O Silêncio do Lago

Enterrei minha mulher num dia ensolarado. Em se tratando dela, não poderia ser diferente.

Após as últimas condolências, permaneci de pé diante do túmulo, olhando o nome na lápide, à espera de acordar daquela realidade a qualquer momento. John, meu fiel mordomo, ficara a um passo atrás, paciente e compreensivo, esperando que eu, finalmente, resolvesse ir. E como isso não acontecia, a certa altura me disse:

- Senhor, está na hora...

Não respondi, apenas joguei sobre o túmulo o botão fechado de rosa branca que estava na minha lapela. Todo o funeral fora adornado com rosas brancas. Olívia dizia que o perfume das rosas brancas era diferente do perfume das demais, era mais suave, inconfundível, se espalhava pelo ar e ia longe. Creio que Olívia tinha razão, porque durante todo o trajeto de volta podia-se sentir o perfume das rosas brancas vindo da capela da família, onde se realizara a cerimônia do funeral, distante uns quinhentos metros da casa, e apesar da grande quantidade delas por toda a entrada e por todo o interior da capela, o perfume que pairava naquele ambiente na hora da cerimônia era muito suave, e veio até nós todos os dias com a brisa da manhã, e durou ainda muitos dias, mesmo depois de terem sido removidas.

Quando chegamos, eu e John, Meg nos aguardava segurando nos braços a criança recém-nascida. Ao ver-me, seus olhos contornados por um círculo de tristeza me interrogaram significativamente. Ela esticou os braços me oferecendo o bebê.

Lancei um olhar frio para aquela criança e retirei-me para a biblioteca.

- Mas, senhor... Ouvi Meg dizer.

Não pude ver, mas senti John sinalizando para ela, num gesto de “deixe”...

Os dias que se seguiram, e os anos, eu os passei naquela biblioteca, olhando o retrato de Olivia sobre a lareira. Ali eu revivia, lia, cuidava dos negócios. De quando em quando eu parava e fitava o retrato, e à noite, antes de me recolher, conversava com minha mulher. Ao sair, parava na porta entreaberta, virava para ela e indagava: ‘Ah Olívia... Por que me deixou?...

Um fato sucedeu comigo após a morte de Olívia. Passei a ter insônia. E no silêncio noturno eu podia ouvir a casa. Ouvia o estalo das vigas, o ranger de canos, e um bater de vento nas janelas. Mas eu ouvia mais que isso. Passos leves pela escada, pelo tapete do corredor, o farfalhar de sedas, e um choro, um choro baixo, um lamento abafado. Mas o que seria? De quem seria? Deitado em minha cama eu via por debaixo da porta uma luz amarelo alaranjado que se aproximava, passava e ia dimuindo; ouvia uma porta abrir e em seguida se fechar no mesmo instante em que a luz desaparecia. Depois, vozes sussurradas, e então, o choro, o lamento. Um temor intenso começou a tomar conta de mim, noite após noite. Comecei a supor que aquele choro, aquele lamento pudesse ser de Olívia! Olívia estava sofrendo! Claro! Seu lamento era pela minha ausência, pela vida que lhe foi retirada! E após me dar conta disso, esperava pela luz, saía do quarto e nada via. Abria porta por porta, mas não a encontrava em lugar algum. Desolado, voltava para o quarto. Me restava continuar com minha sina de ouvir os mesmos sons e de ver a mesma luz, de ouvir o choro de Olívia todas as noites, sem poder estar perto dela.

E vários anos se passaram assim.

Um dia notei algo no rosto do retrato: pequenos traços de umidade maculavam a beleza da minha amada esposa. Logo me veio à mente: ‘suas lágrimas noturnas’... E uma tristeza imensa me invadiu. Nessa ocasião, enquanto me martirizava com as lembranças, fui tomado por pensamentos nostálgicos. Lembrei-me do cobiçado jovem, rico, formado em excelente universidade, atlético, nadador premiado nos torneios estudantis, considerado um dos melhores partidos da cidade, e um colecionador de corações femininos. Os amigos me viam como um celibatário. Ocorria que, já perto dos trinta anos, nenhuma mulher havia me interessado a ponto de eu querer levá-la ao altar. Mas quando vi Olívia... Meu coração soube que seria ela a mulher com quem eu ia querer estar para sempre. Para sempre... Quando se diz isso, comete-se a desfaçatez de não se lembrar da Morte!

Recordei nossa rotina. Café da manhã, passeios pelo jardim. Depois eu ia para o meu gabinete, e de lá podia ouvir Olivia conversando com Meg sobre seus livros preferidos, sobre o que fazer para o jantar, ou falando com John sobre os cavalos ou sobre suas amadas rosas. À noite, após o jantar, íamos para a biblioteca, a lareira acesa nos envolvendo em um clima de aconchego.

