As moscas

AS MOSCAS

Condorcet Aranha

Naquele lago poluído, com muitos resíduos, as moscas passavam horas e horas deleitando-se em ricas refeições. Não sei quantas delas por ali passaram e sequer o que também ali deixaram, além de seus próprios dejetos. Minha única certeza é que nada percebo porque minhas vistas não mais conseguem detectar imagens de pequenas dimensões. Assim é a vida, perdem-se alguns sentidos paulatinamente à medida que moscas nascem e morrem. Ganha-se em experiência, mas perde-se em razão conforme nosso organismo se degenera.

Enquanto as moscas voam em busca de sua sobrevivência, minhas idéias voam para lugares ignorados ou se perdem, sem significado, nas entranhas de um futuro próximo, obscuro e indesejado, mas inevitável. Não pensem que estou me lastimando por este momento! Capaz! Estou até feliz porque, se não percebo os dejetos das moscas, ainda consigo escuta-las em seus vôos rasantes, indiferentes à minha presença, por estarem convictas de minha incapacidade em molesta-las.

A bem da verdade devo confessar que, outrora, essas moscas nem me visitavam, porém há alguns anos vêm se tornando minhas companheiras inseparáveis. Ora estão sobrevoando minha cabeça, ora estão pousando em minhas mãos ou ainda ficam passeando pelo peito de minha camisa como se fosse um verdadeiro salão de festas. Às vezes até me pergunto o porquê de tanta afinidade.

Há alguns anos, quando meus filhos me trouxeram para cá e sempre me visitavam, as moscas praticamente não existiam, eram raras ou então temiam aproximarem-se de mim, julgando-me um feroz inimigo. Conforme o tempo foi passando as moscas se multiplicaram proporcionalmente à diminuição das visitas dos meus filhos, fato que passou a me intrigar. Vai ver que elas tinham medo era deles e não de mim, porque se hoje estão em perfeita harmonia comigo, é porque têm certeza de que não sou àquele animal feroz, que poderiam ter julgado naquela época em que cheguei por aqui.

Duas vezes por dia eu vou até a beira do lago e cautelosamente retiro minhas velhas dentaduras, evitando espantar demais as minhas companheiras. Eu não consigo ficar com estas “malditas” placas de sorriso artificial dentro da boca durante todo o dia e, em contrapartida, também não consigo mastigar os alimentos sem as “benditas”.

Após as refeições eu volto rapidamente para trocar a água do lago e depositar as “malditas” ou “benditas”, sem retirar-lhes os resíduos para que, depois do susto, minhas companheiras retornem à beira do lago e eu possa ficar observando-as e escutando-as com seus vôos rasantes, enquanto estou recostado na cama aguardando o sono para fazer minha sesta.

Hoje é dia de visitas no “pedaço” e os demais que como eu aqui foram deixados, estão que nem bocós se enfeitando, vestindo as roupas menos piores, enquanto que as mulheres ficam passando pós em suas caras encarquilhadas, batons nos beiços murchos e esmalte nas unhas defeituosas e quebradas. Dizem que faz bem a auto-estima e que melhora as aparências! Eu “não entro nessa”, fico no quarto escondido com minhas moscas e quase “morro” de dar risadas dos “panacas”. Sei que a história vai se repetir, que apenas dois ou três deles, há menos tempo por aqui, serão premiados enquanto a grande maioria terá que “amargar” mais uma decepção e voltar a derramar suas lágrimas, borrando as tais de maquiagens e, o que é pior, as moscas não gostam desses pós e nem de lágrimas.

Posso parecer-lhes um derrotista, pessimista, “desmancha prazeres”, seja lá qual for o adjetivo com que queiram me brindar, mas tenho a convicção e certeza de que, se agora tiver que partir rumo ao inevitável, eu não irei com os olhos marejados e sim com um largo sorriso nos lábios.

Incrível, acreditem que, nesse momento, uma mosca tentando acasalar, foi com “tanta sede ao pote” que acabou caindo dentro do lago. Foi muito gozado para mim. Não para ela! Ainda bem que sabe voar e consegue flutuar na superfície do lago, senão aquele que seria o seu momento de desprendimento e prazer, tornar-se-ia nessa página da história, mais uma irrefutável vitória do inevitável.

De repente um casal de jovens, bonitos e bem vestidos, aproximou-se de mim e disse: Olá pai, como vai, tudo bem? Reconheci-os apenas pela voz, respondi. Sim, tudo bem por aqui! Quase não lhes reconheci!

Eneida disse-me: é assim mesmo pai, com o tempo as vistas vão cansando. Sabe que já estou usando óculos para fazer minhas leituras?

