O Ceifador

“Abriu os olhos e percebeu que nada daquilo condizia com o mundo conciso que abandonou há algumas horas atrás.”

A vida é muito estranha, quando você pensa que nada nela pode te surpreender, ela te vira do avesso, e te faz perder a fé em tudo aquilo que você acreditava ser certo. Esse sou eu, do alto de meus 27 anos de idade, deitado nesse lugar estranho. Bem, na realidade, eu não sei dizer se estou deitado, mas de uma coisa eu tenho certeza:

Minha morte está dormindo na sala, a apenas alguns passos de mim... E com certeza, esse tipo de coisa eu sinceramente não imaginava que fosse acontecer em minha vida.

Ela se levanta calmamente, e nas sombras, eu posso ver como é o seu rosto, posso dizer com certeza, que ela não é exatamente aquela aberração pavorosa que todos imaginam que seja, até porque imaginar é exatamente a única coisa que você pode fazer a respeito dessa entidade. Não existem relatos, histórias ou pessoas que possam afirmar com certeza que viram um Ceifeiro e sobreviveram pra relatar.

Ok, aí você vai querer me falar sobre experiências de quase morte, pessoas que vislumbraram o outro lado, que se viram fora do corpo, que ficaram mortas durante alguns minutos, e vários outros tipos de situações onde uma pessoa pode ter visto a morte de perto e voltaram pra dizer como é.

Bom, pode ser que eu esteja destruindo seus sonhos, ou alterando sua realidade, mas acredite em mim quando eu digo:

Ninguém, absolutamente ninguém pode escapar da morte. Se seu destino é morrer, não adianta correr, rezar ou se esconder. Você VAI morrer, e nesse fato, nada pode ser mudado.

Pessoas que dizem ter o vislumbre do outro lado, as quase mortes, e coisa do tipo, absolutamente em momento nenhum tinham a morte traçada em seus destinos, pois se tivessem, com certeza não estariam aqui, alegres e serelepes contando suas histórias.

Um Ceifeiro só vem ao seu encontro quando você realmente deve morrer, acredite em mim, uma entidade dessas, não viria até você pra te deixar escapar. Pensa comigo. A morte existe pra qualquer ser vivo, ou qualquer criatura que possua uma alma, e o Ceifeiro, existe desde que a vida existe como da luz vem a sombra, se você vive, inevitavelmente uma hora ou outra deve morrer, e a Morte tem caçado almas desde tempo imemoráveis, logo, você acha realmente que alguém possa fugir dela? Eu afirmo por experiência própria que não.

Existem alguns tipos de Ceifeiros espalhados nessa dimensão que adotamos como lar, e nenhum deles veio, ou pertence a esse mundo. Existem os chamados “Carniceiros”, uma casta de ceifadores de almas que costuma se aglomerar em locais onde muitas almas atravessarão para o outro lado, como em campos de batalha e hospitais. Esse tipo de Ceifeiro tem certa predileção por esses lugares, na realidade se apegam de alguma forma a esse território, e isso tem um motivo obvio:

Não é necessário caçar. As almas a serem levadas se aglomeram ali, e o ceifeiro simplesmente espera elas chegarem.

Existem também, aqueles ceifadores que adoram caçar, esses sim, são os piores, e na verdade, os que mais levam almas pro outro lado, esses são a personificação da Morte, com seus trajes negros, e geralmente uma lâmina que usam para separar a alma do corpo, como se colhesse literalmente a alma do indivíduo.

E o que se encontrava sentado a alguns metros de mim, era de um terceiro grupo, na realidade ele era, ou por muito tempo foi, algo bem próximo da minha vida, porém nesse dia, ele ou ela, representava a minha morte.

Durante muito tempo eu já sabia que uma hora ou outra aquele Ceifeiro, sentado em meu sofá, iria dar cabo do que existia de mim nesse momento no mundo. Na verdade eu convivi com essa idéia tempo suficiente pra não sentir mais medo, e na verdade, bem no âmago, eu acho que a idéia de uma forma ou de outra passou a me agradar. É uma forma mórbida de encarar, mas depois desse tempo de convivência com essa certeza, você acaba se conformando.

E ela estava ali, sentada naquela mesma posição, na realidade, eu imagino que ela desejava que eu fosse até ali e oferecesse aquele tal cordão de prata, que dizem ligar o a alma ao corpo, porém, que tipo de pessoa não se acovardaria, mesmo que já acostumado à idéia, diante de uma situação dessas?

Fiquei apenas ali, deitado esperando o que já era esperado, e adiando o inadiável. Foi então que ela lentamente se levantou e veio em minha direção, e de onde eu estava, pude ver que lagrimas escorriam de sua face.

Ela me pediu pra levantar, e eu com aquele aperto no coração e as mãos suadas, me sentei. Ficamos algum tempo, que parecia anos olhando um para o outro, Ela pra minha vida e eu para minha morte.

