Meu vizinho estava morto.

Meu vizinho estava morto.

Há dias não ouvia Seu Geraldinho. O homem que todas as manhãs montava guarda para impedir que meu carro passasse sobre o cuidado gramado de seu jardim. Ao manobrar meu carro, lá estava ele pelo retrovisor monitorando minha saída, diariamente. Era ranzinza, amargo, de pouquíssima fala, mas parecia um bom homem. Seu sotaque discreto mostrava que não era brasileiro, mas não ousava fazer-lhe nenhuma pergunta nesse sentido, e apesar de tudo era educado e gentil. No Natal passado, notei que ele estava, como sempre, sozinho, o convidei para a ceia. Ele mostrou-se agradecido e disse que não era de festas.

E não era mesmo. Não era de passeios, nem de fazer grandes compras, não tinha carro, computador, nem TV colorida, isso dava pra ver através da cortina branca da sala. Ouvia seu radio que permanecia ligado o tempo todo, mesmo quando dormia. Nunca consegui saber que programa ouvia, não tinha músicas, apenas falas. Solitário, acho que era para ouvir alguém que ele deixava o radio ligado. A maior e mais eficiente tecnologia moderna que tinha era um telefone. Mas dificilmente atendia às ligações. Não tinha amigos, e ninguém o visitava. Isso me doía. Ele já tinha uns setenta anos e suas roupas antigas, embora alinhadas ainda, cheiravam à mofo.

Fazia dois dias que tentava levar para ele um bom pedaço de torta de banana, mas não atendia campainha e muito menos meus berros: “Seu Geraldo! Seu Geraldiiiiinho!”. Tudo bem fechado, nem uma cortininha afastada tinha. Arrisquei um telefonema, e outro, e outro, e nada. Pensei que talvez tivesse, finalmente viajado. Mas não viajaria nessa época em que vencem as contas de serviços, não ele. Resolvi esperar.

As contas de luz, água e telefone foram amontoando na varanda. Isso começou a me preocupar, pois o homem não atrasava nunca seus compromissos. Fiquei curiosa e abri as cartas, ciente de que me repreenderia quando descobrisse, as abri. Abri uma por uma. Seu nome nem era Geraldo, era Luiz Antonio Ferreiro, pelo menos para isso valeu abrir suas cartas. Que esquisito, foi ele que me disse que era Geraldo, me lembrei nitidamente do dia que em que me mudei, ele estendeu a mão e disse Geraldo, ao seu dispor. Mas nunca esteve ao meu dispor coisa nenhuma. A ultima ligação telefônica tinha acontecido há mais de uma semana, e era um interurbano. Arrisquei um telefonemazinho para o número, afinal precisava saber do meu vizinho. Ficaria feliz se descobrisse que ele estava fazendo visita a um parente ou algo assim. Acho que estava sentindo falta dele nas manhãs em que ficava tomando conta do gramado. Do outro lado uma voz rouca de homem me disse “alô”, e logo perguntei se ele conhecia o Geraldinho, Geraldo, ou Luiz Antonio Ferreiro. O homem respondeu rapidamente que não, e queria saber se era alguma herança. Poxa, então era por isso que o Seu Geraldo não falava com a família, o cara nem perguntou quem eu era, e nem o que eu queria. Expliquei que éramos vizinhos e que ele não atendia meus telefonemas, que eu estava preocupada. O homem riu e disse que nunca na vida tinha encontrado alguém que se preocupasse com um vizinho. Essa era novidade - acrescentou ele. E desligou. E eu fiquei sem respostas, aliás, aumentaram as minhas dúvidas: “quem era esse sujeito com quem tinha falado?”. Liguei de novo e o homem atendeu prontamente: “Não gosto de conversa moça, vai cuidar da sua vida, vai” – e desligou novamente.

Minha cabeça rodava de preocupação. Bati em outras portas para saber se alguém sabia de algo que eu não sabia. E nada. Ninguém o viu sair com malas, nem de taxi, nada. Chamei a polícia. Demorou muito para eu convencê-los a ir até lá. Estava parecendo coisa de vizinha fofoqueira, e eles relutaram muito. Só consegui convencê-los depois que contei tudo sobre o nome que não era Geraldo, sobre as contas que abri, sobre o interurbano que fiz. Sobre o rádio que ainda estava ligado. Só depois é que os convenci.

Era eu agora que estava de plantão para não estragarem o gramado do Seu Geraldo ou Luiz sei lá, mas não adiantou nada, as viaturas chegaram com sirene ligada, e se amontoaram no jardim. “Meu Deus, isso vai ser uma briga só! – pensei”. O policial pediu meus documentos e ordenou que eu esperasse quietinha. Não entendi nada, mas esperei. As viaturas eram de todas as cores, havia também automóveis sem logomarca da polícia. Eram muitos. Armas em punho como se estivessem deflagrando uma guerra. Eles arrombaram a porta da casa, e reclamei: “ele não vai gostar de terem quebrado a fechadura da porta dele”. Pediram para eu ficar quieta, e fiquei. Depois veio uma policial sisuda e me perguntou de onde eu conhecia o Geraldinho. Respondi que o conheço desde que me mudei para a casa ao lado, há seis meses, que ele veio me receber e se apresentou. Mas que tínhamos pouco contato, pois o homem era arredio e sozinho, um cotadinho – completei. Foi aí que fiquei estupefata. Ela disse que ele não era Geraldo, nem Luiz. Que seu verdadeiro nome era Hugo Vermont, que se tratava de um espião procurado pela Interpol, Cia e Policia Federal. Que o Hugo estava jurado de morte por espiões russos, pois era agente duplo e teria matado um chanceler para se livrar da prisão, e depois fugiu. Que a policia interceptou um comunicado sobre o paradeiro de Hugo no Brasil. “Imagine só, eu não acreditei numa única palavra que aquela dona estava falando. Ou não era do meu vizinho que falava”. Ela continuou dizendo que ele era perigoso, um assassino frio, e que há anos o procuravam. Nesse instante saiu de lá um policial e disse que o Hugo tinha matado um cara e que o mantinha num freezer no porão, decerto seria o proprietário do imóvel, o verdadeiro Sr. Geraldo Conte. “Aquilo estava mesmo acontecendo?!” – Tremia visivelmente enquanto a história foi se montando em minha mente. O policial continuou dizendo que o rádio ligado era uma freqüência na qual ele ouvia os agentes russos, ingleses e americanos, e assim conhecia os passos de todos. E que fugiu quando soube que tinha sido descoberto. E mais, toda a parafernália eletrônica que o permitia ouvir essas conversas, estava montada num ambiente climatizado no jardim sob o gramado. A busca continuaria.