Todos os dias, após o almoço, doutor Carlos costumava ir à banca de jornal para ler as manchetes dos jornais sensacionalistas que infestavam as grades onde exemplares dos periódicos ficavam expostos. Nessa sexta-feira porém,certo de que algo estaria prestes a acontecer, ele preferiu voltar direto para o seu consultório. Havia almoçado bife acebolado com arroz carreteiro e feijão mulatinho. Estava com a barriga estufada e pensou por um instante, que precisava maneirar nas comidas da rua. Mas também lembrou que não gostava de levar marmita. Tinha asco de comida requentada no dia seguinte.
     Atravessou a rua enquanto revirava seu blackberry tentando achar o nome de todos os pacientes do dia. Percebeu que seria um dia tranquilo, pois não haveria mais que cinco pessoas na espera. Planejou atendê-los até às quatro da tarde e depois ir ao cinema. Fazia tempo que não assistia a filmes no cinema. Geralmente fazia os downloads em seu computador e depois de assistidos os deletava. Achava absurdo o preço da entrada do cinema atualmente, ainda mais encarecida pela imensa e desnecessária leva de filmes em 3D.
     Chegou ao prédio onde ficava seu consultório. Bocejando, guardou seu celular no bolso da calça jeans esbranquiçada pelo tempo e ficou esperando o elevador. Sua secretária apareceu por trás e lhe deu um susto. Ele odiava a mania de Suzana já entrar falando as coisas. Não anunciava sua chegada, odiava pessoas assim. Um trauma de infância que o acompanhava até hoje. Carlos era totalmente avesso a tudo que fosse surpresa, inclusive festas.
     Achava Suzana uma mulher linda, mas que pouco se cuidava. O marido, um alcoólatra, vivia sumindo e se envolvendo em confusão. Se fosse num outro emprego, ela provavelmente já teria sido demitida, porém Carlos entendia a situação da moça. Mãe de dois filhos, sendo que um terceiro morreu ainda novo, era uma secretária exemplar, tirando claro, o fato de aparecer de supetão nos lugares. Por isso não a mandava embora. Gostava do jeito da moça, e de como levava a sério seu serviço. O doutor sabia que ela só faltava por culpa de alguma besteira do marido, ou pelos filhos.
     Chegou ao consultório acompanhado da moça.
     -Hoje vai ser um dia tranquilo, Seu Carlos. -informou-o. – Eu estou voltando do banco. Fui pagar as contas do senhor. Esse mês o senhor já não precisa mais se preocupar.
     -O que seria de mim sem você, Suzana? Nem sei como irei me virar nas suas férias. Conseguiu falar com sua prima? Aquela que ia te substituir?- perguntou enquanto colocava suas chaves e alguns papéis retirados de seus bolsos sobre sua mesa.- Eu recebo tanto papel de informação e propaganda na rua que num é brincadeira não!
     -A Rosa não quer saber de trabalho não, Seu Carlos. Aquela lá só quer saber de baile funk. Tentei mudar o jeito dela, mas ela disse que vai enlouquecer presa num escritório, que nem eu e o senhor! Ela acha que somos loucos!
     -Ela está certa! Somos loucos! Pelo menos é o que muita gente fala de nós né? Da minha profissão então!- disse o doutor sorrindo e se sentando sobre sua cadeira.
     Carlos abriu a persiana e teve uma linda visão da Baía de Guanabara. Seu escritório ficava num prédio na Avenida 1° De Março, centro do Rio de Janeiro. Podia ver de sua janela a Ponte Rio-Niterói, e quase tudo nas proximidades da Praça XV.
     -Hoje não tem nenhum caso mais duro, Suzana. Alguém ligou desmarcando na hora do almoço?
     -Não... Mas a Dona Carolina ligou perguntando se o filho dela já tinha aparecido pra falar com o senhor. Ela vive perguntando. Ela quer mesmo que ele fale com ela.
     -Eu tenho pena dessa mulher,sabe. Ela quer muito ajudar o filho, mas não sabe como. Ele não fala com ela. E sei lá...
