Sombras

Você acha possível que alguém mude tanto? Digo, quais as chances reais de, de uma hora pra outra, você ser atacado enquanto desfruta do beijo mais apaixonado que já recebeu em toda a sua vida? Até então, eu não sabia o que eles faziam; onde eles estavam; ou o que eles eram realmente. Naquele momento, eu só sabia que aquela não era a garota que eu amava, e que a dor e frieza que eu sentia no corpo eram resultado da punhalada que eu recebera em meu abdômen.

Meus olhos se abriram lentamente, sendo incomodados por uma luz forte. Eu não sabia ao certo onde estava, ou se havia sobrevivido. Poderia ter acordado, quem sabe, no próprio paraíso, ou no inferno. Eu só lembrava-se da sensação do meu corpo despencando, um grito de desespero e nada mais.

Aos poucos, fui percebendo que lugar era aquele. A cama, as luzes, o quarto, as enfermeiras... Por sorte eu havia sido socorrido a tempo.

Alguns dias no hospital foram bastante para esclarecer algumas coisas. 1) eu havia conseguido recordar meu nome: Steven Karter; 2) estava tudo bem com minha namorada; e 3) ela não lembrava de absolutamente nada que acontecera aquele dia a não ser a hora em que, palavras dela: “tudo se acendeu e eu vi seu corpo caindo. O punhal em minhas mãos sujas de sangue.”.

Quais as possibilidades de algo assim acontecer? Julie teria sido presa se eu não tivesse mentido para a polícia daquela maneira, ao dizer que um cara tinha tentado me roubar, mas eu não tinha nada para dar a ele. Meu caso foi jogado naquela pilha de espera. É, eu sei que foi errado, mas eu não podia entregá-la; não podia abandonar a mulher que eu amava tanto – e com a qual eu me casaria em breve – sem antes investigar eu mesmo. Se ela dizia que não se lembrava de nada, de alguma maneira eu acreditava.

Meu nome é Steven; Steven Karter. Tenho vinte e dois anos, sou dono de empresas e negócios diversos. Um investidor de sucesso. Minha noiva se chama Julie Flintz, nós vamos nos casar em breve, mas essa é outra história. Porque os relatos que aqui escrevo, falam sobre o ano que mudou para sempre a minha vida; o ano em que eu perdi tudo o que mais prezava; o ano em que eu aprendi sobre eles, os que estão nas esquinas, os que vagam pelas ruas noturnas do mundo... Os que se escondem no escuro.

Demônios. A palavra saltou perante meus olhos, fazendo meu coração acelerar. Minhas mãos suavam sob o livro que continha as informações que eu pesquisara por tanto tempo. Depositei-o sobre a mesa de cabeceira que havia na sala do meu apartamento e me dirigi à cozinha. Tudo clareando em minha mente; tudo fazendo, enfim, sentido.

Há muito tempo eu sabia que as coisas que aconteciam ao meu redor não eram normais. Meus pais eram pessoas de classe social alta, donos de empresas e ações caríssimas, mas cerca de dois anos atrás haviam sido encontrados mortos. A polícia afirmou que meu pai havia matado minha mãe e em seguida cometido suicídio.

As vozes, que tanto me atormentavam quando eu era criança; as pessoas, que eu jurava estar vendo e no segundo seguinte sumiam; a morte dos meus pais; o repentino ataque praticado por Julie. Alguém definitivamente gostava de brincar comigo.

Retornei ao recinto trazendo nas mãos um copo com água tônica – o que sempre me ajudara a clarear as idéias. Se aquele livro – o qual eu nem ao menos se lembrava de onde havia conseguido – estivesse correto, aquelas criaturas realmente existiam, brincando com os humanos; se divertindo com nossa desgraça; rindo de nós, a quem eles julgam seres inferiores.

Naquela ocasião eu não sabia ao certo o que o destino me esperava; eu só queria vingança e estava disposto a pagar qualquer preço para obtê-la.

Dias depois, enquanto caminhava pelas desertas ruas de Fortrees, a cidade onde morava, eu pensava sobre as palavras que havia lido; sobre toda a pesquisa que já durava meses. Segundo ela, ao morrermos, nossas almas são enviadas para uma espécie de mundo alternativo, presente entre a vida e a morte. Nele, tudo existe em plena paz e harmonia... Plantas, animais... Enfim, tudo subsiste sem necessidade de predadorismo.

Eu não sabia ao certo se aquilo era verdade, mas duas coisas haviam me chamado a atenção no que eu tinha lido: segundo o surrado livro – que de tão velho dava impressão de que iria se dissolver ao menor toque possível – no tal lugar existe também uma ponte, a qual divide os dois mundos – o dos vivos e o dos mortos. O fato é que, pelo fluxo natural de vida, as almas devem sempre seguir em frente, sem olhar para trás, sem querer voltar, atravessando, assim, a dita ponte. Acontece que, sem querer ir em frente, sentindo saudades de quem ficou para trás, ou tendo algum remorso de situações que aconteceram enquanto vivia, algumas almas se recusam a atravessar a ponte, permanecendo presas neste mundo.

