Marcas que não se apagam
O brilho metálico do seu olhar me constrangia. Aquele senhor sentara-se à minha frente. Enigmático, fixava o olhar em mim. Tive a sensação de ter ali um personagem das aventuras de Sherlock Holmes.
Encontrava-me num barzinho de esquina, tomando um conhaque e esperando um amigo. O senhor misterioso chegou depois de mim e sentou-se, na lateral direita. Usava uma sobrecasaca chumbo e um chapéu preto. Trazia consigo um jornal, que aparentava ler.
A perna cruzada lentamente balançava e o seu semblante não se alterava. Vagarosamente, bebia um vinho e me direcionava um olhar firme, mas sutil. Insistentemente.
Meu amigo não chegava. Eu viera antes, pois tencionava organizar as palavras sobre o assunto a tratar. Naquela noite fria de angústia, minha consciência se comprometera com os desígnios da justiça. Ou da injustiça humana. Fazia dois anos.
A penumbra imposta pelo horário se tornara mais intensa agora. Passavam das 17h30. Meu amigo não chegava. O senhor virou a página, sem desviar de mim o olhar.
Acenderam-se as luzes. Iluminação pálida. O ambiente se tornou soturno. Numa mesa do canto, um casal conversava baixinho. Próximo a entrada, uma jovem loura tomava um refrigerante e rabiscava um caderno.
Comecei a angustiar-me. Paguei a conta e sai.
Na rua, um aglomerado de pessoas me atraiu a atenção. Caminhei até lá. Um corpo estendido no chão. Do furo no peito, fluía muito sangue. Fiquei atônito. Meu coração pulsou forte. Vozes se entrecruzavam. A sirene da ambulância perpassava os meus ouvidos. O mundo começou a rodar.
O sangue contornava o corpo do meu amigo.
Com as mãos na cabeça, não acreditava no que via. Comecei a correr.
Parei na rua que dava para a praia. Uma praia mal iluminada. Desci uma pequena ladeira e cheguei às areias brancas. Era noite. Sentei-me no chão frio. As lágrimas desciam-me pela face. Um aperto no coração.
A lua clara projetou a sombra atrás de mim. Permaneci parado. A silhueta trazia um chapéu consigo. Rapidamente, voltei-me para trás.
Vejo que estás pertubado. Seu amigo foi silenciado.
Era o mesmo senhor que me observava no bar. Eu não sabia o que falar... nem o que pensar.
Por quê? Apenas murmurei.
As nuvens cobriram a lua e ele sentou-se ao meu lado. A praia se tornara escura e o barulho das ondas mais intenso. Ventava forte.
Na Rua Plácido de Campos, um corpo estendido, tiro no peito. Por volta das 18 horas. Isto há dois anos. Um péssimo momento para o seu amigo estar lá hoje.
Comecei a respirar com dificuldades. O quebra-cabeça começava a se encaixar. O barzinho. A demora. O horário. O assunto que a tratar. Falei, enfim: Naquele dia, meu amigo nem entendeu a situação. Não havia necessidade do que foi feito.
O desconhecido senhor colocou-me a mão no ombro. Mas havia um encontro num bar aqui perto. Explicações a serem ditas, e revelações.
Fiquei me perguntando por que não me escolheram. Se queriam silenciar o passado, seria eu o alvo. Era eu o conhecedor de tudo. Não ousei a falar em voz alta. Mas parece que a sua audição atravessava a minha consciência.
Não se preocupe. Todos os vestígios daquele dia serão apagados.
Minha visão escureceu. A lua já não sortia efeito em clarear a noite. Encontrava-me em choque. Eu fora seguido. Meu amigo morto. Acerto de contas. Iriam me eliminar também.
Na penumbra, recuperei a visão ao perceber a ação daquele homem. Da parte interna da sobrecasaca, retirou um objeto metálico. Ele não percebeu que algo caíra, ao ser retirada a arma. Era uma espécie de carteira. Havia pouca claridade, e disfarcei o olhar. Era uma carteirinha de identificação, eu também já possuíra a minha. Trazíamos sempre num bolso interno. Constava apenas o símbolo do grupo, a nossa foto e um codinome.
Silenciosamente, apontou para mim o cano frio e rígido. Reze, é o que você ainda pode fazer. Foram três tiros. Saiu sem olhar para trás.
Ainda consegui pegar a carteirinha na areia fria e fechá-la na mão. Relembrei as palavras dele: Não se preocupe. Todos os vestígios daquele dia serão apagados.
Sorri, antes de morrer.