Cárcere

Acostumado a vagar pelas noites frias, Tomás não percebia qualquer perigo que se aproximasse. O pensamento solto, as mãos frias. Como ele gostava. A brisa segredava-lhe o quanto as noites de primavera são especiais. Aquela era uma. O silêncio a percorrer as esquinas e apenas uma voz:

- Por que sozinho? – partido de um menino com cara de inteligente.

- Porque eu gosto, oras. E você? Que faz sozinho a essa hora?

- Pensando. – A cabeça, ruiva, baixa.

- Adivinho: brigou em casa e agora tá de birra com seus pais?

- Não. É que eu tenho mais medo de ficar em casa que na rua.

- E por quê? Alguém te fez mal? – e o lado instigado de Tomás aparece em meio às árvores que sorriam aos dois.

- Mais ou menos. Minha mãe gosta de ficar sozinha em casa quando meu pai não tá. E eu não gosto de ficar com ela. Prefiro as ruas vazias.

- Eu era assim também quando tinha o seu tamanho. Adorava descobrir coisas pelas noites. Às vezes me enrascava, mas, no final, acabava tudo bem: meu pai e seu cinto me esperando – com um sorriso amarelo estampado no rosto.

- Sei como é. No meu caso, a solução é a própria dúvida. As respostas para as minhas perguntas estão no fim do caminho, à minha espera.

- Dúvida? – o confuso Tomás.

- Claro! Ou você não é feito de dúvidas, fuga, limites, vontades, violência, amplidão, amplitude, pensamento, vaguidão?

Tomás iniciou o bom e velho ciclo de frios na barriga. Aquele menino lhe causava angústia. Parou em frente a um banco de madeira que mostrava onde deveria descansar. Não só o pensamento. Pelo contrário, este tomou as energias economizadas de suas pernas e lançou-se num vôo sem volta. Num primeiro embalo, de uma só vez, chegou aos seus 12 anos. A imagem de sua mãe e seu pai dançando na sala à luz de velas reascendeu seu sorriso. Há tempos não voltava à infância. E dessa vez parecia tudo tão claro... Como se o menino que resolveu sentar ao seu lado também pudesse ver aquela obra de arte.

As brigas também eram marcas na família. As sogras, as sombras, as tias e os primos. Todos passaram pelo pensamento de Tomás. Uma sensação de alívio tomou-lhe conta quando, ao retomar o passado, lembrou o futuro que havia planejado com os melhores amigos da faculdade. Como que do nada, uma paz alimentou sua alma. Aquelas lembranças que faziam tão bem queriam permanecer ali. Mas, mais uma vez, uma voz rompeu o silêncio:

- Não adianta insistir. Esse tempo não volta mais.

- Ai, menino. Me deixa em paz! Que que você quer de mim, afinal?

- Eu? Nada! Você é que tem de se perguntar o que quer de mim.

E o silêncio pairou sobre ambos novamente. Tomás desacreditava a inteligência do menino. Pensou com ele que nem ao menos havia perguntado-lhe o nome. “Mas o que mudaria?”. Ah mudaria muito! Tomás não queria prender sua atenção nisso. Estava mais preocupado em continuar naquele estado inerte e equilibrado que há muito não lhe ocorria. Retomou as lembranças.

Lembrou os perfumes que sua mãe usava. O ar fresco das manhãs na chácara de seu avô. As aulas de capoeira a que ia escondido dos pais. Os amores, as horas em seu quarto, as primeiras revistas “proibidas” que comprou assim que completou dezoito.

Passado algum tempo, Tomás encorajou-se a abrir os olhos e verificar: o menino continuava ali, a balançar as pernas que não alcançavam o chão e o olhar fixo numa rosa em flor bem em frente aos dois. Tomás esquivava-se ao menor sentimento que surgisse em perguntar-lhe o nome e o que realmente o menino queria com aquilo tudo. Parecia prever as conseqüências. O segundo pé de vento perpassou seus corpos, que se arrepiaram. Estavam tão concentrados... O sopro da noite brincou e acertou na escolha do jogo. Talvez por não suportar aquele silêncio medonho e obrigar-se a encontrar uma saída com as ferramentas de que dispunha. Até que surtiu efeito.

- E então? Já alimentou a alma o suficiente? Posso voltar pra casa? – o menino com seu ar superior.

- Olha, nunca vou deixar de nutrir esses pensamentos. São as coisas que me fazem uma pessoa melhor a cada dia.

- Haha... Tá bom... Quando você acordar do seu sonho dourado aí me chama, tá?

- Menino, você tá abusando da sorte.

- Nossa você realmente acha que é quem domina essa conversa, não é? Espere até cair sua ficha. Aí a gente conversa diferente.

- Menino...

- Que que é? Vai fazer o quê? Bater em um menino indefeso sem ter como reagir? Vai?

Tomás ficou sem resposta. Levantou-se, furioso, e seguiu a passos frágeis até a rua. A noite havia acabado. Este era o seu ponto de vista. Mas não necessariamente o que aconteceria. Acabar assim? Sem nada de mais? Não, o menino não deixaria em branco. Pagaria pra ver, mesmo que saísse ferido, até onde iria a resistência de Tomás. E resolveu apelar:

- Olha, Tomás, eu não apareci pra infernizar sua noite. Minha intenção é outra: te abrir os olhos ao que te grita logo abaixo desse teu nariz empinado aí.

