A Casa Verde

A água despencava sobre a terra com a fúria dos deuses. Estrondosos trovões eram ouvidos antes dos raios serem avistados a uma pequena distância dali.

Carolina, cansada de esperar que o telefone tocasse, trancou-se no banheiro para tomar um banho mesmo sabendo que na casa só havia ela e o cão que ganhara do seu tio Roberto dois dias atrás.

A água morna caia sobre seu corpo enquanto cantarolava uma velha canção do seu tempo de infância que há muito anos não era tocada nas rádios. Suas lágrimas misturavam-se à água do chuveiro que escorria pelo seu franzino corpo nu.

Era como se o medo que sentia pudesse ser lavado, extirpado da sua carne sem deixar sinais de que um dia houvesse estado ali.

Ninguém havia procurado por ela. Nem mesmo uma mísera mensagem enviada pelo celular havia chegado. Nem mesmo ele...

Há dois meses, quando havia pedido sua transferência no banco para a capital, Carolina recebeu a proposta de seu primo para ficar na casa que eram de seus pais. A casa estava vazia há seis meses sem que conseguissem alugá-la, haviam furtado os fios de eletricidade e as paredes estavam marcadas com manchas de mofo desde o dia em que a caixa d’água transbordara por falta de limpeza.

Mas era uma casa sólida, localizada numa região nobre da cidade, um dos primeiros bairros. A maioria das casas antigas edificadas na mesma época em que a Casa Verde já haviam sido destruídas e davam lugar a novas construções, modernas e adequadas às novas famílias que se mudaram para lá.

Mas a Casa Verde, estava como a havia conhecido quando era criança e ainda morava com sua mãe. As janelas e portas traziam em suas formas o passado que a família esforçava-se em deixar para traz.

Era uma casa grande, com três quartos, uma suíte e um quintal imenso.

Suas roupas, cd’s e livros ainda amontoavam-se em caixas de papelão espalhadas pelas salas e quartos. Mas a cozinha já estava montada, seu guarda-roupas e cama também. E já havia uma semana...

A chuva cessara um pouco, havia transformado-se em finos respingos que o vento levava à sua mercê para todos os lados. Apenas os silvos do vento eram ouvidos.

Carolina sentiu-se só mais uma vez e resolveu tomar algumas das pílulas coloridas que tinha trazido por via das dúvidas.

_ São as últimas – pensou. Sabia que ninguém iria visitá-la com aquele tempo horrível lá fora.

Sentou-se em um colchão que havia colocado na sala principal da casa, abriu a janela e ligou o computador para ouvir os melancólicos acordes da banda americana ColdPlay. As calhas estalavam fora da casa anunciando o início de uma nova tempestade. As imensas mangueiras sacudiam suas copas de um lado para o outro, dançando com o tempo, tentando manterem-se firmes por mais algumas décadas. E o cão chorava sob o carro estacionado na garagem.

Carolina acendeu em seguida um cigarro e deu algumas tragadas. Já sentia-se melhor. Sem culpas, sem medo. Seu corpo tornava-se leve e seu humor passava do estado depressivo para uma alegria típica, quase eufórica. Sem maiores delongas, tirou suas roupas e meteu-se sob o edredon cor de rosa que havia ganhado de sua tia-avó Neide que morava ao lado.

Enquanto olhava para o teto e divisava as sombras que se desenhavam nele, Carolina ouviu alguém chamar o seu nome na cozinha.

_ Já vou! – gritou pondo-se de pé imediatamente enquanto enrolava-se no edredon. E quando ia apagando seu cigarro para jogá-lo no lixo do banheiro, lembrou-se que estava só. Não havia ninguém na casa.

Carolina parou sob o umbral da porta do banheiro e virou-se para a sala de onde viera.

_ Nossa... Esse negócio é bom mesmo! – disse para si mesma, forçando um sorriso nervoso e acendendo todas as luzes no caminho para a cozinha.

Corredor, saleta, sala de jantar, copa e cozinha. Vazia.

A chuva aumentava o volume novamente e chicoteava as persianas da sala onde estava o colchão. A música que tocava era freqüentemente encoberta pelo ruidoso som dos trovões.

_ Boba! – riu-se enquanto enchia um copo com água da torneira mesmo.

E, voltando novamente para aconchegar-se no colchão, parou de fronte ao portal envidraçado que abria para o jardim de inverno que sua tia tanto gostava. Era agora um amontoado de pedras e mato, com uma pequena árvore morta ao centro.

Carolina suspirou e tentou apagar a imagem da tia sentada no escuro fumando seus longos cigarros mentolados enquanto equilibrava taças de martini umas sobre as outras. E as bebia durante todo o dia enquanto a doença a consumia...

_Carolina!

