Peixes mortos
Ele acordou e viu que ela não estava mais ali, era de se esperar, pega um maço de cigarros que foi esquecido no criado mudo, acende um e vai em direção a única janela do apartamento pouco mobiliado, tudo parece tão pequeno visto dali, 9° andar, seria uma ótima solução se a janela não estivesse emperrada, pega um molho de chaves do bolso, saindo do apartamento tranca a porta, mas volta pra conferir, desce de escadas, tira o carro da garagem, o dia está quente e abafado, no caminho ele para em um bar próximo a uma roda de samba onde um português canta com sotaque uma música de Chico Buarque, no balcão ele pede uma dose de cachaça, vira o copo na boca, a gosto forte e amargo da bebida desce queimando a garganta, ele pede outra, e outra, ao lado do armário de bebidas tem um aquário, não muito grande, com a água turva, ele logo percebe que o único peixe visível na água amarelada não se mexe, está levemente emborcado, boiando, agora são dois, ambos no mesmo estado, voltando-se para o homem do balcão ele afirma:
-Esses peixes estão mortos.
O homem do balcão, lavando copos, sem dar muita atenção responde:
-Sim, estão.
Ele intrigado, pergunta:
-E porque, ainda estão aí?
O homem diz que morreram esta manhã, e ainda não sabe o que fazer, se joga na privada ou no lixo, ele, o que bebe, sorri com o descaso do homem em relação aos peixes mortos. Paga a conta e agradece ao homem do balcão que diz “Até a próxima!”, ele para, responde “Tchau.” Volta pro carro.
Dessa vez ele para em frente a um estreito sobrado com cara de antigo, verde irlandês, em frente a casa tem um jardim um tanto exagerado, onde, com certo descuido, crescem vários tipos de plantas, de tamanhos irregulares, desde palmeiras a alguns pequenos arbustos que ele desconhece, cerca de 10 minutos depois o vemos de volta, batendo a porta, e caminhando em direção ao carro, está agitado, passa a mão ainda trêmula na testa suada, acende um cigarro, no retrovisor ele percebe alguns arranhões no pescoço, ajeita a gola da camisa, fecha a porta, fica um tempo em silêncio, e então liga o carro, no caminho ele para mais uma vez em frente ao mesmo bar, a roda de samba continua ali,diferente do aquário, que ele não vê mais. Guarda o carro na garagem, entra no prédio, sobe de escadas apressadamente para evitar qualquer “Boa tarde!” no elevador, entra no apartamento, no banheiro liga as torneiras da banheira, enquanto enche, põe sobre a cama uma camisa azul e sua melhor gravata, liga o rádio que está fora de estação, só se ouve um chiado chato com uma musica qualquer ao fundo, toma o banho, veste a camisa e põe a gravata ainda com os cabelos molhados, 18:00, na mesma janela emperrada ele olha a praia, as luzes, as prostitutas, os carros, debaixo da cama ele tira uma pequena caixa de madeira, toma um gole do que tem no copo que está em cima do criado mudo, da caixa ele tira um Taurus RT 88 que apoia sobre a têmpora direita, força uma cara de choro, mas é tarde pra chorar, e então tudo que se pode ver é o desenho abstrato que se forma em vermelho na parede verde acinzentada.