Melancolia em Chamas
Os impetuosos ventos do sul embalavam as árvores, distraindo as suas copas; segredavam aos que próximo se encontravam angustiantes sussurros daquela melancolia em chamas.
Pela manhã, não se atentava nenhum prenúncio, nenhum agouro, como diziam. O homem saíra cedo para trabalhar e, como sempre acontecia, a mulher se dispôs à peleja doméstica. O garoto, único filho, brincava com o gato, puxava-lhe o rabo e, por vezes, buscou-lhe cobrir a face com a almofada do sofá.
O menino correu pelo quintal, pisou as flores à esquerda da casa e, ainda, despegou algumas penas do papagaio.
Talvez ainda não fossem dez horas, a casa estava arrumada, mas a comida ainda não estava pronta. A mulher percebeu a ausência do menino.
-Meu Deus, onde estará o Gustavo?Que menino trabalhoso! Só me faz atrasar.
Suavemente, desprendeu os cabelos e tomou um banho. O menino não aparecera.
O tempo se assemelhava a uma ciranda infantil, em círculos, sem avançar.
Sentada na cama, despreocupadamente, penteou os cabelos. Na televisão, umas bobagens que não lhe seduziam. Foi ao quarto do garoto e encontrou as últimas revistas que o pai lhe comprara. Todas cortadas. Figuras sem nexo, divididas ao meio.
–Gustavo pensa que o pai ganha milhões. Voltou a consumir o tempo com as futilidades televisivas.
Agora estavam ali, a angústia passeava pela casa. Os intensos ventos revelavam as recentes ruínas. Havia muita gente por baixo da árvore. Conversavam sobre o sucedido. Eram muitas opiniões.
Ainda de manhã, o pai pressentiu o desespero extremo. Viera almoçar e não encontrara o pequeno.
-Há algum tempo senti-lhe a falta, mas ele não está em lugar nenhum.
O marido desligou a televisão (o olhar de fúria na mulher) e jogou o controle no chão.
-Ele volta daqui a pouco. Já é a hora do almoço, mesmo. Nas casas, ele não vai ficar.
Habitavam uma pequena chácara, arborizada o suficiente para conservar o clima afável. A localização não era boa, distante da cidade.
O marido a olhou mais uma vez.
-Eu não entendo. Juro que não entendo. Sua maior reclamação sempre foi não termos vizinhos. Qual casa o nosso filho pode estar?
Fim de tarde, sob a árvore, um dos tios a acusar a mãe do garoto. Não se permite tanta distração. O pai se encontrava desolado. Por que não vão embora, pensou? Não queria os irmãos, o cunhado, o sogro, nem os amigos a lhe atazanarem os ouvidos.
A mulher não saía do quarto. Chorava. As mãos lhe serviam de máscara.
O relógio batia 12 horas quando o marido deixou a casa e desceu para os lados da várzea. O sol a pino fazia lhe escorrer o suor na face. Passou por algumas roças de feijão, plantadas com o cunhado no último feriado. Estavam florindo. Em largos passos, caminhava firmemente. A mulher buscava alcançá-lo. Bem atrás.
Os ventos do fim de tarde se tornaram insistentes. As nuvens esculpiram um negrume no céu. Aquele princípio de noite predizia uma chuva. Sentado num tronco de árvore, o pai elevou os olhos aos céus. Lembrou-se do filho. Não estava ali. Dormia. Tranqüilamente dentro de casa, dormia. Incessantemente, dormia.
No início daquela tarde, a ocorrência. Ao longe, no rio, avistou o estampado decorativo junto à frondosa árvore que a chuva derrubara. A intensa chuva da noite anterior. O rio prosperara, de forma assustadora, naquele inverno.
Uma aquarela de três cores: amarelo, verde e vermelho. Era a blusa do filho. A blusa que lhe comprara, ainda na copa. Estava ali o seu filho, abraçado pela árvore. A correnteza do rio flutuava por cima do rosto angelical. E a tinta vermelha coloria enormes desenhos na blusa e permitia às águas próximas ganharem uma tonalidade escarlate. A mesma tinta vermelha que lhe corria nas veias.
Agora, estavam ali. Na sala, dentro do cofre de madeira, a sua jóia preciosa. No quarto, a mulher. As mãos lhe serviam de máscara. A família espalhada na casa e no quintal. Sentado no tronco da árvore, ele, sozinho, meditava. Ele padecia.
Os ventos insistentes trouxeram, enfim, a chuva. Primeiro uma chuva fininha. Em seguida, grossos pingos caíram sobre os que estavam no quintal. Rapidamente, o ambiente se esvaziou. Somente o pai ali permaneceu. Suas lágrimas e os pingos da chuva confundiam-se. A sua dor se fortalecia ao aflito e tênue pio da coruja, que aos ouvidos daquela melancolia em chamas se fazia escutar.