E são justamente essas tais almas – as que se recusaram a fazer a passagem – que viram as criaturas que conhecemos por demônios. Seres rancorosos, que perderam totalmente a humanidade ao voltarem daquele mundo de paz; seres capazes de tudo para apenas sorrirem, mesmo que isso signifique: sussurrar no ouvido de alguém, pondo sobre a pessoa sua total influência maligna; atormentarem-nos de todas as maneiras, tentando levar os vivos para o lado maligno; ou até mesmo possuir o corpo de alguém e fazê-lo cometer atos que normalmente um humano nem imaginaria ser capaz, o que – segundo o que eu acreditara – havia acontecido com Julie.

Eles não podem ser vistos por pessoas normais, a não ser que queiram ser vistos. Essa foi a outra coisa que me chamou a atenção: segundo pesquisas, somente 10% de nossa capacidade cerebral é aproveitada por nós, o que, certamente, limita infinitamente as habilidades humanas.

Ao longo da história, vários gênios surgiram; pessoas que, inexplicavelmente, conseguiam usar muito mais que apenas os 10% convencionais – mesmo que, muitas vezes, nem se dessem conta do que estavam fazendo. Entre elas, filósofos – com quem tudo começou –, matemáticos, físicos, cientistas diversos, monges, sábios... Ainda não se sabe como era possível um cérebro tão capaz, mas o fato é que, todos os que apresentavam habilidades únicas se distinguiam entre si, exceto pelos estranhos relatos que todos produziram, nos quais citavam criaturas distorcidas, negras, que pareciam estar por trás de todas as tragédias da terra.

Claro que muitos afirmaram que toda aquela inteligência havia os deixado loucos, mas a verdade é que aquelas pessoas as viam; para elas, as criaturas das sombras não estavam tão escondidas assim. Galileu, Sócrates, Einstein, Oparin, Pitágoras, Leonardo da Vinci, Newton, Freud, Kepler... Todos os grandes gênios da história passaram – algumas vezes em oculto – por isso.

Meus pensamentos se foram quando eu parei em frente ao prédio onde moro: o “The White Birth” – vai entender por que botaram o nome de “nascer branco”... Eu não sabia ao certo que horas os relógios marcavam, mas imaginava que, com certeza, não era bom ficar na rua em tempos como aquele.

Alguém deve estar de perguntando: como se proteger deles? Bem, sabe as lendas? Sal... Água benta... Os vizinhos me achariam louco se cada morador não tivesse um Hall só para ele.

Após deixar o elevador – sempre com muita cautela, vigiando todos os lados –, parei na frente da minha porta. Antes de girar a maçaneta, retirei do bolso um saquinho com o pó branco que, segundo os livros, salvaria a minha vida em um suposto ataque. Derramei o conteúdo na minha frente, formando um arco, que me fechava entre ele e a porta, e entrei – retirando a proteção que eu deixara ao sair de casa, mas protegido pela nova que eu pusera antes de entrar.

Havia cloreto de sódio por todos os lados: nas portas, nas janelas, nas frestas das paredes e piso... Tudo tinha que ser milimetricamente calculado, afinal, eu não queria que Julie se machucasse novamente. Vez ou outra, ela me perguntava o motivo de tudo aquilo, mas eu desconversava sempre – até porque seria estranho dizer: “— Amor... Os demônios estão entre nós”.

Felizmente ainda não havia me acontecido nenhum ataque, então as teorias que eu tinha do sal eram apenas informações contidas nos livros e fontes de pesquisa que, àquela altura, eu já colecionava. Segundo registros, água benta purificava as almas que não haviam atravessado a ponte, causando uma reação negativa em suas essências – ou o que sobrou delas – e espantando as criaturas.

Joguei os tênis em um canto da sala e me atirei no sofá, ainda pensando nas últimas descobertas. As grandes tragédias da humanidade... A inundação na China, a Segunda Guerra Mundial, a tragédia do Titanic, a bomba atômica sobre Hiroshima e Nagasaki, o terremoto na Cidade do México, o atentado ao World Trade Center, a Tsunami no Índico, os desastres naturais que assolam a terra... Tudo está ligado – apesar de anos bem diferentes – às ações deles.

Minhas pálpebras pesavam enquanto eu tentava lembrar mais coisas que havia lido...

Eu nem ao menos havia tido tempo para pensar um pouco mais quando acordei no dia seguinte, sem saber ao certo a que horas havia dormido.

Conforme o tempo passava, eu me aperfeiçoava mais em termos de conhecimentos acerca dos demônios – até já começava a distinguir quando eles agiam por trás dos panos da humanidade –; mentia para Julie – o que me machucava mais que qualquer coisa –; e desenvolvia estratégias de defesa, como o sal espalhado pela casa.

Cinco meses já haviam passado desde que eu começara a estudá-los, meu casamento, apesar de tudo, estava marcado e tudo o mais, porém eu ainda não tinha tido uma oportunidade... uma chance de confrontá-los cara a cara... pelo menos não até aquela noite.

