O Hospício

Era uma fria tarde de outono, fora poderia ser qualquer outra estação, mas aquele quarto parecia ter parado no tempo, no outono mais angustiante que alguém já passou. O quarto era frio, úmido e as paredes mostravam marcas de sofrimento e desespero. Na parede oposta à porta, e ao lado esquerdo da janela, repousava ao centro uma pequena cama onde acabara de despertar um homem.

Privado de sua memória, não reconhecia a si, não sabia dizer seu próprio nome, quanto mais entender o que fazia naquele lugar. Sentia-se fraco, com fome e muito sujo; seu cheiro se misturava à podridão do quarto. Decidido a encontrar respostas resolveu sair, e ao tocar a maçaneta foi tomado por um desespero, por um medo de não se encontrar, de não se lembrar quem é... Pior que desconhecer seu paradeiro, é desconhecer a si próprio.

A porta se abriu, mas de súbito encontrava-se outra vez deitado na cama. Viu entrar uma senhora vestindo saia, camisa e um avental que um dia foram brancos, mas hoje eram encardidos, cheirando a mofo. Logo atrás entrou um homem muito bem vestido com calça social e camisa impecavelmente branca. A senhora se aproximou da cama e disse:

- Até agora nem se mexeu!

O médico só acenou com a cabeça e completou:

- Continue com o mesmo medicamento.

Os dois saíram do quarto deixando a porta aberta. Do corredor se ouvia gemidos de agonia e no fundo uma risada parecida com um choro. Ele se levantou e saiu do quarto seguindo aquele som pelo corredor até chegar a um salão escuro. Havia apenas um rapaz sentado numa poltrona em frente a uma TV. Aproximou-se do rapaz e como se sua alma fosse puxada, viu-se sentado na cadeira, e na TV via o reflexo do médico caminhando no corredor em sua direção. Sentiu o toque da mão do médico em seu ombro.

- Você levantou-disse o médico num tom indiferente - Até ontem você nem se mexia.

Os dois se olharam por alguns segundos, o médico tinha um olhar de desprezo, enquanto o rapaz o via como sua esperança, sua chave para o passado que reconstruiria seu presente.

- Você pode me ajudar? - sussurrou o rapaz segurando o braço do médico. Por mais que ele forçasse, um sussurro era o máximo que saia do seu âmago.

- O remédio já está sendo dado, amanhã você pode começar as seções de terapia. Agora vá para o seu quarto que está tarde – ordenou o médico.

Andou até seu quarto a passos lentos, sentia-se cansado como alguém que tenta fugir há dias de um labirinto. Quando chegou em seu quarto não se deu o trabalho de ascender a luz, foi direto para a cama e praticamente desmoronou. Seu corpo doía pelo tempo em que ficou deitado, mas não tinha força para se manter em pé.

Acordou com o barulho da chuva inundando o quarto, ainda sentia as dores no corpo. No canto direito do quarto, em frente à cama, um senhor escrevia em um caderno. O senhor parou de escrever, guardou a caneta e o caderno numa bolsa e se aproximou da cama.

- Que bom que acordou, garoto! Faz dias que você dorme-disse o velho.

- Desculpe, mas quem é o senhor? - perguntou o rapaz assustado.

- Na verdade não faz diferença, aqui ninguém se importa se você vive ou morre! Sou apenas um velho esquecido que um dia teve um nome.

O rapaz se levanta e vai até o banheiro, lava seu rosto e olha no espelho. Observa seu rosto jovem, porém, já com marcas de sofrimento cobrindo sua face. Ao sair do banheiro percebe que o velho saiu do quarto, olha pelo corredor, mas não o vê. Percebe que as paredes do corredor têm outra cor, já não ostentam mais aquele bege encardido, e sim um tom esverdeado, bem claro. Percebeu também uma movimentação maior no hospital, mais pacientes, mas não via nenhum médico. Pela janela o sol lhe trazia uma nova sensação, sentia-se mais calmo e seguro, mas ao chegar à sala onde ficava a TV, sentiu o cheiro podre do sofrimento, seguiu em direção à porta. Do lado de fora ficava o jardim que há muito tempo não era cuidado, um pequeno campo de terra onde já foi um gramado, e alguns bancos de ferro onde se podia ter toda a visão do portão onde se lia “Hospital Psiquiátrico”, e do grande muro que separava o hospício do resto do mundo. O rapaz abriu a porta e uma forte luz o deixou momentaneamente sem visão, seus olhos não estavam mais acostumados com tanta luz, há tempos que só enxergava escuridão, tanto com os olhos, quanto com a alma. Quando se vive tanto tempo na penumbra, qualquer feixe de luz entra como uma faca pelos olhos. Sua visão voltou em segundos, mas já percebia que a movimentação da sala não era a mesma, a luz que o havia atingido desaparecera e pela porta só o que entrava era o vento amargurado cortando sua alma ao meio. As paredes voltaram a ter o angustiante tom de bege, e ele se sentia cada vez mais pressionado por esse lugar, cada parede do hospício sugava um pouco de suas energias, sua vida parecia se esvair através do cheiro, da textura e do ar pesado que condensava toda a tristeza que cada paciente já sentiu ali.