Olívia gostava de ler para mim. Recostado na poltrona, eu não prestava muita atenção no que ouvia, prestava mais atenção nela, na suavidade da sua voz, na entonação que dava aos textos e diálogos. Às vezes ela fechava o livro de repente e me olhava com expressão séria. Eu me assustava, ficava sem jeito, como um menino pego divagando ao invés de estudar. Ela se levantava e saía, levando o livro e deixando um perfume suave, perfume de rosas brancas.

Eram muitas as lembranças... Olhei à minha volta. As cortinas, as tapeçarias, a mobília, toda a mansão, sem a radiante presença de Olívia, envelheciam comigo. Olhei no espelho e o que vi foi uma sombra, a sombra de um homem que um dia conhecera a felicidade na plateia de um teatro.

O tempo continuou sua passagem pela vida amargurada que eu vivia. Minhas sombras sem o sol de Olivia, meus olhos sem o brilho do tempo em que a vi pela primeira vez.

John e Meg continuavam na casa, fiéis como quando meus pais existiam e eu era um garoto, só que não mais a mim, mas ao ser que me privara da presença da mulher que eu amava.

Todas as manhãs John levava meu desjejum na biblioteca, me cumprimentava com um impessoal "bom dia, senhor", deixava a bandeja e, após perguntar se eu desejava alguma coisa, se retirava. Numa dessas manhãs, assim que me sentei diante da escrivaninha para iniciar mais um dia de lembranças e trabalho, John entrou, e após seu cumprimento matinal depositou a bandeja sobre a mesa, postou-se diante de mim e me disse algo com que eu jamais pensaria em me preocupar:

- Senhor, uma criança precisa de estudos. Já é tempo.

Aquilo soou quase como um tapa! Que atrevimento! Fiquei olhando para ele, e como ele não arredasse o pé dali, assenti com a cabeça, visivelmente irritado, ao mesmo tempo em que fazia sinal para que se fosse. Ele girou nos calcanhares e saiu, em sua postura ereta.

Fiquei observando John se afastar, lembrando de seu cuidado quase paternal para comigo antes de tudo aquilo acontecer. E assim que a porta fechou, olhei para o retrato.

Recordei a notícia da gravidez da minha mulher. Não recebi muito bem tal notícia, odiava a ideia de ter que dividir a atenção dela. Mas ela estava tão feliz que acabou por me contagiar. E a minha felicidade era a felicidade de Olívia. Seu sorriso constante, sua risada ecoando pela imensidão daquela casa me enchiam de vigor. Sua voz cantarolando pelos jardins, seus longos cabelos de seda negra brilhando ao sol faziam com que eu me pegasse sorrindo junto à vidraça do meu gabinete, de onde a observava.

Cada vez que a via assim, meu desejo por ela aumentava, e não era raro eu deixar os papéis e ir ter com ela, pegá-la no colo e leva-la para o quarto. Ela ria seu riso aberto, mostrando dentes tão brancos quanto as rosas que adorava, me olhava com dissimulado constrangimento e dizia, passando os braços em torno do meu pescoço:

- Querido... Olhe os criados...

Aquela falsa sujeição me enlouquecia. Eu a carregava escada acima, a deitava, a beijava com minha paixão febril, e a amava, as cortinas esvoaçando, um perfume de rosas brancas... À nossa passagem em direção às escadas o casal John e Meg se entreolhava. John sempre sério, Meg com uma expressão marota, como a convidá-lo para algo ao menos parecido.

Essa lembrança me remeteu à tarde em que, sem que tivessem notado minha aproximação, presenciei Olívia falando em tom desiludido com Meg e John sobre deixar para eles nossa fortuna, caso nos acontecesse "algo de ruim" e não tivéssemos herdeiros. Meg respondeu que nada de ruim poderia acontecer conosco, que ela era muito jovem para se preocupar com isso, e, piscando um olho, disse : ‘a senhora logo logo será mãe...’. Olívia enrubesceu e sorriu, visivelmente encabulada, entendendo bem ao que Meg se referia. Demorou, para minha satisfação, mas o sonho de Olívia se concretizou, e iria se transformar num terrível pesadelo, do qual eu jamais acordaria.

Voltando das minhas divagações, tratei de providenciar uma preceptora. Uma candidata se apresentou na semana seguinte. Era jovem, de beleza comum, discreta no falar e no vestir, como convém a uma preceptora. Na mesma hora a contratei. Para mim, tanto fazia.

A chegada da jovem marcou o início daqueles dias e noites. Se eu ouvia o choro de Olívia à noite, durante o dia podia ouvir seus risos. Era assim até o entardecer. Era assim até o amanhecer. Foi assim o tempo todo, até acontecer...