A pressa me confundia, mas eu precisava chegar ao restaurante, onde Julie estava me esperando, em dez minutos, e eu havia sido burro o suficiente para esquecer meu celular – provavelmente sobre o sofá. Meus pés pareciam dançar, sem ritmo algum, na ruela por onde eu, sem nem ao menos perceber, passava. A luz que iluminava o local vinha de um poste, que produzia um feixe fraco, provocando mais sombra e penumbra e menos luz. Sons de vozes arrastadas eram ouvidas saindo dos becos, algumas vezes elas se transformavam em gargalhadas, nada fora do normal, a julgar o estado do local. O chão não era nem um pouco limpo, muito menos o odor era de longe agradável. As paredes eram pichadas com desenhos obscenos e, às vezes, sem o menor sentido para mim.

— Droga... — sussurrei, culpando-me pelo erro mais normal de quem anda desatento por uma rua escura: dobrar na esquina errada.

Tudo ia bem. Os gritos, sussurros – eu nem conseguia distinguir mais –, ou o que quer que fossem, era normal àquela hora da noite. Eu chegaria ao ponto de encontro com minha amada tranqüilo, pois já achara o caminho certo, se algo não tivesse se posto à minha frente.

Foi rápido. O susto quase me levou ao chão. Por incrível que pareça, não havia nada ali no segundo anterior ao que os meus olhos focaram o homem parado à minha frente. Os olhos a me encarar furiosamente; estranhamente; vermelhos...

Antes mesmo que pudesse tirar o punhal “sagrado” – pois segundo o livro, se fosse polido com uma mistura que envolvia sal, água benta e outros ingredientes, um punhal, faca, ou espada poderia ser fatal para eles – do bolso, recebi um soco no rosto que nem de longe refletia a força de um humano normal. Fui ao chão instantaneamente, chocando a cabeça contra a parede, o que fez meu pescoço dobrar em um ângulo esquisito. Antes da dor dilacerante, pude ver outras silhuetas... outras pessoas.

— É ele?

Meu Deus... Aquilo nem em um milhão de anos seria definido como uma voz que poderia sair de uma pessoa. Arrastada, alta, um tanto quanto fina... Resumindo toda a descrição: extremamente amedrontadora.

Segurei a bexiga, mas o medo saía por outros lados. Medo. Algo que, fazia tempo, eu não sentia. Não daquela maneira pelo menos.

— Patético...

A criatura tinha razão. Eu tentava levantar, mas todo o esforço era em vão. A dor era grande demais.

— Eu esperava mais...

— É ele? O de quem todos falam... O que se protege... O caçador...?

Caçador. Aquela palavra fez meus olhos pularem das órbitas. Eu lutava contra vários sentimentos àquele momento. Ansiedade, angústia, medo, dor... Nunca havia pensado em caçá-los. O.K, eu falei em vingança, mas na verdade nem pensara muito em como proceder, eu só queria sair dali vivo; poder ver Julie novamente. Nunca entendi muito bem porque nós só damos valor às pessoas quando estamos prestes a perdê-las ou quando nossa vida está por um fio. De uma forma ou de outra, quando sabemos que nunca mais vamos vê-las.

— Silêncio.

Eu não sabia se o demônio falava ou gritava, muito menos qual sua expressão naquele momento, pois nem tinha tido coragem de olhar em seus olhos.

— Você é patético, Steven Karter...

— Co-como...?

Ouvi um passo. Pressenti ele se aproximando de mim; se abaixando...

— Eu venho observado você há anos... O brinquedinho que eu escolhi para passar o tempo. Você parecia mais forte... Foi capaz até de superar a morte dos Karter, e olha que eu caprichei — ele ria.

Meu coração acelerou instantaneamente. Não era possível.

— Minhas suspeitas só aumentaram quando você sobreviveu à punhalada dada pela sua própria noiva... Sinceramente, você a ama tanto assim? Confesso que achei interessante. A julgar pelos gritos de desespero e pela atitude dela ao ver seu corpo ensanguentado, jamais imaginei que fosse perdoá-la. Então...

— Não... — sussurrei, imaginando as palavras que viriam a seguir, mas ele me ignorou totalmente.

— Como vai minha linda Julie Flintz?

— Não...

Senti sua mão apertar minha mandíbula, elevando meu rosto doído. Eu ainda não havia percebido que minha cabeça sangrava até sentir o sangue descendo quando ele me moveu.

— Enquanto eu a possuía... Era como se pudesse tocá-la, tê-la, vê-la completa e intimamente. Aqueles cabelos castanhos... Aqueles olhos... Aquelas curvas...

— NÃO!

Por que eu fui gritar? Quanto mais você luta com sentimentos na presença deles, mais eles lhe influenciam negativamente. Aquele grito foi como um soco atravessando meu estômago.

Eu tossia pateticamente, sendo solto e tendo o corpo livre para tombar novamente.

— Eu nunca havia brincado com um brinquedo assim, mas eu sei o que as crianças fazem quando aquilo que as diverte dá defeito.

Outras gargalhadas.

— Mas não se preocupe...

Eu deveria me acalmar?

— Eu vou lhe dar um presente.

Meu corpo tremeu.

— Um presente nem um pouco agradável...