Andou pelo corredor observando todos os quartos e em nenhum deles viu aquele velho, perguntou a um paciente se havia o visto, mas este não lhe deu ouvidos. Chegou a uma porta diferente das outras, esta tinha uma pequena janela de vidro opaco na parte de cima, entrou por impulso, e viu uma mesa repleta de folhas de papel completamente desordenadas, um armário de ferro e alguns quadros na parede, incluindo um diploma. Percebeu que ali era a sala do médico, resolveu então procurar alguma coisa a seu respeito, na esperança de encontrar algum relatório ou alguma ficha. Não encontrou nada na mesa, apenas algumas listas de remédios, rabiscos e folhas em branco. Procurou no armário, as fichas de todos os pacientes se encontravam ali, mas estavam ordenadas por ordem alfabética e ele não sabia seu nome, tentou se lembrar do numero do quarto, mas não lembrava de ter visto algum numero, e também não via nas fichas o numero do quarto em que os pacientes se encontravam. Aquele armário era o único lugar organizado do hospício, afinal, era o único lugar que não era tocado há anos. O que um dia foi um hospital psiquiátrico, hoje é um depósito, um lugar pra onde vão os esquecidos pela sociedade. Ali são mantidos aqueles que não são culpados por nenhum crime, mas são um estorvo, é um lugar criado para as famílias e o Estado se isentarem da culpa pelo abandono, assim, acreditam que os doentes são tratados, mas a verdade é que estão apenas confinados, cercados por um muro que os separam, para que seus responsáveis não precisem conviver com o sofrimento.

Saiu da sala do médico com a certeza de que sua única esperança era aquele velho, mas não sabia seu nome e nem onde o encontrar. Ainda no corredor, uma enfermeira passa e lhe dá um copo de café contendo alguns comprimidos, todos os pacientes estavam recebendo um igual. Os comprimidos serviam apenas para dopar os pacientes, um “sossega leão” para que o médico e a enfermeira não tenham trabalho, afinal, aquele hospital não tem objetivo de ajudar ninguém, sua única função é evitar que aquelas pessoas incomodem. Tomou os comprimidos sem pensar, num ato já condicionado, e viu os outros pacientes fazerem o mesmo. Foi para o seu quarto e assim que entrou viu um caderno em sua cama, era o caderno em que o velho escrevia. Olhou pelo corredor e no banheiro, mas não via o velho, sentou-se na cama e abriu o caderno, não conseguia entender o que estava escrito, aquelas palavras não faziam sentido para ele, mas tinha a sensação de já ter visto aquilo, virava as páginas cada vez mais rápido, e as letras lentamente se encaixavam, começando a fazer sentido e a cada página virada, mais ele se via naquele caderno. Quando já conseguia ler os escritos do velho, percebeu que tudo se repetia ali, o caderno estava preenchido com os mesmos escritos do começo ao fim, como em um diário, que sempre começava com a frase: Acordei neste lugar e ainda não sei quem sou, encontrei este caderno e, por impulso, escrevo na busca de me encontrar.

Sentindo uma corrente de medo passar por todo o seu corpo, ele joga o caderno no canto direito do quarto e se pergunta se aquilo seria efeito dos comprimidos. Levanta da cama e olha pelo corredor vazio, já não vê os outros pacientes, sente uma leve tontura, vai até o banheiro e lava o rosto na pia, deixando a água cair pelo seu pescoço, olha para o espelho e reencontra o velho, agora no seu reflexo. Percebe agora suas mãos enrugadas, as marcas da tristeza estão cravadas mais profundamente em seu rosto, La fora a chuva cai, inundando o quarto com seu som percussivo e ininterrupto. Ele sai do banheiro e há um jovem deitado na cama, olha para seu rosto e se vê ali, como se via até instantes atrás, pega o caderno no canto do quarto, senta e enquanto espera o jovem acordar, escreve no caderno: Acordei neste lugar e ainda não sei quem sou, encontrei este caderno e, por impulso, escrevo na busca de me encontrar.

Ramon Modenesi
Enviado por Ramon Modenesi em 01/07/2011
Reeditado em 06/09/2011
Código do texto: T3068682
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