Preces a Tutu-zambê
Arthur tinha onze anos de idade e há muito um médico manifestara sua opinião profissional de que o guri viveria não mais do que três anos. Acima de tudo sentiria muita dor. Mesmo depois de dois anos e alguns sinais de fraqueza física demonstrados por ele a opinião do médico meloso, afeminado e incompetente não tinha valia para Rita Campos. Rita era tia e tutora de Arthur e aos olhos dele ela representava aqueles três quintos do mundo que são necessários, desagradáveis e reais; os outros dois quintos, em perpétuo antagonismo com os precedentes, resumiam-se a ele próprio e sua imaginação. Arthur achava que um dia desses ia sucumbir à dominante pressão de coisas necessárias e cansativas, como doenças, restrições opressivas e aborrecimentos planejados. Sem sua imaginação criativa, que era exuberante sob a pressão da solidão, ele teria sucumbido antes mesmo de se dar conta.
Tia Rita jamais confessaria, mesmo em seus momentos mais francos, que não gostava de Arthur, embora pudesse ter uma vaga consciência de que oprimir o guri para seu próprio bem era um dever que não achava particularmente desagradável. Arthur a odiava com uma desesperada sinceridade, que era capaz de mascarar; oras sim, oras não. Odiava o método insistente da tia de pentear sua mecha branca em meio aos cabelos negros. Os pequenos prazeres que se proporcionava adquiriam um sabor particular quando sabia que desagradariam a sua tutora. Da sua imaginação ela era banida: uma coisa impura, que não podia ganhar admissão.
No pátio, sem graça e triste, vigiado por tantas janelas sempre prontas a se abrir com uma mensagem de não fazer isto ou aquilo, ou um lembrete de que estava na hora do remédio, ele encontrava pouco atrativo. Das poucas árvores frutíferas ali existentes ficava ciosamente impedido de colher, como se fossem raros espécimes de sua espécie a florescer num deserto; provavelmente seria difícil encontrar um verdureiro que oferecesse noventa centavos por toda a produção anual. Num canto esquecido, quase escondido atrás de uma meia dúzia de árvores, havia um paiol de ferramentas abandonado, de proporções respeitáveis, e entre suas paredes Arthur encontrou um abrigo, algo que assumia aspectos variantes; ora era sala de brincadeiras, ora uma catedral. Ele o havia povoado com uma legião de fantasmas familiares, evocados em parte de fragmentos de história, em parte de sua própria cabeça, mas exibia também dois ocupantes de carne e osso. Num canto vivia uma galinha de plumagem despenteada sobre a qual o guri despejava um afeto que não tinha nenhuma outra forma de se manifestar. Mais para o fundo, no escuro, ficava uma gaiola grande, dividida em dois compartimentos, um dos quais tinha à frente barras de ferro bem juntas. Era a morada de um caititu que o filho do açougueiro tinha trazido escondido para sua atual morada, em troca de um monte de moedinhas acumuladas depois de um longo tempo surrupiando a niqueleira da tia.
Arthur morria de medo do bicho ágil, de presas afiadas, mas era a coisa mais preciosa que possuía. Sua mera presença no paiol de ferramentas era uma alegria secreta e amedrontadora, a ser mantida escrupulosamente escondida do conhecimento da tia. Um dia, sabe-se lá de onde, ele inventou para o bicho um nome maravilhoso, e desse momento em diante o caititu transformou-se num deus e numa religião. Tia Rita praticava religião uma vez por semana numa igreja próxima e levava o guri com ela, mas aquele culto era lhe estranho. Toda sexta-feira, no silêncio penumbroso e embolorado do paiol de ferramentas, ele celebrava um místico e elaborado cerimonial diante da gaiola de madeira onde vivia Tutu-zumbê, o grande caititu. Milho e amendoim eram ofertados em seu altar, pois ele era um deus que punha certa ênfase especial no lado feroz das coisas, ao contrário da religião da tia, que, na medida em que Arthur conseguia perceber, ia bem longe em direção contrária. E nas grandes festas noz-noscada em pó era espalhada na frente de sua gaiola, sendo um aspecto importante que a noz-noscada devia ser roubada. Essas festas ocorriam de modo irregular e eram marcadas principalmente para celebrar algum evento passageiro. Numa ocasião, quando tia Rita sofreu uma aguda dor de dentes por dois dias, Arthur manteve a festa por dois dias inteiros e quase conseguiu se convencer que Tutu-zambê era pessoalmente responsável pela dor de dentes. Se aquilo durasse mais um dia, o suprimento de noz-noscada teria esgotado.
A galinha, por sua vez, nunca participava do culto a Tutu-zambê. Arthur tinha determinado havia muito que ela era uma herege. Ele não fingia ter a mais remota idéia do que seria um herege, mas havia escutado em conversas da igreja e esperava que fosse algo ousado e não muito respeitável.
Depois de algum tempo, a concentração de Arthur no paiol de ferramentas começou a atrair a atenção de sua tutora.