Tive tempo de olhar para todos os rostos presentes. As faces não me interessavam, mas a cor dos olhos me chamou a atenção. Todos tinham olhos negros, como se só houvesse a pupila; como olhos de tubarão, exceto o que zombava de mim. Eu achei que fosse somente minha imaginação, mas seu bulbo do olho exibia mesmo uma cor escarlate, o mais vermelho possível.

— Não... — outra das criaturas sussurrou, mas era tarde demais.

Antes que pudesse ao menos respirar, senti algo estranho por todo o meu corpo, vi o homem que me segurava sumir em uma estranha névoa – densa e preta – e apaguei, antes de poder interpretar qualquer outro movimento.

— Mas que m... — uma voz pareceu gritar na minha mente. Uma voz que eu não conhecia. — Quem está aí?

Passos. A escuridão ainda prevalecia, mas meus ouvidos começavam a captar ondas sonoras vindas de algum lugar. Alguém corria desembestado ao meu encontro – deduzi isso devido ao aumento do volume da voz e dos passos.

— Que droga!

— O que foi, Gary? Achou alguma coisa?

Abri os olhos um pouco, ao perceber que ambos os homens estavam parados perto do meu corpo.

— Sim... Homem alto, faixa de uns vinte a vinte e cinco anos; cabelos arruivados... Morto? — o homem chamado Gary parecia anotar alguma coisa em sua mente.

— Devemos chamar a polícia?

— Não... — sussurrei involuntariamente. Odiava polícia.

Antes que eu constatasse se minha atitude tinha sido burrice ou não, Gary exclamou algo.

— Está vivo!

Não era como se ele tivesse acabado de ver sua mulher dar à luz, mas, sim, a expressão dele foi essa mesma.

— Sem polícia...

— Vamos, Josh, me ajude a levantá-lo.

— Precisamos tirá-lo daqui...

No momento em que os dois homens me tocaram, percebi, quase que instantaneamente, o meu estado: senti frio, dor, náusea, tontura... Gemi, até que tive vertigem e apaguei novamente, mergulhando na escuridão.

Jamais quis preocupar Julie, eu só queria voltar logo para casa, estar lá quando ela ligasse, gritando por que eu havia furado nosso jantar, me obrigando a mentir mais uma vez... Ao lembrar o nome dela, tive várias reações: pensei do porque da perseguição dos demônios, e o motivo pelo qual aquele de olhos vermelhos estaria vigiando-a; pensei nos meus pais; pensei em mim mesmo, e abri os olhos, levantando o corpo em um impulso.

Foi a pior besteira que eu podia ter feito.

— Opa, opa... — Gary, Josh, sei lá de quem era a voz que eu ouvi.

O pano úmido que estava sobre minha testa foi arremessado ao chão. As luzes do recinto no qual eu me encontrava me deixaram tonto novamente, obrigando meu corpo a voltar para o local – que eu constatei ser um sofá – onde eu estava antes.

A dor e o frio haviam passado, assim como a sensação de sangramento em minha cabeça. Eu estava estranhamente bem.

— Não pode se mexer tanto, senhor...

— Steven... Argh! Steven Karter... — respondi à pessoa que me tocara e ajudara a posicionar minha cabeça no travesseiro do sofá.

O gemido não foi de dor, foi de frustração, por constatar que meu corpo estava duro como pedra; os músculos nem obedeciam.

— O.K, senhor Steven “argh” Karter... — ouvi alguém rindo, irrompendo na sala onde eu me encontrava. — Pode começar dizendo como foi parar naquele beco.

Lentamente fui abrindo meus olhos novamente, acostumando-os com a luz, até distinguir as duas formas que haviam me resgatado.

— Fui roubado... — menti rápido, ao passo em que vi algo pairando à minha frente. Era uma xícara, a qual um homem ruivo – mais que eu –, com expressões engraçadas, que se misturavam com as sardas, no rosto, segurava.

— Chá... Gary quem fez... Não é como se fosse veneno, cara! — Ele riu.

Fiz um não com a cabeça.

— Na verdade... Eu não aconselharia beber mesmo... Gary sempre faz um chá dos infernos, senhor “argh”...

A piada se perdeu na menção da palavra “inferno”.

Gary encarou-o com um olhar fulminante. Seus olhos eram muito parecidos – podiam ser irmãos –, mas o cabelo do homem era negro e sua pele levemente mais clara.

— Tivemos sorte de herdar os olhos da mamãe — comentou Josh, ao perceber que eu encarava o irmão.

— Ãn...? Ah, — eu estava desnorteado.

— Qual é? — o ruivo riu. — Pais diferentes... Mesma mãe... Irmão idiot...

O soco que Gary desferiu contra o homem me fez rir; quebrar o gelo; esquecer dos problemas para variar.

— Onde estamos? — perguntei quando os ânimos se acalmaram.

— Nosso apartamento... Em um bairro do subúrbio de Fortrees: Largetown — Gary respondeu.

— Que horas são? — mesmo com medo, ainda decidi perguntar.

— Ih, cara! Uma da manhã...

Antes que Josh pudesse falar o que viria a seguir, me sobressaltei. Julie já podia ter ligado, já estaria brava comigo, ou, no pior dos casos, preocupada.

