Atormentados

Quando Amélia nasceu em 1924, Jussara e Nelson nem imaginavam, o quanto suas vidas seriam alteradas por causa dela. Após ter cruzado o país de ponta a ponta, sofrendo em uma miserável vida errante, se cansaram e decidiram que não mais fugiriam. Já estavam a mais de três meses vivendo em uma cidadezinha que fazia divisa com a Argentina, na verdade eles nem sabiam a que país pertencia o pedaço de terra que habitavam; um bangalô no meio do nada.

Jussara nem podia acreditar que aquele estranho bebê branco como a neve e de intrigantes olhos azuis em formato de amêndoas, pudesse ter se transformado naquele pequeno ser maligno. Quantas pessoas não destruira infligindo o castigo de viverem mergulhados no abismo da loucura?Já perdera a conta. Agora ela mesma vivia sob o fantasma de mergulhar também nesse abismo, sua sanidade andava por um fio, e sabia que nem precisava que Amélia usasse seus poderes em si, bastava passar mais alguns meses nessa vida infeliz e solitária.

Nelson também não era o mesmo, tinha crises constantes de fúria, choro, ou então se entregava a Bíblia rezando fervorosamente por um milagre. Sempre procurava esconder seus momentos de fraqueza da esposa porque achava vergonhoso ser mais fraco que ela. Pouco ficava em casa e quando aparecia, ficava silencioso e taciturno, mal podia encarar a esposa e a filha.

Jussara saiu do bangalô e até se surpreendeu com o cheiro de terra molhada, lá dentro tudo que sentia era cheiro de mofo. Mas não podia ficar a contemplar o dia nublado, precisava encontrar Amélia, só não sabia como, no meio de tanta neblina.

Começou a andar pelo meio da floresta de araraucarias gritando o nome da filha na esperança de ser atendida. Já estava cansada, perdida e toda molhada por causa do ar úmido quando a encontrou na beira do lago olhando o próprio reflexo na água. Às vezes chegava a temer aquela criança macabra, apesar do arrepio que sentiu ao vê-la tão enigmática, decidiu chamá-la.

- Amélia! Vamos pra casa filha? – A menina não parecia ouvi-la, continuou na mesma posição. – Estou tremendo de frio, vamos Amélia?Você não está com fome? Preparei seu jantar. – Seu apelo não parecia surtir efeito, a menina estava hipnotizada com a própria imagem. – Vamos Amélia! – Impaciente com a relutância da menina, se aproximou com os pés afundando na lama e segurou-a pela cintura. – Chega, é hora de voltarmos. Vamos!

- Me larga! Me larga!

Amélia começou a se debater como um leitão quando capturado.

- Não filha, é tarde e você vai pra casa por bem ou por mal.

Jussara a segurou mais forte, para que não escorregasse, mas logo largou ao receber uma mordida na mão que a fez sangrar.

- Por que você fez isso?

- Eu mandei me largar.

A menina estava furiosa, seus olhos chispavam de raiva. Ao se ver livre correu para o lago, parou para desafiar a mãe e começou a andar de costas em direção da água, Jussara correu pra impedir que mergulhasse, mas foi tarde, ela já afundara.

Jussara entrou no lago e afundou na água gelada incapaz de raciocinar direito, precisava encontrar Amélia. Não teve tempo de procurá-la na água escura, só sentiu duas mãos suaves agarrarem seu calcanhar e a derrubarem de costas. Antes que pudesse se levantar, as mesmas mãos pressionaram sua cabeça para o fundo, por mais que se debatesse e tentasse subir a tona para respirar, não conseguia. Quando estava desistindo, duas mãos fortes a puxaram para cima e a içaram do lago para a grama úmida, seu corpo todo tremia e sua cabeça dava voltas. Quando conseguiu se controlar e entender o que estava acontecendo, viu Nelson olhando-a apreensivo.

- Você está bem? Está roxa como um defunto.

- Cadê Amélia?

Ele ficou furioso.

- Essa maldita tentou te matar e você ainda se preocupa com ela?