Veio a primavera. Todas as manhãs, risos também lá fora. E foi numa dessas manhãs que ao invés de risos, ouvi gritos. Reconheci a voz de Meg misturada à outras vozes alteradas . Fui até a vidraça e nesse mesmo instante John entrou porta adentro dizendo que a jovem preceptora e a criança passeavam de barco e que, não se sabe como, a criança caíra no lago, que a preceptora pulou na água e tentou tirá-la mas o máximo que conseguiu foi com que se agarrassem a um arbusto aquático. Desci as escadas quase em um só pé. Corri até o lago e entrei na água e nadei tão rápido quanto nas competições, mas tudo isso fiz pela jovem preceptora. Retirei a jovem e a levei para a margem. Meg a acudiu e John a cobriu com um cobertor enquanto me olhavam com olhar inquisidor. Eu permanecia de costas para o lago. Meg se pôs a gritar comigo, porque, em seu desespero, a criança se soltara. A jovem tremia e também me olhava com olhar inquisidor. John veio em minha direção e me deu um soco! A movimentação na água continuava sem que eu movesse um músculo.

Tudo isso durou segundos, que, para quem está morrendo, são a eternidade. Foi então que ouvi algo que fez meu sangue talhar, e meu coração explodir:

- Me ajude!... Papai!

Algo dentro de mim despertou! Parecia arranhar meu peito de dentro para fora, na tentativa de sair, de escapar de uma prisão de uma vida. Meu peito queimava, doía! A voz era fraca, mas eu pude ouvir nitidamente. Pior, pude sentir o desespero daquela criança na sua solitária luta contra a morte. De repente, tudo ficou quieto, o lago ficou em silêncio. E quem se desesperou fui eu. Corri para o lago, ela havia desaparecido. Mergulhei e a procurei na água turva e fria, até que a encontrei.

Já em terra, pratiquei tudo o que havia aprendido. Usei todas as técnicas de salvamento de afogados, todo meu conhecimento. De nada adiantou. Ela não reagia. Aquela criança estava morta.

Meg se desfazia em prantos e lamentações; A jovem preceptora também chorava. John partiu para cima de mim mais uma vez, os olhos faiscando, mas eu o afastei com toda minha força, pois tinha visto algo que até então nunca tinha reparado!

Olhava para aquela criança. Uma menina! Olhei os cabelos. Seda negra! Olhei seu rosto com atenção. Olívia! E uma realidade trágica se abateu sobre minha cabeça. Minha filha! Aquela menina era minha filha! Minha e de Olívia! Era um presente dela, fruto de seu amor por mim!

Os risos durante o dia! O choro à noite! Minha filha! Olívia!

Olhei na direção da enorme janela da biblioteca. Quanto tempo perdido! Quantos passeios por entre as rosas! Quantas histórias a ler naquele cômodo de inúmeras e felizes lembranças! Naquele instante, uma terrível dor no peito me fez cair de joelhos diante daquele corpo pequeno e inerte. Tombei para trás. Deitado de costas, vi John carregando o corpo da minha filha em direção à capela. A dor no peito aumentou, queimava como ácido. Sim, o remorso é um ácido! Meg e a jovem entraram. Fiquei sozinho naquela agonia. Momentos depois vislumbrei o que me pareceu ser um rosto amigo, misericordioso, e então senti meu corpo afundando numa escuridão molhada e fria.

*******

O dia estava claro. Meg abriu as cortinas e as janelas e a luz do sol se esparramou pelo chão feito lava dourada. Em seguida foi até a escrivaninha e retirou de uma gaveta uma pasta de couro. Examinou o documento que havia dentro. Com ar satisfeito, fechou a pasta e se retirou, levando-a consigo. Ao sair, parou na porta e olhou para o retrato sobre a lareira. Seus olhos e os da mulher do retrato se encontraram. Nenhum rastro de umidade naquele rosto. Nunca mais. Depois, desceu as escadas, entregou a pasta a John e foi ter com a jovem preceptora que a aguardava no jardim. Um perfume suave, inconfundível, pairava no ar.

E todas as noites, deitados em sua cama, John e Meg vêm uma luz amarelo alaranjado por debaixo da porta, ouvem passos leves e farfalhares de sedas, uma porta abrindo e fechando. E vozes. Ora de uma mulher, ora de uma menina. Durante o dia, risos. À noite, histórias. Lá fora, o silêncio do lago é quebrado por um choro baixo, um lamento abafado...

Bete Allan
Enviado por Bete Allan em 11/07/2011
Reeditado em 25/07/2011
Código do texto: T3088226
Classificação de conteúdo: seguro