A Pá da Culpa

Sou um assassino. O remorso retarda meus movimentos e reflexos. A pá que uso pra cavar sua cova é a metáfora da minha consciência pesada, mal consigo levantá-la. Quem dirá levantar meu próprio rosto e fitar aquele pequeno cadáver, condenado à morte pelo meu descuido. Condenei também a mim. Carregarei o signo da morte e a pá, que é usada para enterrar meu erro, que pesará na minha mente, eternamente.

Estou tão atordoado que geograficamente nem sei onde estou. O farol do carro indica onde devo cavar. Depois de sepultar o morto, acordo do pesadelo dentro de outro. Dirigi até o fim do mundo para tentar esconder de mim meu crime, como se fosse evitar a auto-condenação. Seja meu futuro impune às autoridades, a pá haverá de cavar todos os dias a morte da minha alma.

Sou um covarde. Escondo sob a terra mais um erro que cometi. O pior dos meus erros, um erro mortal. Tenho certeza que todas as sentenças me condenarão. Não o vi atravessando a rua. A escuridão estava densa e meus reflexos lentos. Juro não beber mais ao volante. Não consegui desviar desse idiota, desse pobre coitado! Imediatamente após sua execução, meu corpo guiou o carro até não encontrar mais nenhum pontinho iluminado de civilização, até meus desconexos pensamentos dizerem “Pare! Aqui será seu enterro, nesta praia deserta.”.

Olho contra a luz e vejo uma silhueta, ela quer meu carro. Aprendo a rezar como se esse marginal fosse um deus. O Deus da Morte. Humilho-me. Tento convencê-lo de que não mereço morrer, que tenho família, que sou uma pessoa digna, invento motivos. Como se esse indivíduo desse valor à dignidade. Ele só quer o carro, nem ao menos dá importância ao ritual fúnebre. A choradeira o faz ficar mais agressivo e a surra que levo fica ainda mais dolorida. Sob o revolver, estou sob jugo. Por alguns segundos me senti absolvido. E fui. Fui absolvido da morte. Essa noite havia cometido o pior de meus erros e fui julgado pelo Deus da Morte.

Abandonei a pá como abandonei a culpa. Fui julgado pelo meu erro, minha alma está liberta. O juiz levou minha culpa e meu carro, bem como o cadáver da minha esposa e seu amante decapitados no porta-malas. Não são mais minha responsabilidade. Estou livre. Hoje, como aprendi a rezar, rezo sempre que lembro desta noite, para que Deus cuide da alma daquele pobre cachorrinho que atropelei. Descanse em paz amigo.

Petrico
Enviado por Petrico em 09/08/2011
Reeditado em 09/08/2011
Código do texto: T3149411
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