— Preciso ir para casa! — falei, ao perceber que meu corpo movia-se mais facilmente.

— Calma aí, Steven... Não sabemos se você está bem. Você pode acabar desmaiando ou algo do tipo... — falou Gary, com um inegável ar de preocupação.

— Tudo bem... Eu só preciso...

Grito. Dor. Angústia. Medo. Algo normal para o que havia acabado de acontecer, se aqueles sentimentos fossem meus. Alguém me segurou quando eu tombei, era Gary, que parecia indicar algo com a cabeça para o irmão.

— Socorro! Não! Não QUERO! NÃO! ALGUÉM ME AJUDE!

— Steven! Steven!

Frio. Os gritos passaram no momento em que algo molhado e extremamente gelado bateu em meu rosto. Josh segurava o copo que poucos segundos atrás continha água, exibindo-o e sorrindo.

O que estava acontecendo comigo?

— Tem certeza disso? — Gary me tirou do transe com a pergunta.

— Sim... — respondi, tropeçando na bagunça do apartamento, quase escorregando nas roupas espalhadas pelo chão.

— Josh, traga as chaves — o homem olhou por cima do ombro, em seguida voltou os olhos para mim. — Não podemos deixar que você vá para casa sozinho.

O.K. Meu apartamento não era tão longe de Largetown, por incrível que pareça, ficava a apenas alguns vinte quarteirões dali. Eu preferia andar, mas já era tarde demais.

Alguns minutos dentro do carro – nem tão novo assim, se comparado aos meus – foram usados para que eu acalmasse Josh, que não parava de repetir com uma voz sonhadora: “Ah!, o The White Brith...”.

Enquanto “consolava-o”, lutava para que nenhum dos dois percebesse que algo estava errado comigo. Os gritos haviam voltado. Era como se vultos passassem velozes demais perante meus olhos. Foi quando algo realmente fora do comum aconteceu.

Josh parou de sonhar quando sua atenção foi tirada do fato de eu morar em um condomínio da zona nobre de Fortrees e seu pescoço virou-se para o vidro do carro. O homem começou a rir.

— Olha isso Gary, parece que a heroína pagou mais um. Vai vendo como nossa zona está ficando, Steven...

Eu não ouvi o comentário dele, muito menos os risos. Josh não via? Não conseguiam, de fato, vê-los? Eram muitos. Faziam o garoto gritar. Gritos que eu já conhecia.

— Socorro! Não! Não QUERO! NÃO! ALGUÉM ME AJUDE!

Uma das criaturas espectrais me encarou, fazendo meu coração acelerar, mas Gary dobrou em uma rua que eu conhecia por ser próxima ao meu prédio e eu me acalmei. Talvez fosse apenas minha imaginação, talvez não.

— Está entregue... — anunciou o homem, parando o carro para eu descer.

Agradeci rapidamente e entrei, passando pela guarita do porteiro, ainda a tempo de ouvir o grito de Josh: “E cuidado com os becos...”.

Demorou tempo demais para eu perceber a qual tipo de “presente” o demônio se referira e o que tinha acontecido naquela noite: 1) Eu havia sido possuído por ele; e 2) eles não eram mais tão ocultos assim para mim, pois eu até conseguia ouvir as pessoas que eram atacadas, e era horrível.

Eu tremia. Não sabia se meu cérebro estava normal, ou se algo havia acontecido com ele. Resumindo, estava preocupado somente comigo, quase esquecendo do motivo que havia me feito ir para casa o mais rápido possível: Julie.

Me joguei, literalmente, na direção do meu celular, que estava, como eu imaginara, sobre o sofá. Nenhuma mensagem. Nenhuma ligação. Nada. Nenhum recado na secretária eletrônica. Nenhuma explosão de nervos. Aquilo não estava certo.

Disquei o número dela. Caixa postal. Fora de área. Recebi todos esses recados eletrônicos de quando sua ligação não pode ser completada, o que só aumentou mais ainda meu nervosismo. Não sei vocês, mas eu odeio quando isso acontece – mesmo que pareça clichê –: de repente, um jarro de flores, as quais Julie havia me dado como resposta ao meu pedido de casamento, caiu no chão da cozinha e espatifou-se. Naquele momento eu poderia jurar que ouvi um grito de socorro, como acontecera na casa de Gary, só que com menos intensidade; o grito dela...

Passei a noite em claro discando o número de minha amada, mas a mesma voz sempre repetia as mesmas coisas, dizendo que a ligação não podia ser completada; mandando-me deixar recados – os quais eu já havia mandado milhares de vezes – na caixa postal. No momento em que o sol nasceu e seus raios entraram no meu recinto no décimo segundo andar, não seria nada anormal se eu chamasse a gravação da operadora de telefonia para um café, tamanha era nossa intimidade àquela altura.

Uma semana se passou. Não recebi nenhuma notícia de Julie. A certa altura, comecei minha investigação particular – devo dizer que aperfeiçoei minhas habilidades? Ta bom, só um pouco, mas foi o bastante para matar (ou seja lá o que acontece com eles) alguns demônios – e cheguei a um lugar. O lugar onde eu certamente encontraria minha noiva; o local aonde eu ainda não viera procurar; o prédio que se erguia à minha frente naquele momento; a Karter’s Company; minha empresa.

