MUNDO DAS NOITES BRANCAS - PARTE 2

A igreja cheirava a rosas e a incenso queimado. Não percebi que o dia mal havia começado quando acordei deitada no banco diante do altar-mor. O frio acordou-me. Depois de uma breve desorientação, retomei a consciência de como ali fora parar. A saia continha ainda o sinal que marcava a mudança mais drástica da minha curta vida: o sangue secara numa mancha castanha em forma de estrela.

Novamente estremeci sob o frio. Olhei em redor. O silêncio do vazio era absoluto. A luz do amanhecer delineava ténues contornos no espaço. E acentuava a minha solidão. Nunca, como nesse momento, sentira tanto a ausência de vida circundante. Mas que outra alternativa havia senão esconder-me?

Esfreguei os braços com as mãos tentando incutir-me calor. Inutilmente! Instantaneamente se dissipava sob corrente gélida que atravessava o ar.  

Estava na merda! Literalmente na merda! Não passava de uma maltrapilha indigente escondida numa igreja católica; onde, por ironia do destino, vivera o dia mais feliz da minha vida: falo do meu casamento com Lourenço! 

Agora, menos de um ano depois, amaldiçoava a extraordinária ingenuidade  que me conduzira a esse momento; durante o qual acreditei que a felicidade que experimentava havia de durar para sempre. Bom, não durou! E, agora, ali estava, sozinha, com frio, amedrontada e sem dinheiro. Pagava o preço da estupidez que molda os dezoito anos! 

Um raio de sol resplandeceu na janela junto do altar. Uma iluminação subtilmente dourada substituiu a obscuridade, proporcionando ao interior da igreja um aspecto celestial, quase diáfano. Colunas de luz em crescendo revelaram os santos posicionados na escadaria côncava do altar barroco. No ponto mais alto, a cruz de madeira mostrava um Jesus cruxificado de rosto estranhamente humano. Fixei-me nos seus traços; que, lentamente, me foram sugerindo a imagem de alguém que eu conhecia mas que, mau grado todo o esforço de memória, não logrei identificar. Levantei-me e aproximei-me do altar. A menor distância, a personificação de Cristo tornou-se mais realista. A face de barro era assombrosamente humana. Tentou-me tocar-lhe! Mas um receio instintivo conteve-me a mão! 

Então o milagre aconteceu! Assim lhe chamo porque, nestes anos todos, não encontrei explicação válida para aquilo que os meus olhos viram. 

   (continua...)

Conto publicado no blog da autora:

mundodasnoitesbrancas.blogspot.com

olinda morgado
Enviado por olinda morgado em 30/09/2011
Código do texto: T3250039