TRAGÉDIA FAMILIAR

Quem conheceu a Dona Glorinha vai se lembrar do fato. E quem não conheceu não vai estranhar porque já soube de pelo menos uma pessoa semelhante. Ela é um arquétipo da mulher centralizadora, dominadora, que simboliza bem o protótipo da matriarca que não abdica da sua autoridade nem depois de morta.
Enquanto o marido foi vivo ela infernizou sua vida com cenas constantes de ciúme e uma marcação tão cerrada em cima do cara, que o fazia motivo de chacota entre os amigos e os companheiros de trabalho.
Diziam que ele não dava um suspiro sem a autorização dela. No entanto, o coitado do Seu Antonio era o sujeito mais pacato que existia na cidade. Não tinha boca para nada. Não reclamava de coisa alguma, não falava mal de ninguém, estava sempre dizendo sim para todos, era uma alma que nascera para concordar com tudo e nunca contestar nada. Odiava conflitos e situações complicadas.
Mas mesmo assim, a Dona Glorinha sempre cismava que ele poderia passá-la para traz. Por isso não dava tréguas para o infeliz, controlando-o de todas as maneiras possíveis e imagináveis. Seu Antonio estava acostumado com isso e não ligava. Só não gostava quando ela começava a armar barraco, por conta de um bom dia que ele deu para a vizinha, uma olhadinha para as pernas da mocinha que passou de mini saia em frente a eles, pelo sorriso sem vergonha que a fulana deu para ele e por ai adiante. Nessas ocasiões, ele que odiava conflitos, saia de perto e deixava a mulher falando sozinha. E ela odiava isso. Queria que ele retrucasse, que brigasse, que reagisse, mas que nada. Quando um quer dois não brigam, dizia ele proverbialmente, e dali saia para a rua, dar uma volta. “Quando você se cansar dessa besteira, eu volto”, dizia ele.

A morte do Seu Antonio pegou Dona Glorinha no contrapé. Ela não tinha mais o marido para infernizar. Então mudou de alvo. Começou a pegar no pé do Toninho, seu filho de vinte e dois anos. Até então ela tentara exercer seu matriarcado sobre o filho, mas sem muito sucesso. O rapaz simplesmente não lhe dava a menor bola. Quanto mais ela tentava controlá-lo, mais ele a contradizia. Só que antes ele tinha o pai para dividir com ele a chatice das diatribes da mãe. E como ela preferia ficar chateando o pai, ele sempre escapava pela tangente, deixando a mãe falando sozinha. Agora, entretanto, ele passara a ser o alvo principal dela.
O pior de tudo isso era a bronca que ela pegara da Walderez, sua noiva. No começo, quando ele trouxe a menina pela primeira vez à sua casa, ele só notou um pouco de frieza por parte dela. Mas não foi malcriada nem criou nenhum tipo de constrangimento para a moça. Apenas ignorou-a. Toninho conhecia bem a mãe e não se importou com isso.
“Ciúmes de mulher que pensa que outra mulher vai levar o seu filho embora”, pensou ele. Toda mãe, em algum momento da vida do filho, quando ele começa a se interessar por outra mulher, tem, em algum grau, esse sentimento. Isso naturalmente passaria com o tempo.
Não passou. Ao contrário, com o passar do tempo só piorou. Dona Glorinha não perdia oportunidade de criticar a menina. Era desajeitada, preguiçosa, tinha uma voz desagradável, não sabia cozinhar, parecia meio largada, era muito “dada” com os amigos dele etc...
Fez de tudo, disse tudo que era possível mostrar e inventar para que o Toninho largasse a Walderez, mas o tiro saiu pela culatra. Quanto mais ele torpedeava o namoro deles, mais crescia neles a vontade de casarem-se logo. Ela, para dar um troco naquela bruxa, ele para escapar das garras dela.
Assim, eles acabaram se casando antes do previsto. Dona Glorinha ficou fula de raiva. Recusou-se a ir ao casamento, falou um monte de impropérios para a nora, brigou com o filho, fez as chantagens emocionais de praxe (chorou, inventou doenças, reclamou do abandono em que estava sendo deixada, prometeu se matar, etc. ), mas nada adiantou. Eles sabiam com quem estavam lidando.
Então Dona Glorinha mudou de tática. Como viu que não adiantou a pressão pelo lado de fora, passou a trabalhar pela parte de dentro. Aproximou-se de Walderez e tornou-se amiga da nora. Ia visitá-la sempre, nunca mais fez qualquer crítica à moça, nem se queixou mais com o filho. Em princípio, o casal ficou meio desconfiado com a mudança repentina da Dona Glorinha, mas logo eles se acostumaram com isso, pois com coisas boas é fácil se acostumar.
Dona Glorinha tornou-se uma sogra simpática e prestativa. Já fazia uns dois anos que eles haviam se casado e tudo ia bem com a vida do casal. Mas um dia Toninho recebeu um telefonema estranho de uma mulher que se dizia amiga dele. Não quis se identificar, pois segundo ela disse, era também amiga de Walderez, mas não se conformava com o que ela estava fazendo com ele.
De uma forma velada e subreptícia ela disse que Walderez estava passando ele para traz. Deu detalhes do caso. Disse que quando ele saia para o trabalho, pela manhã, um cara costumava entrar na casa deles, pela janela do quarto do casal. Ficava lá algumas horas e depois saia pela mesma janela. Era sempre o mesmo cara, segundo a denunciante. Ela o vira várias vezes.
Chocado pela denúncia, ele quis tirar o assunto a limpo. A primeira coisa que passou pela cabeça dele foi que isso poderia ser uma armação da mãe, embora a voz, pelo telefone, não fosse a dela. Mas uma voz pode ser disfarçada, pensou. De repente a Dona Glorinha estava tendo uma recaída. Escorpião não perde o ferrão assim de repente.
Foi imediatamente procurá-la. Dona Glorinha ficou indignada. Como ele poderia pensar uma coisa dessas da sua própria mãe? Se ela soubesse de alguma coisa nesse sentido ela diria isso na cara da Walderez. Não era uma mulher de subterfúgios. Sugeriu que ele ficasse de tocaia na manhã seguinte para ver se era verdade que um sujeito costumava entrar pela janela depois que ele saia. Isso era coisa fácil de verificar.
Foi então que no dia seguinte, lá estava o Toninho, espreitando. Saíra para trabalhar normalmente, mas se acoitara atrás de um muro, de onde podia ter uma vista completa da sua casa, e principalmente da janela do seu quarto.
Não demorou meia hora. Viu quando Walderez abriu a janela do quarto e olhou para fora, como se estivesse respirando o ar da manhã. Cinco minutos depois um vulto de homem abriu o portão, esgueirou-se cuidadosamente pelo beiral da casa, como se temesse ser visto e pulou para dentro do quarto pela janela aberta.

O que aconteceu depois todo mundo, naquela cidade, ainda se lembra. Os jornais comentaram durante a semana inteira o fato.
"Marido enlouquecido mata a esposa e a própria mãe e depois se suicida" foi a manchete. A polícia tirou as mesmas conclusões. Uma tragédia familiar. Não adiantava procurar as razões. Não sobrara culpados para punir.
O detalhe que ninguém conseguiu entender até hoje foi o fato de a mãe do rapaz estar deitada na cama do casal, usando as roupas do falecido Seu Antonio e usando um bigode postiço.

João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 08/07/2011
Reeditado em 09/07/2011
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