Jussara viu ódio em seu olhar e temeu que ele a tivesse deixado morrer. Se sentou atônita procurando-a por todo lado com o coração querendo saltar pela boca. Mas ele não fizera nada, não tivera tempo, precisava salvar a esposa. Amélia estava encolhida na raiz de uma arvore a esquerda deles tremendo. Se levantou e correu para abraçar a filha aliviada, mas a menina desfaleceu em seus braços. Eles a levaram para casa.

Mais tarde naquele mesmo dia, Nelson e ela tiveram uma conversa definitiva.

Depois que colocou a filha na cama para dormir, Jussara sentou na poltrona puída perto da lareira pra se aquecer, não se sentia bem. Nelson aproveitou a oportunidade e se sentou ao lado dela.

- Eu queria conversar com você Sara.

Ela olhou para o homem maltratado ao seu lado apreensiva. Ele estava parecendo um homem de quarenta anos, quando na verdade não alcançara os trintas. Sua decadência parecia ainda pior diante da tênue luz das chamas da lareira.

- Eu tenho me perguntado, por que ainda continuamos com isso?Por que não acabamos com esse sofrimento de uma vez? Seria tão fácil abandoná-la em qualquer lugar, deixar que o destino se encarregasse dela! – Ele estava falando calmo, como se estivesse apenas discutindo algo corriqueiro e sem importância.

- Ela é nossa filha, como você pode querer uma coisa dessas?

- Ela não é nossa filha, é o demônio.

- Não fale assim.

- Como não? Ela tentou te matar a pouco. Que espécie de filho tenta matar a própria mãe, me diz?

- Ela está revoltada conosco por causa do que lhe fizemos. – Ao relembrar começou a chorar, sentia muito remorso por ter tentado livrar a filha dessa maldição acreditando que só estavam fazendo o bem. – Nunca deveríamos ter permitido que aquela gente a judiasse como judiaram.

- Aquilo era pro bem dela.

- Que bem? Ela está melhor por acaso?Olha o inferno que vivemos desde então. Cruzamos o país como loucos só pra que não matassem nossa filha em nome de Deus. Não era isso que eles diziam? Ela só tinha três anos naquela época.

- Mas já era maligna. O que fez com seus pais, não se faz com ninguém.

- Ela não sabia o que estava fazendo.

- Ela levou seus pais a loucura. Se suicidaram achando que eram santos mártires.

- Mas era na inocência, achava que era brincadeira. Dizia que os avós eram engraçados.

- E todos aqueles beatos, pastores e padres? Foi na inocência Também?

- Você não se lembra dos horrores que impuseram a ela? Só estava se defendendo daqueles torturadores. Eles destruíram a vida dela, hoje só sente ódio da gente e nada mais. Por isso ela nos culpa. Permitimos que a machucassem...

- De onde você tirou essas idéias? Ela sequer se lembra.

- Ela não esqueceu, guarda tudo em sua cabeça, tintim por tintim.

- Ela te disse isso?

- Não, mas todo dia me mostra tudo que se passa em sua cabeça mesmo que eu não queira ver, me tortura com suas lembranças e não esconde o quanto nos odeia.

- Esse é mais um motivo pra querermos acabar com isso. Quero minha liberdade de volta, quero voltar a me barbear, ver o sol outra vez e não essa neblina infernal que nunca se dissipa. Quero minha vida de volta.

Parecia insano, febril. Sara chegou a temê-lo.

- Por que não vai então? Eu não preciso de você. Amélia não precisa de você. Vai! Volta a viver. Ficaremos bem sozinhas.

Saiu da sala arrastando a saia no assoalho aniquilada. Nem esperou para ouvir o que tivesse para dizer.

No dia seguinte, acordou e encontrou o armário vazio. Nelson havia ido embora e ela sabia que dessa vez era pra sempre.

Já fazia quinze dias que Nelson se fora e as coisas não estavam boas para ela. Amélia estava tornando tudo ainda mais difícil. Jussara foi até o quarto acordá-la, mas a menina aproveitou a oportunidade para torturá-la. Estava remoendo suas magoas e só se sentiria melhor se sua mãe sofresse um pouco de suas dores também.

Era todo dia a mesma coisa: o ódio feroz, a dor, o medo, a hostilidade da multidão enfurecida, as palavras sem sentido, o desamparo de não ter os pais por perto quando queria ser protegida. Todos o horrores que viveram no passado, Jussara revivia-os dia após dia graças a ela.