Nesse momento os últimos três anos da minha vida passaram diante de mim, dentro dos olhos dela e em cada lágrima minha ou dela que caia, minha alma era lavada, e o que molhava minhas mãos, já nem sei dizer se eram suor ou lágrimas, porém, depois desses segundos, ou minutos que minha vida foi revista, eu tomei minha decisão final, e aceitei meu destino. E foi então que o processo de separação da alma e do corpo aconteceu.

Conversamos durante muito tempo, e nessa conversa, eu falei sobre tudo o que se passou comigo, tudo o que eu senti, todo sofrimento, felicidade, todos os medos, duvidas e desejos. E ela permaneceu ali, calada absorvendo tudo, e sim, pela primeira vez naqueles três anos de convivência, ela me ouviu e me entendeu de verdade. E depois de todo o discurso, ela se limitou a dizer entre lágrimas:

- Você não imagina como dói fazer isso, e nem o quanto já sinto falta de você... Mas chegou a um ponto que não sei mais como vai ser daqui pra frente.

Porém, depois de anos sabendo que aquilo iria acontecer, eu realmente não tinha alternativa, senão tomar a atitude no lugar daquele Ceifeiro, afinal ninguém suportaria a morte lenta e inerte a qual estava sendo submetido. Eu já não tinha mais pecados a pagar, já não tinha arrependimentos, e estive a beira de perder mais que minha alma, e por isso, eu me senti obrigado a dar um fim em minha vida. E foi exatamente isso que eu fiz. Terminei.

E assim, eu estou hoje aqui contando pra vocês como tudo terminou. Por três anos eu amei mais do qualquer coisa, conviver com a morte. Mas tudo chega um dia ao fim, e claro, toda a tese de que não se pode fugir da morte se faz verdade. Bem, na verdade existe uma maneira de morrer sem deixar esse mundo, e é dessa forma que eu estou aqui. Matei minha alma e me separei da minha morte, e ali naquele quarto meu mundo tomou tons de cinza, porém ainda estou aqui, em pé e quase inteiro.

Acredito que algumas pessoas já tiveram essa mesma experiência que eu tive, porém não viram ou não viveram da maneira que eu vivi a situação.

Esse tipo diferente de Ceifeiro, que foi o que ficou com minha alma, foi o amor da minha vida, e esse amor fez exatamente o que deveria ter feito:

Tomou pra ele o que lhe era de direito. – A alma que lhe dei.

Três meses depois eu juntei tudo o que escrevi por ela, tudo que fiz por, e com ela, e naquela estrada iluminada pela Lua, seguido de perto por todos eles que sempre estiveram olhando por mim, cheguei a tal encruzilhada. Dentro da caixa que carregava embaixo do braço, estava toda nossa historia, e tudo o que restou dela. E ali fiquei por horas repaginando minha ex-vida, e no momento que me senti pronto, comecei a cavar com as próprias mãos a cova onde tudo seria deixado como troca pelo pacto que eu iria selar.

Ali naquela encruzilhada eu cavei e enterrei, e depois me levantei e girei sobre meus calcanhares, e foi então que o vi pela segunda vez. O meu próprio demônio, meu eu oculto, que sempre esteve por perto, e naquele momento ele veio ter comigo. E foi naquela noite clara de dezembro que nosso pacto foi selado. Em nossos termos, coisas que não podem ser reveladas foram acordadas, porém o que posso dizer, é que hoje em dia ele está muito mais presente e opinativo na minha pós-vida do que jamais foi. Você então pensa: Por que segunda vez? E eu respondo:

- Sim, segunda vez, porém sobre isso eu não estou ainda preparado pra contar.

Hoje, depois de mais de um ano, aliás, um ano bem difícil cheio de desesperos e descobertas, afinal, é bem difícil viver sem alma, eu estou aqui, deitado em uma cama diferente de um quarto diferente escrevendo essas palavras. Minha alma se foi, mas de alguma forma, de acordo com meu trato de apoio mútuo com meu demônio, algo diferente e novo está nascendo no lugar dela. O Ceifeiro se foi, e eu passei muito tempo sem ver ou saber sobre ele, talvez por sorte, talvez pelo meu pacto, mas o que importa é que não ver/saber, me deixa aliviado. Algumas coisas em mim mudaram demais, e mais do que nunca, eu converso sempre comigo mesmo. E a agradável conversa parece que nunca irá mudar:

- Você é um mentiroso, você é idiota, e acha que está pagando dívidas, diz que não tem esperança, não tem fé, mas isso não é a verdade. – Ele diz.

Então eu digo que já tentei falar com um anjo, mas sinto que só consigo falar comigo mesmo, e não importa o quanto eu tente viver, ou o quanto eu acredite em mim... Eu continuo fazendo o que o demônio diz pra fazer.

Eu presto atenção no que pensa meu cérebro, escuto o vazio da minha alma, e continuo a fazer o que o meu demônio diz pra fazer.

Continuo a fazer o que meu coração manda fazer.

Thiago de Moraes
Enviado por Thiago de Moraes em 29/09/2011
Código do texto: T3248814
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