedir um favor, Patrícia. - falei, sentando-me novamente.

- O que é?

- Acho melhor você não vir mais aqui.

Patrícia olhou para mim e parecia um tanto quanto assustada e perplexa.

- Como? - perguntou.

Aproveitei a sua confusão e continuei.

- Cansei de você. Sinto muito. - comentei, deixando transparecer em minha voz uma tristeza que estava longe de sentir.

Ela entendeu. Levantou-se do sofá e foi até à mesa. Pegou um cigarro e o acendeu. Encheu também seu copo de vinho e bebeu de um trago.

- Além disso, conheci uma garota. - continuei falando.

- Ah é? - grunhiu Patrícia.

- É.

- Quem é a garota? A vadia que eu flagrei com você?

- Não. Uma outra que você não conhece.

Patrícia apanhou o maço da mesa e o arremessou na minha cara. Alguns cigarros caíram no chão. Apanhei um deles. Patrícia sentou-se na poltrona, olhando-me fixamente com uma expressão de nojo no rosto. Fingi que a repugnância não dizia respeito a mim e continuei:

- A gente precisa terminar, Patrícia. Não dá mais, você entende, não entende?

Patrícia não respondeu. Levantou-se e correu até o banheiro. De lá, vinha o som da torneira que jorrava incessante. Era Patrícia tentando encobrir o som do seu choro. Fiquei preocupado, pensando que talvez ela pudesse querer encerrar a sua vidinha miserável na minha casa. O dia estava tão bonito.

- Oi Patrícia. Tudo bem aí! - perguntei, mas não tão alto que afetasse as minhas cordas vocais. Queria poupá-las para falar com a Ana.

Nenhuma resposta audível, mas pelos soluços, percebi que estava viva e bem. Um pouco de dor nunca fez mal a ninguém. Na verdade, às vezes até faz bem, o excesso de felicidade mediocriza. Mais calmo, voltei para sala e me afundei na poltrona. Não demorou muito e Patrícia saiu do banheiro. Sentou no sofá e começou a arrumar suas coisas. Aparentemente estava fria. Olhou para mim uma única vez. Sua fisionomia demonstrava uma repugnância controlada. Quando terminou de apanhar seus cacarecos, veio até mim.

- Você não presta! Vai me pagar essa humilhação! - ameaçou-me com uma voz de louca. E ficou à espera de alguma palavra que lhe permitisse uma reconciliação.

Não veio. Perguntei apenas se ela não havia esquecido nada. Não respondeu e ajeitou a bolsa no ombro. Em seguida, abriu a porta e saiu. Não a fechou e eu precisei me levantar para fazer isso. A cena toda fora desagradável. Mesmo assim eu estava feliz. Era muito bom poder respirar novamente o ar solitário do meu apartamento. Peguei a garrafa e fui bisbilhotar, na janela, o que acontecia na rua. Mais tarde ligaria para casa de Ana, avisando-a de que iria viajar só. Enchi uma taça de vinho e comemorei a minha recente alforria de uma mulher essencialmente estúpida.