A noite estava fria. Nem mesmo lembrava qual a última vez que a havia visto, mas tinha certeza que ela estava lá. Por dois motivos: a) desde que havia aprendido a controlar minhas habilidades, vinha ouvindo os gritos de Julie e vislumbrado a paisagem única, que só pode ser obtida da minha janela; e b) o homem parado à frente do prédio nem de longe parecia meu porteiro – como se eu não pudesse distingui-los...

Joguei as mãos para dentro do sobretudo que usava e atravessei a rua. Não sabia muito bem o que acontecia com o receptáculo dos demônios, mas sempre tentava não matá-lo. Para a minha sorte, a criatura não me percebeu. Esgueirei-me por entre alguns arbustos que haviam na lateral da entrada e a vi.

— Eu sabia que um dia isso me serviria... — sussurrei, puxando um pedaço de parede falsa, deixando à mostra minha velha entrada secreta.

Graças a ela, meu pai nunca soube como eu descobria as coisas que aconteciam dentro da companhia.

— Droga... — ou a passagem havia diminuído, ou eu havia crescido.

A estrutura era simples – e eu a conhecia de ponta a ponta: os tubos de ventilação do primeiro andar circulavam o perímetro do mesmo e desembocavam no elevador, onde havia entradas para todos os vinte e dois andares restantes do prédio.

Simples, eu só tinha que esperar o elevador subir e saltar no lugar certo. O único problema é que não havia ninguém no prédio aquela noite.

— Socorro! Joe! Socorro!

Risos seguiram-se das palavras de minha amada, pertubando-me. Se eu pudesse ver minha expressão naquele momento, diria que nem mesmo eu me reconheceria.

— Ótimo, maldito, espere só mais um pouco... — sussurrei, pegando um par de luvas anti-deslizantes de dentro da mochila que levava às costas e pondo-as, uma em cada mão.

Toda minha experiência em fugas dentro da empresa não me serviria de nada, pois nunca havia tentado algo parecido com aquilo, mas era por Julie...

Pouco a pouco, escalei as cordas de aço que se erguiam acima do elevador – que para minha sorte estava no térreo. Alguns sustos – que incluíam leves deslizamentos, vertigem, falta de ar e força – depois, avistei a abertura do vigésimo terceiro andar. Aquela era a parte mais complicada.

Com um pouco de sorte, consegui começar a balançar o corpo; meu plano era simples: me posicionar acima da entrada e, com ajuda de Deus, conseguir acertar a abertura. Sucesso. O. K. “quase” sucesso. Fui salvo por três dedos de minha mão direita, após ter calculado mal a distância e dado de cara com a parede.

Com grande dificuldade – o medo misturado com dor e tontura, já imaginou? – consegui entrar, tremendo.

— Obrigado, Deus... — sussurrei involuntariamente.

Agora só me restavam duas coisas: torcer para que nenhuma criatura tivesse me ouvido e salvar minha noiva.

Guardei as luvas na mochila e prossegui. Minha respiração era ofegante, meu suor escorria pelo cabelo avermelhado, mas eu continuava. Conforme me aproximava da entrada da sala os pensamentos e gritos de Julie ficavam mais intensos. Aquilo nunca havia acontecido antes.

Se não tivesse ido preparado e se aquela não fosse minha própria impressa, eu teria me perdido várias vezes. A certa altura, já havia pego a lanterna e a planta dos ductos de ar de toda a construção, para saber onde dobrar e qual caminho seguir – não seria nada interessante pegar o caminho errado e ter que voltar de “ré”. Até que eu cheguei.

Encontrei a abertura da minha sala e observei a movimentação lá dentro. Era ele mesmo. O demônio de olhos vermelhos. Aquele que tornara minha vida um verdadeiro inferno, e que agora rodeava minha amada Julie, que permanecia deitada no chão. As mãos atadas às costas.

Eu julgava que seria fácil, se o desgraçado não tivesse trazido consigo mais dez pessoas – as quais meus olhos podiam ver as essências de suas almas. Receptáculos. Pessoas corrompidas, que talvez merecessem morrer. Com exceção de três, todos pareciam espécies de ex-presidiários – obviamente as almas mais fáceis de serem manipuladas.

— Steven... — Julie sussurrava ao chão.

— Ele não virá, sua tola — o “olhos vermelhos” ria, chutando-a, machucando a mim.

Tremi. Já não me importava de ser descoberto. Nem ao menos tinha um plano, mas sabia que tinha que agir naquele momento. Foi quando eu notei uma movimentação estranha. Um dos demônios sussurrou algo para seu chefe, que sorriu interessadamente, evitando olhar para outro lugar que não fosse o rosto dela.

Como eu a tiraria de lá? A maquinação da minha façanha foi removida da minha mente quando ele abaixou-se, sussurrou no ouvido de Julie – “ele veio” – e tudo aconteceu.

Antes que eu pudesse recuar, algo acertou o ducto de ar, fazendo a estrutura tremer. Ao ser abalada, a abertura não mais aguentou meu próprio peso e me cuspiu. Cano traidor... Depois de todos esses anos...