     Carolina era amiga de faculdade de Carlos, mas não conseguiu terminar os estudos após engravidar de Tauã, seu único filho. Grávida cedo, aos dezenove anos, se dedicou na educação do menino ao lado do pai, dez anos mais velho que ela. Porém tudo ficou péssimo após a separação. Quando o rapaz tinha doze anos, teve que lidar com o afastamento do pai, e isso o perturbou.
     -Ela sofreu com o marido também, Suzana. Ele se separou dela pra ficar com outro homem. O menino cresceu nessa confusão toda. Sem contar que presenciou diversas brigas dos dois, inclusive com agressões.
     -Nossa! Coitada! Ela tem um rosto tão bonito, parece uma mulher feliz.- comentou a secretária se encostando na parede próxima a porta do consultório.
     -Engano seu! Ela sofre muito! Pra você ter uma idéia, ela se sente culpada por tudo, por ele ser assim, por tudo mesmo. Ela fez um monte de coisas pra esse rapaz ficar quieto num canto, mas ele não conseguia. Eu queria muito falar com ele, e entender porque ele faz isso com a própria mãe. Queria muito que ele aparecesse aqui.
     -É complicado... Bem, me deixa voltar pro serviço. A primeira paciente só vem daqui à uma hora. Quer alguma coisa?
     -Não Suzana. Se quiser pode ir almoçar. Vou tentar ler um pouco. E pode trancar a porta. Você tem esquecido de trancá-la hein! Não é porque tem porteiro no prédio que isso nos faz mais seguro!
     A moça assentiu com a cabeça e saiu do consultório. Pegou sua bolsa sobre a cadeira e foi para a rua almoçar.
     Alguns minutos depois, o doutor sentiu o peso da comida fazendo efeito no seu estômago. Passou as mãos no rosto e viu que estava suando frio.
     -Maldito feijão!-resmungou levantando-se correndo na direção do banheiro.
     Ao chegar na porta, pode ouvir alguém tossindo do lado de dentro.
     -Suzana? Você ainda não foi almoçar, mulher?- perguntou enquanto batia insistentemente na porta.
     Ouviu alguém destrancá-la e por fim abrí-la. Um rapaz magro e alto saiu de dentro do banheiro.
     -Opa, rapaz! Quem é você... Como entrou aqui?-perguntou Carlos assustado.
     -E cheguei lá embaixo me mandaram subir. Aí bati aqui na porta e ninguém atendeu... Quando mexi a porta abriu... Aí eu entrei.
Imediatamente o doutor se lembrou do problema de sua secretária esquecer de trancar a porta. Se o rapaz fosse um assaltante, ele estaria literalmente ferrado.
     -E qual o seu nome? Pensei que o próximo paciente só viesse às duas horas.
     -Meu nome é Tauã, cara.
     Carlos engoliu a seco.
     -Então é o filho da Carolina? Nossa você se parece muito com ela.
     -Sou sim. Ela é minha mãe. Olha só, eu nunca fiz isso, num sou desse negócio de terapia não. Mas sempre ouvi minha mãe falar muito do senhor, e de que eu precisava disso. Resolvi procurar.- informou o rapaz com  um jeito de falar um tanto prepotente.
     Carlos enquanto fazia as boas vindas e falava de como respeitava Carolina, mentalmente tentava lembrar de tudo que ela havia falado do filho. Aproveitou também para perceber e reconhecer os defeitos que ele possuía. Parecia se achar o dono do mundo, o dono da verdade. Parecia se achar o inatingível. Seus olhos eram bonitos. Eram verdes como os da mãe. E seu nariz era levemente torto, como ela descrevera. E realmente era alto. Quase um metro e noventa e pouco provavelmente.
     -Vamos entrando. Temos muito que conversar. - falou o doutor apontando-lhe a cadeira mais confortável do consultório.
     Tauã entrou desconfiado no lugar. Olhou para todos os cantos e reparou os diplomas espalhados pelas paredes, porém ficou com preguiça de ler do que se tratavam.
     Ambos se sentaram e ficaram devidamente confortáveis.
     -Quer uma água? Alguma coisa, Tauã?
