Do Outro Lado da Vida

São Paulo, 2 de novembro de 1968

Surpreendente é a forma como me lembro desse fato, ocorrido há mais de quarenta anos.

O Brasil estava em pleno regime militar e eu era estudante de filosofia e, apesar de não ser simpatizante da política, de alguma forma estava envolvido com atos de alguns colegas estudantes naquela época.

Em uma quarta-feira, como tantas outras dirigi-me à universidade para mais um dia de aula.

De repente, próximo ao Largo São Bento estava acontecendo uma represália militar contra alguns dos manifestantes. Tentei correr para um lugar seguro, quando senti algo muito forte sobre a minha cabeça, que me fez cair no chão. Tudo começou a rodar na minha volta, até que o barulho e as cenas nos meus olhos foram diminuindo até desaparecerem por completo.

Horas, minutos depois, não sei definir aconteceu algo como que eu estivesse acordando repentinamente pelo barulho à minha volta.

Eu estava num hospital e podia ver muitos médicos, macas, enfermeiras e um grande alvoroço. Levei minhas mãos à cabeça, procurando um possível ferimento, o qual não encontrei.

Levantei-me de um banco e dirigi-me à recepção para saber onde estava e o que havia acontecido comigo. Estava muito cheio. Chamei várias vezes a enfermeira e esta não me respondeu.

Então saí a procura de algum médico ou enfermeira que pudesse falar comigo. Era inútil. Por mais que eu chamasse não obtinha resposta.

De repente ouvi alguém chamar meu nome., Que alívio. Alguém finalmente iria me atender.

Era uma senhora de média idade, a qual disse-me que eu precisava voltar. Então perguntei-lhe se era pra voltar para a faculdade. Ela virou as costas, e sem que eu percebesse, a perdi de vista.

Então procurei a porta do hospital para tentar sair. Estranhamente, ela estava trancada. Como poderia um hospital estar com as portas trancadas e com tanto movimento.

Ao retornar para o saguão principal percebi que um senhor, de barbas brancas, estatura baixa, com um balde e um pano olhava-me fixamente nos olhos. Corri até ele e perguntei o que estava acontecendo. Ele então me respondeu que estava ali há muito tempo. Perguntei-lhe sobre as portas trancadas e ele me disse que eu jamais sairia dali por elas. Aquilo me arrepiou, principalmente no momento em que todos, sem exceção naquele saguão começaram a me olhar fixamente, com um ar de tristeza e lamentação. Repentinamente a senhora de meia idade apareceu na minha frente e tocou-me com os dois dedos indicadores minha cabeça, dizendo que eu precisava voltar.

Naquele instante senti-me ser puxado violentamente, como que por uma grande máquina. Faltou-me o ar. Minha cabeça e minha perna começaram a doer fortemente e após muita insistência recuperei o fôlego e dei um forte grito, abrindo os olhos.

Diante de mim estavam várias enfermeiras e dois médicos. Sobre mim um desfibrilador e muitas mangueiras ligadas. Novamente adormeci, acordando horas depois com uma enfermeira tomando minha temperatura.

Ela me olhou com um ar alegre e disse-me "Seja bem vindo. Você é um milagre vivo. Meus parabéns".

Quando o médico retornou, conversamos e descobri que, no meio da represália, havia recebido um tiro na perna direita e uma forte pedrada na cabeça. Fui dado como morto, ficando sem respirar, sem atividade cardíaca e cerebral por nada menos que quarenta minutos. O médico não conseguia explicar como eu sobrevivi. Meu corpo seria levado no momento em que o funcionário responsável percebeu movimentos em mim.

Essas coisas são tão difíceis de se explicar quanto de se entender. Como contar um fato que nem mesmo nós somos capazes de compreender?

Teria eu realmente morrido? E aquele lugar, de pessoas tristes e apressadas, cujas portas não podiam ser abertas seria o inferno?

Eu sei que, após esse fato minha vida mudou drasticamente.

Paulo Farias
Enviado por Paulo Farias em 18/09/2011
Código do texto: T3225946
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