— “Voilà”! — o demônio exclamou.

Infelizmente eu não estava pronto para agir, então caí de bruços no chão, outra infelicidade: meu corpo ainda doía por causa do impacto contra a parede do elevador.

— Você demorou...

— O-oquê?

Minha surpresa o fez rir.

— Que entrada mais patética foi essa? Você não achou que eu iria deixar nosso convidado mais especial do lado de fora, não é? Imagina só minha surpresa quando meu guarda disse que você talvez tentaria uma passagem secreta...

— Quer dizer que... — olhei ao redor. Todos me cercavam. Eu estava ao lado de Julie, que permanecia calada, talvez por medo.

— Não me interrompa — ele riu. — É claro que eu sabia. O tempo todo... Da passagem secreta ao elevador; do elevador aos ductos de ar... Mas não se preocupe, isso só me fez ver que você realmente vale à pena. Sabe o quão difícil foi possuir você? Tinha algo lá dentro que queria me expulsar... Mas ainda tive tempo de lhe dar o poder, não sem sair machucado, claro. — ele parou, exibindo uma enorme cicatriz em seu peito, algo que eu não conseguia explicar: como ele havia me possuído e seu receptáculo havia sofrido um corte tão horrível? Não parecia uma cicatriz como outra qualquer.

— Steven... Me desculpe... — era Julie.

A voz dela me fez lembrar o motivo que me trouxera ali.

— Eu vou tirar-nos daqui, querida...

— Eu não pude f... — ela tentou falar, mas eu a interrompi.

— Não precisa dizer nada. Isso vai acabar aqui.

Levantei-me, encarando a trupe que permanecia parada ao nosso redor. Sacando meu punhal e encarando cada um dos onze demônios que eu devia purificar – ou exterminar.

— Hora do show — disse o “olhos vermelhos” sorrindo.

Antes que qualquer um dos demônios pudessem agir, despejei toda uma garrafa de água benta na cara do demônio chefe, na esperança de causar-lhe dor, mas foi em vão.

— Maldito desgraçado de m...! — ele exclamou, indignado. — Você me molhou, humano tolo.

— O. K. Plano B... — sussurrei, já assustado o suficiente, encarando minha total impotência.

— Não pode me purificar, humano ingênuo! — Eles todos avançaram para cima de mim.

— Que Deus me ajude novamente! — Se aquilo no elevador havia sido obra de uma força Divina, eu a queria mais uma vez.

De repente algo aconteceu. Uma luz forte, brilhante, branca... Todos gritaram. Meu medo se foi, e Julie se pôs de pé ao meu lado, como se jamais tivesse sido derrubada ou ferida. Eu a encarei sem saber o que acontecia.

— Não! NÃO! — A voz rouca do demônio soou, com medo.

— O qu...?

— Steven Karter... — alguém sussurrou meu nome. Uma voz macia, leve, alta, mas reconfortante. Uma voz mais angelical que a de Julie.

Angelical. A locução adjetiva que define tudo o que eu vi naquele momento. Eu sabia que os demônios ainda gritavam, mesmo que eu não pudesse ouvi-los. Olhei para a luz – que vinha do enorme vidro existente na sala – e as vi. Corrigindo: os vi. Hm... O. K. eu já havia ouvido falar da descrição dos anjos, que eles não tinham sexo e tudo o mais. Mas daí a presenciar tudo aquilo já era demais.

Eram dois. Em um momento pareciam mulheres, no piscar de olhos seguinte, transformavam-se em homens. Mas isso nem de longe era o mais impressionante. Me refiro às asas: seis. Seis enormes asas cobertas de penas, em uma tonalidade branca que eu nunca havia visto antes, que lhes saiam das costas. Cada um deles trazia uma espada na mão, como que de fogo. As roupas eram cintilantes, quase de ouro.

Se ambos eram mesmo anjos eu não sabia, mas uma coisa era certa: os demônios estavam com medo, deduzi isso por que naquele momento voltei a ouvir seus gritos.

Agarrei Julie pela mão instantaneamente e saí do caminho dos anjos, esgueirando-me para trás da minha mesa e observando a cena.

— Steven... Tem algo que eu tenho que falar... — Julie me encarou, puxando meu rosto para perto do dela.

Graças a Deus – literalmente – ela estava a salvo; ao meu lado novamente...

— É algo que eu tenho feito há algum tempo... — ela hesitava, eu não entendi o motivo. — Querido... Eu também sou uma c...

Seja lá o que Julie iria me contar àquele momento, foi interrompido por um grito de dor e angústia ensurdecedor, seguido pelo impacto de um corpo, que bateu na parede ao nosso lado, assustando-nos. Se o grito angustiante de uma pessoa é terrível, pensa só como seria o grito angustiante de um demônio, agora imagina esse grito multiplicado por dez. Imaginou? Deve sentir pena dos meus ouvidos então.

Minha noiva desistira de falar. Agora ela encarava toda a cena. Tão fascinada quanto eu. De repente comecei a ouvir tremores no céu; trovões; raios. Uma tempestade começara do lado de fora do prédio.