- Como sabe meu nome, menino enxerido? Se nem sei o seu?

- Isso você só vai saber quando a noite terminar. Mas calma que daqui a pouco começa o nascer do sol e eu vou de vez embora.

- Eu ainda não entendi qual é a tua, afinal.

- Nem precisa. Só em lembrar-se de mim amanhã já terá sido de grande valia.

- Você vai mesmo insistir nessa brincadeira? Então tá. Vai lá, conta mais sobre o que você sabe de mim.

Decididas as armas do duelo, Tomás resolveu interromper seus passos e dirigir-se até outro banco, agora numa das mais belas avenidas da cidade. Em meio àquelas luzes de tom laranja e sob o olhar dos semáforos, continuaram a conversa. Tomás sentiu um novo arrepio só que, dessa vez, era de medo. Medo de um moleque? Sim, mas não “qualquer” moleque. Esse tinha seu toque especial de deboche e ironia que tanto provocavam a ira de Tomás.

- Eu sei simplesmente tudo sobre você, sua vida, seus casos, sua primeira namorada, sua primeira decepção em relação ao seu pai. Quer que eu comece por onde?

- Começa pela infância então. Duvido que você saiba. Se andou me espionando, nunca vai acertar minha infância.

- Não? Sua infância, Tomás, sou eu. Não se lembra afinal dessa mancha aqui? – mostrando o braço esquerdo - ou que eu manco assim como você quando tinha a minha idade? Realmente aquele acidente mudou muita coisa, não é?

Nesse momento Tomás paralisou. E não é que o menino tinha as mesmas marcas que ele quando criança? Como poderia ser aquilo? Quem haveria de ter contado àquele pirralho tantas coisas? E como ele memorizou? Não, não podia ser verdade. Não poderia acreditar que essa noite era um sonho macabro que invadiu seu sono. Beliscou-se para conferir: estava em vigília. E o menino riu-se:

- Que tática sem-vergonha hein? Beliscar-se é muito amador.

- Quem diabos é você afinal?

- Pense um pouco e vai descobrir, Tomás. Olhe com atenção. Essa blusa aqui você ganhou de aniversário de seu pai, um mês antes de ele morrer naquele acidente.

Tomás enfureceu-se e avançou no pescoço do garoto:

- Cala essa sua boca imunda, menino! Não sabe no que você mexeu!

- Não calo não! É isso mesmo que eu quero! Mexer nas suas feridas que você pensa ter cicatrizado à força, com o tempo.

Tomás, o lado mais fraco (com certeza) desse cabo de forças, começou a tremer-se todo. Lágrimas de desespero e medo rasgavam seu rosto. “Como posso estar tão maluco a ponto de alucinar desse jeito?” – pensava. Estaria aí, nessa singela fala, parte das respostas que procurava.

- Mas você não é igual a mim quando eu tinha a tua idade. Eu não sou ruivo, oras, nunca fui!

- Ah, não? Olhe bem, Tomás. Aperte o olhar.

Foi o que tentou fazer Tomás. Era difícil. Não poderia acreditar nessa loucura toda. Deveria estar sonhando, é, isso mesmo.

Antes fosse.

- Vamos, e então? – desafio lançado.

- Mas se você sou eu quando criança, quem sou eu agora? Eu existo ou sou uma fraude também? - Tomás com sua guarda baixa, finalmente.

- Nenhum de nós é uma fraude. Eu estou na sua memória e você na minha. Só isso. E eu vim te fazer uma visitinha cordial. Nada de mais, não precisa mais chorar, eu já me vou embora.

- Como assim? Não, você não pode ir!

- Tomás, é só você olhar-se no espelho e me verá com os mesmos olhos que direciona a mim agora.

O menino, digo, o pequeno Tomás, simplesmente desapareceu como que por encanto bem ali. Tomás, que entendeu praticamente nada, pasmo, voltou ao quarto de número 101, na ala 03, daquele prédio onde tantos se fazem iguais e, ao mesmo tempo, opostos a Tomás. Em meio aos gradientes de um branco emudecedor, Tomás lembra uns versos que fez quando adolescente:

“Fazer-se humano vai além do que se vê.

Ser humano foi uma das tarefas mais difíceis do seu, do nosso Deus.

Para quê descomplicar, se complicando a razão é desconexa e mais bela?

Por que efetivar, se em sonho é que se dá a plenitude da alma?

Para quê normalizar, se é no diferente que se faz o humano?

A solução é a própria dúvida. As respostas para minhas perguntas estão no fim do caminho.

A complexidade é o escárnio do liberto".

Fere, assim, as paredes de seu quarto. Uma voz cessa o movimento:

- Equipe psiquiátrica, favor comparecer ao quarto 101. Emergência. Paciente em risco. Emergência.

Lorene
Enviado por Lorene em 06/08/2011
Código do texto: T3143072
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