Alguém gritou asperamente da cozinha, e dessa vez, o susto havia sido tão grande que o copo d’água que tinha na mão estilhaçava-se no chão. Mas Carolina nem sequer olhou para o copo, sentiu sua pele toda arrepiar-se e o coração acelerar até o ponto de achar que iria ter um troço ali mesmo. A mão foi levada à boca de imediato, evitando que gritasse como nos antigos filmes de terror. Mas aquilo não era um filme. E ela estava chapada.

As sombras das árvores dançavam nas janelas à sua volta. Carolina correu até a sala e pulou sobre o colchão. Pegou o celular que estava na bolsa ao lado e tentando controlar a tremedeira das mãos, ligou para Pedro.

_Carolina!!! – A voz feminina ecoou pela casa vazia tornando-se ainda mais incisiva.

Carolina gritou sem perceber que alguém atendia do outro lado:

_ Louca! Me deixe em paz, sua louca!!! – e desligava em seguida...

_ Pedro, Pedro! Não... – Mas não havia mais ninguém na linha.

Olhando para o caminho que se abria pela casa até a cozinha, Carolina pôs-se de pé segurando o edredon e pegou a bolsa do chão. Andou passo a passo, de costas, até a porta da frente e tateou até encontrar a maçaneta. Girou-a. Mas a porta não se abriu, obrigando-a a virar-se de costas à desconhecida voz que a gritava da cozinha. E quando o fez, um vento frio açoitou-lhe o corpo nu, molhando-o com respingos da chuva que despencava do lado de fora. Mas o arrepio que sentiu não a impediu de girar novamente a maçaneta, enfiar em seguida a mão livre na bolsa e não encontrar as chaves.

Lágrimas escorreram pela sua face amedrontada enquanto encostava a cabeça na porta em profundo desespero... Mas algo a fez voltar a si. Era ela novamente, agora mais rancorosa do que antes, ordenando e não chamando, como uma mulher histérica tendo um ataque de nervos.

_ CAROLINA!

_ ME DEIXA EM PAZ! VÁ EMBORA! – Berrou entre soluços, virando-se para a voz e escorando-se na porta. A bolsa caiu no chão pesadamente e quando se abaixou para pegá-la,

Carolina se viu no mais profundo escuro. E, girando a cabeça para todos os lados, acocorada no chão molhado de fronte à porta, tentava em vão pensar em onde havia deixado as malditas chaves. _ No banheiro, claro! – pensou num lampejo de esperança.

Assim que se levantou, um som de vidro se quebrando veio da cozinha e em seguida, algo se movendo em sua direção.

Eram passos de alguém calçando salto alto e arrastando algo pelo chão enquanto caminhava.

_CAROLINA! – gritou a voz furiosa, notadamente mais próxima.

A letargia a abandonava agora e sentia um novo pulsar em seu corpo, que a fez correr para o banheiro, escorregando e trombando nas paredes e caixas espalhadas pelo chão. No banheiro, tateou pela pia de mármore que cobria uma parede inteira e ouviu o tilintar de metal. _ Achei. – disse baixinho.

Todo o seu corpo tremia, recusando-se claramente em ir ao encontro da voz. O clarão produzido por um relâmpago através da pequena janela do banheiro foi suficiente para que Carolina divisasse a tesoura sobre a pia, e a pegou também... E começou a caminhar de volta, como se a qualquer momento pudesse trombar com o espectro que a perseguia. Mas nada se via à frente. Nada se ouvia a não ser o barulho da chuva caindo nas poças fora da casa.

A sala parecia vazia e a voz não havia dito mais nada. Mas.. A porta estava aberta e quando Carolina, atordida, foi até a sua frente, viu finalmente o espectro de uma mulher envolta em capa plástica, segurando um saco preto com algo dentro e gritou à sua frente no mesmo momento em que mais um relâmpago surgia no céu noturno para tornar aquela imagem mais aterradora ainda.

_ CA-RO-LI-NA! Você é sur...

Mas a mulher não teve tempo de terminar a frase. Carolina golpeara-lhe a garganta com tanta força que, quando retirou a tesoura, um jato de sangue jorrou para fora enquanto duas mãos tateavam inutilmente tentando obstruí-la... A mulher caiu ao chão no mesmo instante em que a luz voltava e Carolina reconhecia a sua tia-avó Neide, vestida com um de seus modelitos negros encoberto pela capa de chuva que cobria até mesmo suas botas de cano alto, caída ao lado de um saco de lixo recheado de mangas maduras...

Carolina sentou-se no chão, nua e coberta por respingos vermelhos do sangue da velha. Lembrou-se subitamente que havia um portão que ligava a Casa Verde à casa de sua tia-avó. Parecia emperrado e consumido pela ferrugem, assim como a fechadura da porta da cozinha, que só abria pelo lado de dentro... E por fim falou num risinho de travessura:

_ Talvez ninguém perceba...

Alessandra Vasconcelos
Enviado por Alessandra Vasconcelos em 29/11/2006
Reeditado em 23/07/2008
Código do texto: T305079