Um a um, os demônios foram sendo expulsos dos corpos. Cortados pelas espadas – que, segundos depois, deixavam apenas marcas ou pequenas cicatrizes nos receptáculos. Por fim, somente um ficou de pé.

Meu coração acelerou quando eu vi qual, dentre todos os onze demônios presentes, havia resistido.

Era ele.

— Hahaha! Anjos tolos... Não podem me matar. Sabe o que papai faz com quem mata seus irmãozinhos, não é? — ele riu.

Papai? Essa foi a parte que eu não entendi.

— Você é que é o tolo, Tummiel... Se rebelar? Que nesciedade. — disse um dos anjos. — Por toda a eternidade; até a consumação dos séculos, nós dois o caçaremos. Agora, vá embora e deixe esses humanos em paz, antes que seja minha hora de cometer um ato tolo.

— Eu vou... Mas, espero que esteja com saudades de seu irmão, porque ela vai acabar logo...

— Vá! — O outro anjo ameaçou-o com a espada.

— Diga ao papai que eu mandei lembranças.

E sumiu. Com receptáculo e tudo. Os olhos mais vivos que antes.

— Desculpem o transtorno... — os anjos aproximavam-se de nós, guardando suas espadas.

— Quem são vocês?

Que pergunta mais besta que essa poderia sair da minha boca àquele momento?

— Nós somos serafins, soldados de Deus... Você pediu ajuda a ele, não? — o anjo sorriu. — Eu sou Sitahel e este é Lelahel. Eu atuo perante revoltas e rebeliões e ele em conciliações, amor e cura...

— Ear... Obrigado, eu acho... — sussurrei, lembrando como Julie levantara como se nada tivesse acontecido com ela.

— Por que vocês ajudariam a nós justo nesse momento? — ela perguntou.

Apesar de achar a pergunta um tanto quanto grosseira, eu também tinha essa dúvida.

— O exército divino precisa de vocês... — anunciou Lelahel.

— De nós? Mas... Nós nã... — eu tentava explicar; tentava fazer com que os anjos não estragassem tudo.

— Tudo bem, querido... — minha amada falou. — Eu também sou uma caçadora...

Demônios e anjos me surpreenderam, mas nada o havia feito tão bem quanto aquelas palavras. Não era possível...

— Eu comecei a investigar os motivos para suas atitudes estranhas há muito tempo e descobri... — ela explicou, me confortando. — Está tudo bem...

Não estava nada bem, mas eu não queria discutir com ela; não na frente das duas criaturas ali presentes.

— Tem razão, nós podíamos ter aparecido antes, mas só recebemos a ordem de Deus para atuar esta noite — Lelahel retomou. — Vocês estariam mortos se não fosse por nós dois. Precisamos juntar caçadores, pois o exército das trevas tem agora essas almas corrompidas sob seu comando.

Tudo o que o anjo dizia, era pior que eu pensava, mas algo me fazia querer lutar: o demônio Tummiel.

— O que aconteceu com o demônio de olhos vermelhos? Porque o receptáculo dele evaporou-se em fumaça negra? — perguntei.

— Tummiel não precisa de um receptáculo... — Sitahel explicou. — Aquele é seu próprio corpo...

Tudo fazia sentido. Por esse motivo eu havia ferido seu peito. Por isso os olhos eram diferentes dos outros. Por isso ele nem ligara para a água benta, mas, se não uma alma corrompida, o que ele era?

— Um dos caídos...

— Hm? — eu não estava mais prestando atenção.

— Tummiel é um dos caídos. Se rebelou juntamente com Lúcifer, faz parte do terço do exército do Senhor que se corrompeu, por isso nós dois viemos — Lelahel apontou para si e para Sitael. — Para cada caído existem dois anjos puros do exército. Nós não podemos agir contra as almas corrompidas, pois os demônios reais aproveitariam as brechas para atacar, por isso precisamos dos humanos.

— O irmão do qual ele falou... — Julia sussurrou assustada.

— Sim, Lúcifer... O “vindo da luz”. Ele não está preso. Ele age, porém precisa da autorização de Deus para tal, mas isso não implica dizer que seu exército precise também, por isso os anjos estão no céu... Vigiando-os.

— Então o que eles querem é...

— Sobrepujar a Deus. Fazer com que o diabo se liberte da sua jurisdição, para poder dominar o mundo antes que as profecias apocalípticas se cumpram e ele seja preso por mil anos.

— Temos que pará-los... — eu falei, olhando para o vidro da minha sala.

A tempestade havia passado. Julie se posicionou ao meu lado e observou a paisagem.

— Nós só precisamos de um tempo para...

— Nós sabemos... O Senhor nos informou. Não se preocupem, vocês têm tempo para isso...

A luz apagou, tão rapidamente quando havia aparecido. Ao virar-me para onde vinha a voz de Lelahel, vi que ambos os anjos haviam sumido.

— Casar... — terminei a frase sem necessidade, sentindo os braços de Julie abraçando-me o pescoço, virando-me para ela, e pensando nas coisas que o futuro preparava para nós dois.

LF Oliveira
Enviado por LF Oliveira em 16/07/2011
Código do texto: T3099792
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