     -Doutor, eu só quero saber o que posso fazer pra minha mãe parar de me encher a porra do saco e de chorar. Ela tá me atormentando.
     -Não fale assim. Ela gosta de você. Ela quer que nós conversemos há anos... mais ainda depois de tudo o que aconteceu!
     -Ela não queria que eu saísse de casa pra morar sozinho. Ela quer que eu seja o bebezinho dela! E eu já tenho vinte anos. Não vou ficar “mamãezado”. Além do mais, como ela quer que eu volte a morar com ela, se quando eu vou à casa dela, simplesmente finge que eu não estou lá? Hein?
     -É complicado, Tauã. Conheço sua mãe há anos, e sei de tudo que sua família passou. Quer falar sobre isso?
     -Ah...- suspirou sorrindo- Ela falou do viado do meu pai então?
     -Sim, ela se referiu ao homossexualismo de seu pai. E de como isso afetou você...
     -Tá me chamando de afetado?
     -Não, Tauã. Digo afetar no sentido de te deixar revoltado. Você tinha vergonha dele?
     Tauã relutou em responder. Começou a esfregar as unhas nos braços da cadeira qual estava sentado. Parecia nervoso.
     -É que...
     -Pode falar, amigo. Não sei se deixei claro... Acho que não, mas tudo que você disser aqui, ficará aqui! Pode falar tudo o que quiser, estou aqui para ajudá-lo.
     -Sei... Provavelmente assim que eu sair pela porta você liga pra ela e me cagueta! Vocês médicos são assim! Por isso nunca me dei bem! Por isso nunca fiquei internado, sempre fugi! Não confio em vocês.
     -Tudo bem, sei por tudo que você passou, Tauã. Sei mesmo, mas lembre-se que você veio aqui pra ajudar sua mãe. Ela quer que você fique bem. Que possa ficar tranquila que você tá bem. Queria te entender e te fazer entender.
     -Eu tinha vergonha dele. Vai dizer que você também não teria? Seu pai uma bicha! Namorando e morando com outra bicha! Meus amigos riam de mim.     Jogavam ovos em mim. Eu tive que trocar de escola, mudar meus amigos. E virava e mexia alguém descobria. E lá estava eu de novo sem amigos.
     -Deve ter sido difícil. E você nunca pensou em conversar com ele?
     -Eu tinha doze anos. Desde os quinze que não o procuro. Ele até tentava falar comigo, mas tem uns meses que ele não fala mais nada. Aliás, tem uns meses, acho que um mês e meio que nem minha mãe fala comigo.
     -E por onde você andou nesse tempo? Sua mãe tenta falar com você...
     -Mentira doutor! Ela deve te contar a versão dela! Ela não vai contar que praticamente me ignora quando apareço em casa. Foi numa dessas que decidi pegar o carro e sumir de vez!...
     Nesse instante o rapaz levou as mãos à cabeça. Parecia estar sentindo dores fortes. O doutor se levantou na cadeira, mas não se aproximou.
     -Está tudo bem? O que está havendo?
     -Não sei... Eu tenho sentido essas dores estranhas na cabeça. Muito forte mesmo! Parece... Sei lá, parece que tão prensando ela contra a parede! E às vezes eu tenho uns desmaios loucos... Acordo em lugares diferentes...
     -Isso é sintoma de estresse... Pelo menos acho eu...
     -Eu estou ficando maluco! É... Eu estou ficando louco e a culpa é da minha mãe. Tenho visto coisas estranhas doutor. Tenho visto...
     Carlos voltou a se sentar ao notar que o rapaz já estava melhorando.
     -O quê? Fala...
     -Eu tenho visto pessoas da minha família que já morreram. Não sei se estou sonhando... Mas eles tentam falar comigo. Sempre vejo minha avó Clarice. Ela sempre tenta me abraçar. É tão real.
     Aquilo tocou Carlos. De repente, num súbito, ele se lembrou que antes de Tauã chegar, ele estava indo ao banheiro. Foi então que a dor de barriga voltou.
     -Tauã, eu preciso ir ao banheiro. Você fica aqui? Já volto... É que comi demais no almoço...