– Não é bom para ele ficar vagabundeando lá o tempo todo – ela decidiu prontamente. E anunciou um dia no café da manhã que a galinha tinha sido vendida e fora levada embora durante a noite. Com seus olhos míopes ela examinou o guri, à espera de que tivesse um ataque de raiva ou de tristeza, que estava pronta a reprimir com uma torrente de excelentes preceitos e argumentos. Mas Arthur não disse nada: não havia nada a dizer. Alguma coisa, talvez, em seu rosto vazio, desse a ela momentânea inquietação, pois na hora do café naquela tarde havia torrada na mesa, uma iguaria que ela normalmente proibia sob o argumento de que não fazia bem a ele; e também porque o preparo da torrada dava trabalho, dizia ela.
- Pensei que gostasse de torrada – exclamou ela, com ar injuriado, vendo que ele não a tocara.
- Às vezes - disse Arthur.
No paiol naquela noite, houve uma inovação no culto do deus engaiolado. Arthur estava acostumado a entoar-lhe louvores, mas naquela noite pediu uma bênção.
- Faça uma coisa por mim, Tutu-zambê.
A coisa não foi especificada. Como Tutu-zambê era um deus, ele deveria saber. E, engolindo um soluço ao olhar para o outro canto, vazio, Arthur voltou ao mundo que tanto detestava.
E toda noite no escuro de seu quarto, e toda tarde na penumbra do paiol, e toda manhã ao se levantar, Arthur fazia suas amargas preces:
– Faça uma coisa por mim, Tutu-zambê.
Vendo que as visitas ao paiol de ferramentas não tinham parado, tia Rita decidiu fazer uma nova inspeção.
– O que você esconde lá, guri? – perguntou ela. – Aposto que são porquinhos-da-índia! Vou dar sumiço neles, já, já!
Arthur não abriu a boca, mas a tia fuçou o quarto até que encontrou a chave cuidadosamente escondida. Na mesma hora, ela se dirigiu ao paiol, para arrematar sua descoberta. Fazia frio e o menino não tinha permissão para sair. Ele, então, foi postar-se à última janela da sala de jantar, de onde podia ver a porta do seu refúgio disfarçada por algumas árvores de eucalipto. Viu quando a mulher penetrou no paiol. Imaginou-a abrindo a porta da gaiola sagrada e apertando os olhos míopes para conseguir enxergar o leito de palha onde o seu deus repousava. Talvez ela cutucasse o seu deus com um pedaço de pau, impaciente e desajeitada…
E Arthur murmurou a sua prece com fervor. Pedia, mas, de fato, não acreditava que seu pedido seria atendido. Ele sabia que aquela mulher iria logo sair, com um sorriso irônico pregado no canto da boca, sorriso que ele tanto detestava, e que, dali a uma hora ou duas, a empregada levaria embora o seu deus maravilhoso, que nem um deus mais seria, mas apenas um simples caitutu dentro de uma caixa. Ele sabia também que a tia triunfaria sempre, como agora, e que ele estaria cada vez mais doente, tiranizado pela implacável sabedoria do médico que ela ironizara. Até o dia que nada mais teria importância, e todos teriam certeza de que o médico tinha razão. No seu sofrimento e resignação pela derrota, ele começou sua prece bem baixinho, era o hino ao ídolo ameaçado:
Tutu-zambê, Tutu-zambê!
Empresta teu sono,
Para que a mulher durma.
Iacuturu, Tutu-zambê!
Empresta teu sono,
Para que o menino durma.
Tutu-zambê, Tutu-zambê,
Todos dormiremos,
Menos você.
Bruscamente, o guri se calou e tornou a aproximar-se do vidro da janela para ver melhor lá fora. A porta do paiol continuava entreaberta, e os minutos se arrastavam. Arthur viu pássaros esvoaçando e correndo pela grama em pequenos grupos. Contou-os e recontou-os, mantendo um olho fixo na porta. A empregada entrou e pôs a mesa para o café, enquanto ele, sempre imóvel, perscrutava a porta.
Pouco a pouco, a esperança foi abrindo caminho no coração do guri e uma auréola de triunfo iluminou os seus olhos. Uma vez mais, ele sussurrou sua prece. Desta vez, foi recompensado: na soleira da porta apareceu um animal longo e sinuoso, com o pelo arruivado. Ele piscou os olhos à luz do dia. Em redor das mandíbulas e do pescoço, manchas úmidas e sombrias maculavam sua pelagem. Arthur caiu de joelhos, mas não sem antes ver o animal esgueirar-se no meio das folhagens e tomar o rumo do riacho, no fundo do pátio, onde desapareceu.
A empregada entrou na sala de jantar, perguntando pela tia Rita.
– Ela foi na direção do paiol, já faz um bom tempo – respondeu o guri.
Enquanto a empregada procurava pela patroa, Arthur pegou manteiga, algumas fatias de pão, cortou uma fatia de queijo e uma de presunto e começou a preparar uma torrada. Durante todo o tempo em que ele a prensou, depois de passar bastante manteiga, antes de lentamente saboreá-la, ouvia, vindo do corredor, os barulhos entrecortados de bruscos silêncios, os gritos histéricos da empregada, o eco das exclamações incrédulas provenientes da cozinha, os passos precipitados e os pedidos de socorro. Enfim, após um breve período de calmaria, soluços de pavor e passos cambaleantes de alguém que trazia um pesado fardo às costas encheram a casa.
– Quem vai contar para o guri? Eu não tenho coragem! – disse uma voz aguda.
Enquanto eles discutiam o assunto entre si, Arthur, que cantava em silêncio o hino ao seu deus, preparava outro pedaço de pão para torrar.