Amélia sentia um prazer indescritível ao ver sua mãe sofrendo a dor que era sua. As suas dolorosas lembranças: uma multidão de pessoas gritando, pediam a Deus que livrasse o mundo daquele demônio, ela era o demônio, seu pai dizia isso. Agora ela se via amarrada em uma cruz, com varias pessoas em volta, todas de velas na mão rezando, ela chorava desesperada, se contorcia, queria a mãe, mas o pai impedia que Sara a socorresse, dizia que era pro seu bem.

- Para com isso? Eu não agüento mais. – Sara soluçava encolhida em um canto do quarto, tanta dor e sofrimento só lhe faziam mal. Era esse sofrimento todo o dia desde que Nelson se fora. Amélia estava cada dia mais revoltada, mas não a culpava, era só mais uma vitima de si mesma. Não tinha culpa de criar ilusões na cabeça dos outros, não tinha culpa de torturar as pessoas com sentimentos tão daninhos.

Nelson entrou em casa, depositou a bagagem na mesa e respirou fundo.

Não entendia por quer tinha voltado. Por que simplesmente não partia pra bem longe e esquecia isso tudo? Era assim tão difícil partir? Olhou em volta. Onde Sara estaria? Não precisou procurar muito, ouviu soluços vindos do quarto de Amélia. Foi até lá e encontrou a esposa deitada no chão encolhida como se quisesse se proteger de algo, aos prantos. Sentiu muita pena ao vê-la ainda mais magra e frágil, sofrendo na mão daquele pequeno demônio.

- Pára com isso Amélia! Para com isso maldita! – A sacolejou com muita raiva. – Se você não parar eu vou lhe espancar... – Falou olhando-a no fundo dos olhos.

Amélia o encarou impassível. A palavra a pouco dita por ele começou a dançar em sua cabeça como um canção macabra: Malditaaa...Malditaaa...Malditaaa...

- Pára-com-isso. – Levantou a mão para esbofeteá-la quando Sara gritou.

- Não faça isso Nelson. Por favor?

Ela estava consciente agora, mas continuava encolhida no mesmo lugar.

- Vem. Vamos sair daqui.

Pegou-a no braço e levou-a consigo, mas antes trancou a filha a chave em seu quarto.

Mais tarde Jussara o perguntou porque voltara.

- Eu não podia te deixar. Não tive coragem.

- Eu realmente acreditei que nunca mais lhe veria.

- Eu também.

Eram mais ou menos uma hora da madrugada, ele se levantou com cautela para não acordar a esposa e parou para observá-la por um instante. Respirou profundamente e depois suspirou devagar. Precisava estar bem calmo para fazer o que estava planejando.

- Não se preocupe Sara. Vamos terminar logo com isso.

Vestiu o casaco para se proteger do frio lá fora e foi ao quarto de Amélia. Ela dormia candidamente, mas isso não o comoveria, não dessa vez.

Enrolou-a nos cobertores como quando era bebê e a pegou no colo. Era até agradável tê-la nos braços novamente, parecia que tudo não passava de um pesadelo e eles eram apenas uma família comum.

Saiu do quarto com Amélia adormecida em seu peito respirando tranqüilamente e alcançou a porta da casa. O vento gélido o fez lembrar que poderia deixá-la resfriada, mas isso já não importava.

Ele a olhou no rosto, a única parte à mostra no ninho aconchegante que fizera. Ela dormia segura e confortável, como todo filho deveria se sentir nos braços dos pais.

Lagrimas rolaram no rosto dele, mas isso não o impediu de seguir em frente. Entrou na floresta de neblina densa e sumiu na escuridão da noite.

Uma semana depois, quando a neblina finalmente se dissipou e a estrada voltou a ser usada, viajantes encontraram o corpo de uma criancinha loira que morrera afogada, boiando nas águas do lago, e o mais intrigante foi que ninguém apareceu para reclamar por ela.

Quanto aos moradores do bangalô próximo, ninguém nunca mais teve noticias.

Yane Faria
Enviado por Yane Faria em 16/07/2011
Código do texto: T3098991
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