     -Não precisa me contar essas coisas! Só joga bom-ar no banheiro! Cagar em escritório é a pior coisa que tem. Todo mundo sente... Todo mundo sabe!
     Ambos sorriram. Carlos sentiu que o rapaz precisava desabafar as coisas que sentia, para melhorar suas atitudes, para perdoar sua mãe. Precisava fazer algo.
     -Já volto. –disse saindo do escritório.
     Tauã ficou sozinho. Sentia-se leve. Começou a se lembrar um pouco mais das coisas. Era engraçado como se sentia. Antigamente sua cabeça era confusa. Se sentia louco, tinha raiva de tudo. Leu que estresse causava perda de memória, e provavelmente todo o ódio que sentia de seu pai, e depois de sua mãe, o fazia apagar certas coisas. Talvez fossem os motivos de suas constantes dores de cabeça insuportáveis. Talvez fosse o motivo de seus esquecimentos, o motivo de suas estranhas visões. Sentiu que estava ficando louco, de modo que também se sentia bem de certa forma. Apenas com mágoas.
     Cinco minutos depois Carlos voltou. Ao entrar no escritório ele viu que já havia se passado vinte minutos. Tinha ainda quarenta para tentar entender e ajudar o rapaz. E agora a espera ainda aguardaria uma outra surpresa.
     -Demorei?
     -Não... Mas espero que tenha lavado as mãos.
     Sorriram.
     -Pode continuar, rapaz. Você dizia que tem tido visões...
     -Não sei se são visões, se são sonhos. Eu tô confundindo coisas. Eu nunca sei o que está acontecendo. Tem certas vezes que eu chego em casa do nada. Eu simplesmente apareço lá... Acho que estou mesmo ficando louco.
     -Como era a relação sua com sua mãe?
     -Doutor, não quero falar dela. Ela provavelmente tem feito minha caveira pro senhor. Ela foi a primeira a achar que eu estava ficando louco! E nunca moveu as mãos pra nada!
     -Você sabe que ela sempre tentou te levar a um especialista. Você que nunca quis.
     -Ninguém assume que está louco! É mais fácil assumir outra personalidade... mas não assumir que está louco! Não era louco! Talvez tenha ficado por culpa dela! Por essa insistência! Ela me mimou demais!
     -Não tem lógica. Talvez você tenha tentado tanto provar que não era louco, que acabou fazendo mais besteiras que só aumentaram essa desconfiança nela. Ela nunca se referiu à você como louco. Ela sempre dizia que você era rebelde. Que fumava maconha, que chegava bêbado em casa... Ela morria de preocupação quando você pegava o carro e saía após uma briga. Ela só queria te ajudar, e ainda quer.
     -Então como me explica eu ir lá em casa e ela me ignorar? É maneira que ela encontrou de me fazer vir aqui?
     -Não Tauã. É que ela não sabe como falar com você. Tem medo e se sente insegura. Ela tem me pedido isso há muito tempo, mas você nunca apareceu.
     -Assim como ela nunca tomou iniciativa. Desde que sofri o acidente eu tenho tentado mudar, vi que a vida é curta, que temos que tomar cuidado. Mas ela só quer chorar. Invés de ficar feliz que não aconteceu nada de grave, ela só chora... Só chora! Porra custa falar.
     -Ela se sente culpada por ter te dado o carro!
     -Mas a culpa nem foi minha! Foi aquele filho da puta que me fechou! Mas eu Saí bem... Saí andando e tudo! Pro senhor ver, eu nem fiquei lá! Vim embora pra casa e nunca mais quis saber do carro!
     -Não procurou um médico?
     -Pra quê? Eu estava bem! Eu estou bem! Mas essas dores de cabeça e essas visões estranhas estão me matando!
     -Ué, podem ser consequência do acidente. Você pode ter batido com a cabeça. Isso causa alguns distúrbios, mesmo que temporários.
     -Não, não. Acho que quando temos uma experiência de quase morte, a gente fica meio afetado né? Deve ser isso! Quase fui pro beleléu, e agora “I see dead people”. – Disse o rapaz sussurrando a fala do filme “O Sexto Sentido”, qual o menino personagem principal tinha o dom de falar com os mortos.