Enquanto eu os observava, um filme que já havia visto muitas vezes voltou a passar em minha mente. Maria, minha falecida esposa, correndo atrás dos meninos pelo quintal de casa para coloca-los no banho ao fim das tardes de verão... Ivo interrompeu àquela singela e maravilhosa cena e começou a interpelar-me: Porque estás com a camisa tão suja, a barba e as unhas grandes? Não estão te cuidando bem?

Não filho! Nem parece que você já me conhece. Não lembra como eu te enchia o saco; reclamava quando não queria fazer alguma coisa e você dizia que não dava mais para conviver comigo? Continuo a mesma coisa, só que com eles eu sou bem mais malcriado e acabam deixando-me em paz, como gosto, né? Portanto é preciso ter paciência com eles, principalmente com as minhas companheiras, sabe?

Ivo abriu um sorriso e, sem saber que eu me referia às minhas moscas, falou: Velho danado! Continua dando em cima da “mulherada” ! Esbocei um falso sorriso e, percebi que havia controlado a situação, ao menos com ele.

Aí, Teresinha, uma empregada da casa, chegou no quarto e perguntou-me: Como é seu Reinaldo, está precisando de alguma coisa?

Eu ia dizer que não, porém, Eneida, mais rápida e grosseira, mandou que ela fosse limpar meu lago particular, trocar-lhe a água e escovar muito bem as “malditas-benditas”. Fiquei consternado, pois as minhas “companheiras” certamente não gostariam daquilo.

Ainda em suas atitudes unilaterais, minha filha aparou-me as unhas e trocou minha camisa, enquanto Ivo barbeava-me cautelosamente, evitando irritar-me a pele.

Quanta “palhaçada”, demagogia, demonstração de nada e por aí afora. Eu pensava.

Depois, ao se despedirem, beijaram minha face e ofertaram-me três pacotes de biscoitos. Eneida comentou que eu estava bem melhor e Ivo recomendou-me que não desse muito em cima de “minhas companheiras”. Mais uma vez deixei que um falso sorriso os brindasse e acenei-lhes com a mão direita, porque a esquerda estava às costas com os dedos cruzados.

Voltei ao quarto e recolhi-me nas conjeturas: Se, levaram dois anos para fazer-me esta visita, de que tamanho estariam minhas unhas e barba?; Se, beijaram-me ao se despedir, porque não me beijaram quando chegaram?; Porque deveria estar cuidado e de roupa limpa se nunca vêm aqui no “pedaço” nos dias de visita ou, sequer me levam para dar um passeio de vez em quando?; Se, realmente ficam preocupados comigo porque esquecem até de telefonar-me no dia do aniversário? Quer saber de uma coisa? São quase cinco e quinze, vou armar um “esquema”.

Teresinhaaaaa, vem aqui?

O que foi seu Reinaldo? - Qual vai ser a sobremesa do jantar? – Bolo de laranja com recheio de doce de leite. - Você me serve uma fatia bem grande? - Está bem, seu Reinaldo.

Assim foi feito. Após o jantar coloquei minha generosa fatia de bolo num pratinho de papelão e fui para o quarto. O calor era muito forte naquela tarde-noite de verão. Tanto que o doce de leite escorria pelos lados da fatia de bolo. Eram seis horas e dez minutos, o dia estava claro, o sol teimosamente mandava seus raios aquecerem a água do meu lago particular. Tudo estava diferente do dia a dia.

Comi o quanto pude do bolo e depois mergulhei as “malditas-benditas” no lago, ainda bastante untadas dos restos residuais. Afinal de contas eu queria brindar “minhas companheiras”. O que sobrou da fatia de bolo esfreguei, por várias vezes, no peito da camisa, preparando o “salão de festas”. Recostei na cabeceira da cama como de costume e vi “minhas companheiras” entrando pouco a pouco pela janela. Os zumbidos de seus vôos rasantes aumentaram e elas começaram a disputar os melhores farelos no “salão de festas” como também à beira do lago.

De repente senti uma forte dor em meu peito, olhei na janela e uma verdadeira nuvem de moscas entrava em meu quarto. Era o inevitável que, aproveitando o momento, veio buscar-me. Inclusive porque eu estava barbeado e com as unhas aparadas. Só a camisa eu tinha sujado propositalmente. Mas a camisa eu nem precisaria mais usar porque não teria nem corpo. Foi a passagem mais concorrida de que se teve notícia. Nunca ninguém havia conseguido levar tantas “companheiras” em seu enterro.

Aqui onde estou, sei lá onde é, não se vê nada, nada se sente, acho que é a tal de paz, que viviam buscando lá na vida. E se for, tenham certeza que não tem nada de bom porque é insossa, vazia e não tem sequer uma mosca.