MUNDO DAS NOITES BRANCAS - PARTE 1

Um dia soube que tinha de ser! Cheguei pela noite e não queria entrar. Repentinamente a luz acendeu-se nas vidraças embaciadas pela humidade quente do interior.

Chamei como se não quisesse ser ouvida! Esperei que a porta não se abrisse! Mas ele apareceu como uma sombra gentil agigantando-se a cada passo.

O meu coração rodopiou em carrossel, deixando-me nauseada! Um tremor ansioso agitou-me as mãos. Escondi-as nos bolsos, como se escondesse a culpa de ter roubado um objecto a um estranho.

O olhar de curiosidade com que ele chegou, perdeu-se no momento em que me encontrou. E, vindo de um lugar já muito passado, mostrou-me um sorriso feliz.

- Isabel! - exclamou, suspendendo em silêncio o que presumi ser a constatação óbvia.

- Voltei! - declarei imprevistamente.

O sorriso dele expandiu-se. E, estendendo-me a mão, disse:

- Nunca partiste, miúda! Nunca partiste...

A sala mantinha o característico odor a carvalho antigo e a livros muito lidos. Na estante, a ordem das lombadas verdes, vermelhas e azuis, gravadas com letras douradas, continuava inalterada. Os gregos primeiro, por último os portugueses. No intervalo: um pouco das grandes produções literárias do resto do mundo.

Fora assim que ele os arrumara, quando para ali viemos viver, e seria assim que os legaria à geração seguinte. A ordem meticulosa que em tempos me agoniara, parecia-me agora um factor perfeito de estabilidade. Algo que, para mim, o tempo tornara desejável.

Sentei-me próximo da lareira crepitante. Acaricei as mãos no calor das labaredas azuladas. Notei o frio que o meu corpo acolhia, sem que dele eu fosse consciente.

O assobio agudo da chaleira anunciou o chá. Decorridos dois minutos, ele entrou na sala, transportando um tabuleiro preenchido de elegante porcelana chinesa. Cerimonioso, entregou-me nas mãos uma chávena fumegante.

Compartilhamos o chá em silêncio! Com a naturalidade de quem partilha todos os quotidianos da vida. Durante aquele pequeníssimo momento, assim me pareceu. Quase consegui ignorar o facto que havia trinta anos que não olhava para o rosto magro e anguloso daquele homem, que ainda era meu marido.

Agora, havia sulcos de rugas marcando-lhe a pele negra, que antes brilhava saudável. À semelhança do cabelo, a barba tornara-se grisalha. Ainda assim, continuava a ser um belo homem! Mais belo do que eu já recordava...

Observava-me com curiosidade! Avaliava a minha óbvia transformação. A sua expressão manteve a serenidade. Era-me impossível ler-lhe qualquer sensação íntima. Quando terminou o chá, poisou a chávena sobre a mesinha de madeira que colocada entre nós. Reclinou-se sobre o braço do sofá e suportou a cabeça na palma da mão. Manteve o silêncio, revelando que esperava que eu começasse!

Era eu e não ele que devia falar. Bem o sabia! Preparara um mini-discurso apropriado ao reencontro. Bebi o último gole de chá. Retive, por alguns segundos, na boca o líquido com sabor a canela e a flores brancas, subtilmente acidulado.

- Surpreendido com a minha visita? - perguntei então; depositando a chávena no canto da mesa.

- Mentir-te-ia se dissesse que não!... - retorquiu ele, esboçando um sorriso plácido. - Mas não posso afirmar que não a esperasse...

- A fim de todos estes anos esperavas que eu voltasse?!

- Não foi exactamente isso que eu disse!

- Não?!

O seu rosto assumiu uma expressão de bondosa paciência!

- Esperava que um dia quisesses explicar-me...

- Hum!

- ... contar-me o que te levou a fugir de mim?

- Percebo.

- E tu aqui estás!

- Sim, eu aqui estou! Mas não para te contar porque fugi, porque na realidade não fugi... apenas fui... embora...

- Então porque voltaste?!

- Para te contar porque tinha de voltar!

- Vejo que não perdeste o gosto por charadas.

Sorri involuntariamente! Atribulada intimamente, procurava manter o foco na razão que me trouxera à casa onde trinta anos antes me fora impossível continuar a viver. Mas meu pensamento teimava em comportar-se como um riacho de águas voluntariosas em arremesso sobre os penedos da montanha, levando-me a divagar pelo passado.

Subitamente, aqueles velhos dias adquiriram forma real!

(Continua)

olinda morgado
Enviado por olinda morgado em 29/09/2011
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