     Doutor Carlos se recostou na cadeira.
     -Tauã, acho que tudo isso acabaria se você conversasse com sua mãe. Ela pode te ajudar a entender as coisas. E assim tudo ficará bem. Eu atendo pessoas como você o tempo todo. Algumas ainda mais complicadas.
     -Não quero assunto com ela. Ela tá puta por causa do acidente. Não vou falar com ela. Vou continuar por aí livre. Um dia essas dores de cabeça passam.
     -Cara, quando você entender sua cabeça, sua situação, tudo vai se tornar maravilhoso.- comentou o doutor elevando os olhos rapidamente para o relógio sobre a mesa aonde haviam porta-retratos.
     Os dois ficaram em silencio por alguns instantes. Carlos em trinta minutos já havia entendido a situação do rapaz. Só não sabia definir como aquilo terminaria.     Precisava que quem ele estava esperando chegasse para que pudesse ajudar Tauã.
     -Sua avó, ou alguma dessas pessoas que você tem visto, elas dizem algo para você?
     -Não. Elas apenas sorriem e tentam me abraçar. Mas eu fujo. Euhein! Dizem que abraçar mortos nos sonhos é praticamente assinar o cartão de embarque. Sou muito novo! Tenho muita coisa pela frente...
     Nesse instante a campanhia tocou.  Os olhos do doutor novamente foram pro relógio, mesmo tento o consultado alguns segundos antes.
      -Deve ser minha secretária.- anunciou Carlos se levantando e indo até a porta.
     Ao abrir, recebeu uma braço forte. Enquanto abraçava a tal pessoa pode ver sua secretária o encarando com olhar de piedade.
     -Ela estava lá embaixo pensando se subia ou não. -Informou Suzana enquanto ajeitava uma quentinha com os restos de seu almoço nas mãos.
     -Ela chegou rápido. Faz menos de vinte minutos que liguei.
     Afastou a pessoa e olhou-a nos olhos. Era Carolina. Estava com os olhos marejados. Parecia ter chorado nas últimas duas horas.
     -Hoje eu acordei com aquela sensação esquisita. Foi aí que você me ligou! Como ele está?- perguntou a mulher sem coragem de olhar para dentro do consultório.
     -Confuso. Falamos pouco sobre tudo, mas acho que já entendi o que está acontecendo. É exatamente o que eu havia te falado.
     -Ele está confuso? Está machucado? Sujo?... Está inteiro?- perguntou receosa.
     -Sim, muito confuso. Mas está bem. Ele está sentado lá dentro. E está com raiva de você. Ele disse que você não fala com ele. Que o ignora quando ele aparece em casa. Isso tem mexido com ele. Isso explica tudo aquilo que você tem sentido... Vamos entrando, Carol? Melhor não adiarmos mais isso.
     Ela assentiu e outra vez o abraçou. Estava muito nervosa.
     -Deixa que eu falo com ele, querida. Deixa que eu explico as coisas.
     Ela segurou a mão do doutor e entrou na sala de espera.
     -Ele está no consultório...- informou o Doutor e virou-se para Suzana. – Me faz um favor. Desmarque as outras consultas. Hoje ao quero mais lidar com isso.
     A secretária fez que sim com a cabeça e sentou-se à mesa começando a ligar para as outras pessoas.
     Dentro do consultório Tauã estranhava a demora do doutor. As dores de cabeça viam e voltavam, e ele tentava se lembrar do que havia comido no almoço. Não sentia fome, mas não se lembrava do que havia comido. Foi tentar lembrar do que havia comido no dia anterior, mas também não conseguira se lembrar.
     Foi então que a porta se abriu.
     Ele se virou e ficou surpreso.
     -O que ela está fazendo aqui?- perguntou Tauã.
     -Calma... Eu liguei pra sua mãe quando estava no banheiro. Ela pode te ajudar.    Apenas ouça o que ela tem pra te dizer cara!
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     Enquanto isso, na sala de espera, Suzana tentava contatar os outros pacientes do dia para desmarcar as consultas. Conforme ela desligava pra ligar para a próxima pessoa, o telefone tocava com mais pessoas tentando marcar consultas com o Doutor Carlos. Ele era um médico reconhecido no que fazia.
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     -Ouça o que ela tem a dizer, Tauã. Ela é sua mãe. E só ela pode te ajudar!
     -Se ela quisesse me ajudar mesmo, falava comigo lá em casa e não me ignorava! Ela é covarde! Ela nem está olhando nos meus olhos!
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     Suzana já estava ficando irritada com o telefone tocando toda hora. Parecia ser uma idosa perguntando sempre a mesma coisa. Velhinhos e telefone realmente não combinavam na sua opinião.
     -Alô!... Não minha senhora, pela décima vez isso aqui não é um ortopedista... Não! Aqui é um consultório. Eu já falei pra senhora...- fez uma pausa para escutar a senhora que falava algo sobre dores nas juntas. – Eu entendo a sua dor, minha querida, mas aqui não é um consultório de ortopedia. Não, não é. Aqui é um consultório de consultas espirituais. Somos parte da Federação Espírita.
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     Tauã levantou-se da cadeira aborrecido.
     -Eu sabia que não podia confiar em médicos. Sabia que o senhor ia me entregar!- Muito irritado, o rapaz começou a jogar as coisas sobre a mesa do doutor no chão.
     Carolina se assustou e chegou a ir até a porta. Para ela era estranho ver aqueles objetos ganhando vida e caindo contra o chão violentamente sem que ninguém o tocasse.
     -Ele está irritado Carolina. Fale com ele. Ele vai te ouvir.
     -Não quero escutá-la... Eu vou embora... Eu vou...
     Quando o rapaz enfurecido ia jogar um copo de vidro contra os dois, Carlos se colocou na frente da mulher.
     -Tauã, você se lembra como chegou aqui?
     O rapaz parou. Ficou pensativo. E parecia estar se acalmando.
     -Você se lembra de como tem se deslocado para os lugares?-perguntou o Doutor saindo da frente de Carolina.- Pare e pense Tauã. Tente imaginar tudo o que você tem feito. Você não lembra de nada?
     Nesse momento ele deu um passo para trás.
-    Ele parece estar confuso... Acho que vai entender. Fale alguma coisa,Carol.- sussurrou o doutor.
     -Meu filho, eu e seu pai sofremos muito com a sua partida. Você não sabe como é saber que não iremos ver uma pessoa nunca mais, e saber que ela se foi cheia de mágoas!- disse a mãe já começando a chorar.
     -Do que você está falando? Eu não parti! Sumi por uns tempos! E quando voltei você simplesmente não me ouvia! Por quê?
     Carolina estava em silêncio.
     -Foi o que imaginei! Você não tem nada pra falar...
     -Ela não pode te ouvir, Tauã.-informou o doutor tentando se aproximar do rapaz.
     -Claro que pode! Ela não é surda! Ou não entende mais o português? Não estou sendo claro? Eu digo em alto som: Você está me deixando maluco! Eu te odeio!- gritava o rapaz transtornado.
     -Tauã, você precisa ser forte. Mas eu tenho que te dizer uma coisa. Você não está bem!
     -Ah doutor, estava se fazendo de meu amiguinho, e agora que ela chegou vai dizer que estou louco também!
     -Não Tauã. Você está morto! Você morreu há um mês e meio, só não se deu conta disso! Você morreu no acidente de carro... Sua cabeça foi dilacerada e você morreu na hora!
     O rapaz começou a rir.
     -Ah! Eu estou louco? E esse papo de morto? Acho que você comprou seus diplomas! Devia ter lido quando entrei... - Foi se aproximando dos diplomas na parede, e todos eles falavam de mediunidade comprovada.  –Ah... você se diz médium? Para vocês todo mundo fala com mortos né?
     -Não sei de todo mundo Tauã. Mas eu falo! E você está morto! Você precisa perdoar sua mãe e aceitar que morreu no acidente. Só assim vai se acalmar. Só assim essas dores vão te deixar! Você ainda carrega ódios e dores da vida. Precisa se desprender! Seus parentes já falecidos tentaram te mostrar isso mas você os ignorou! Sua avó já havia falado comigo, ela tem tentado te ajudar, mas você não deixa cara! Eu também me sentia confuso quando comecei a ter visões, ouvir e falar com pessoas que somente eu podia ver. Quando me dei conta de que era um dom e que eu poderia ajudá-los... Quando aceitei meu dom, eu melhorei e passei a viver em paz!
     Carolina se aproximou de Carlos.
     -Filho, queria eu saber que você estava lá em casa. Eu só sabia chorar. Só sabia imaginar você entrando pela porta e me abraçando. Buzinando como sempre fazia. Mesmo que entrando direto pro quarto com raiva da vida. Pelo menos eu sabia que você estava ali. Queria te abraçar de novo. Queria poder ouví-lo. Imaginava que todo aquele seu comportamento em vida era influência de maus espíritos. O doutor disse que não, você sempre fora protegido por sua avó. As drogas que estavam fazendo aquilo contigo. Procurei o Carlos para afastar os possíveis maus espíritos que estivessem fazendo aquilo contigo... mas ele me ajudou de outro jeito.
     Carlos abraçou Carol.
     -Rapaz, sua mãe nunca quis o seu mal. Ela sempre quis te ajudar. Mas você não via isso! Sua paranóia das drogas estava te fazendo odiá-la sem motivos. Isso o levou a morte. Ao acidente trágico. Você precisa se libertar desse ódio.
     Tauã estava começando a se convencer de tudo que ouvia. De fato fazia um mês que sua vida andava estranha. Todas aquelas sensações nunca sentidas antes.  Todas as vozes que ouvia na mente, as pessoas que via... Praticamente parecia não existir. Parecia impercebível pelas ruas.
     -Enterrá-lo de caixão fechado foi doloroso, filho. Mas você estava irreconhecível...
     Ao olhar para um espelho próximo, o rapaz pode ver seu corpo decapitado.  Nesse momento voltou ao dia do acidente. Eram duas da manhã e ele vinha em alta velocidade pela Avenida Brasil. Resolveu acender um cigarro enquanto dirigia, mas ao levantar os olhos de volta para a pista, viu um caminhão surgir. Ouviu a explosão, ouviu as buzinas, e pode se ver saindo do corpo e indo embora, como se nada tivesse acontecido.
     Voltou com a mente para o consultório.
     -Eu estou morto!- disse reconhecendo seu estado e tentando entender o que sentia.
     -Eu te amo, meu filho. E quero que você vá para o céu sabendo que sempre fiz de tudo para sua vida ser boa. Sei que fracassei, sei que sou culpada pro seu comportamento. Minhas brigas com seu pai te fizeram muito mal...
     -Ela pode me ouvir, doutor?
     -Não Tauã. Mas pode falar que repito igualzinho.
     -Diga a ela que tudo que eu fiz era por atenção. Eu nunca a odiei. Eu só queria que ela me notasse, além de me deixar viver a vida do meu jeito. Ela não tem culpa. Eu fui fraco e paguei com a vida.
     -Só de você me procurar, Tauã. Só tendo essa atitude, você já mostrou que não é fraco. Livre-se das amarras! Perdoe seus pais...
     -Cadê meu pai, doutor?
     -Sua mãe disse que ele não acredita nessas coisas. Ele tem raiva de Deus por ter te levado de maneira trágica. O perdoe por isso!
     Tauã sorriu e se aproximou de Carolina. Beijou-a no rosto. Ela pareceu sentir. Sentiu um vento frio com cheiro de terra molhada. O cheiro que seu filho adorava quando criança. O cheiro que para sempre a faria se lembrar do filho que ela amou para sempre, e que sabia que por mais que demorasse, um dia o encontraria de novo para um abraço demorado.
     Carlos pode ver uma luz intensa surgir no consultório e junto com ela o rapaz sumir com uma áurea mais leve e bela. Rumo ao seu perdão eterno.

 
 
 FIM
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Obrigado!
Rafael Velloso

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Fael Velloso
Enviado por Fael Velloso em 02/08/2011
Reeditado em 02/08/2011
Código do texto: T3135792
Classificação de conteúdo: seguro
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