Prelúdios Vampirescos - A história de Shane Benzo - Parte 1
Contarei-lhes um pouco de minha não tão longa história, se me permitem um momento de vossas nobres atenções.
Meu nome é Shane Benzo, mas nem sempre me chamei assim. Na realidade, o nome que meus progenitores me deram ao nascer foi Angelina Maria Joaquina Cabral Prestes Castelo Branco de Assis. Nasci em berço nobre da antiga Lisboa, em Portugal. Era o fatídico ano de 1822, ano em que no Brasil era proclamada independência da república. Oriundo de uma família militar, o crápula que forneceu o sêmen responsável por minha existência não fugiu à regra da família, e foi um General do exército Português. Excelente em serviço para a corte, terrível como chefe de família. O homem que pouco chamei de pai me permitiu o show de horror mais comum dentre os lares atuais: o espancamento de minha mãe diante de meus pequenos olhos azuis, e o autoritarismo tirano para com os escravos e familiares aos quais fornecíamos abrigo. Hoje creio que minha mãe não ter tido mais filhos depois de mim se deu justamente ao fato de ter se tornado estéril, após tanta violência contra seu frágil corpo. Aprendi a me defender, vivendo diariamente com a agressão ao meu redor. Por muitas vezes me interpus contra ele, em favor de minha pobre mãe. Por alguma razão ele não ousava me tocar. Acredito que via em meus olhos algo que existia nele próprio. Alguma coisa maligna que prefiro não explorar. Passei a temer tudo o que me lembrava esse homem, principalmente rodas de poker, e os bêbados em geral. Passei a tolerar muito menos os tiranos, os canalhas, os ditadores. Tornei-me uma pessoa extremamente reclusa, e assustada com facilidade. Esse homem conseguiu levar de mim toda a infância, toda a inocência, toda a benevolência. Tudo o que havia de bom.
Contei com a sorte do canalha ter morrido logo. Quando completei 13 anos, ele contraiu varíola e nos deixou.
Em matéria de carinho, minha progenitora não me permitiu faltar nada, porém com a morte de meu pai, e com a já fragilidade de minha mãe, careci cedo de assumir responsabilidades que superavam minha maturidade. O que chamariam de "homem da casa", foi o posto que assumi dali em diante. Logo após ter me tornado órfão de pai, minha mãe desenvolveu algum tipo de histeria da qual na época não se tinha conhecimento de tratamento adequado. Mais responsabilidades caíram sobre minhas costas, vendo-me obrigada a administrar nossas finanças, escravos e propriedades, e ainda ocultar da nobreza que nos cercava a crise familiar na qual nos encontrávamos. Foi exatamente aos meus 17 anos(e digo exatamente pois eu havia completado esta idade havia apenas uma semana) que me tornei completamente órfão. Minha mãe se foi, levando tudo o que restava de coragem em mim. Os resquícios de meu...progenitor, tornaram-me um tanto quanto pacata, instável, reclusa...
Meu tutor era um homem alvo, jovem e gentil. Ele assumiu responsabilidade sobre minha pessoa e meus bens até que eu me casasse, ou possuísse condições de me adaptar sozinha. Aprendi alguma coisa sobre defesa pessoal com ele, recebendo aulas com armas de fogo, e sobre como escapar delas, eventualmente. Otávio, meu tutor, me acompanhou ao longo de meu progresso artístico, e foi a pessoa que mais me incentivou a evoluí-lo...creio que deva dedicar-me um pouco a contar-lhes sobre meu trabalho, afinal, foi por conta dele que tudo aconteceu.
Ainda infante, gostava de desenhar casas. Meu sonho era que um dia eu pudesse desenhar o maior e mais belo palácio que a humanidade já viu(já tive esta oportunidade, atualmente). Otávio vivia de me dizer que meus devaneios poderiam vir à tona em bom momento, e que eu poderia ser grande com isso. Acontece que na época, eu como projetista do sexo feminino, possivelmente não obteria a credibilidade esperada por nós, e ambos possuíamos a consciência de tal fato. Após a morte de minha mãe, cada vez menos eu tinha tempo para dedicar-me à minha atividade favorita, que era calcular precisamente as medidas e hectares de terrenos que eu visitava sem motivo, e desenvolver alguma construção imaginária que jamais viria a existir naquele local(sempre tive uma certa capacidade superior para isso, sem falsa modéstia). Quando completei 21 anos, já possuía um acervo inacreditável de projetos não realizados, e tinha ainda mais alguns em mente. Otávio e eu refletíamos sobre um meio de meu trabalho ser devidamente reconhecido, o que para nós já começava a parecer impossível. Tentei por algumas vezes um contato amigável com os arquitetos mais modernos e conceituados, sem sucesso.
Sem sucesso...até o dia em que a conheci. A mulher recém chegada à Lisboa era uma pintora conceituada, famosa e louvada pela nata dos artistas da época. Eu decidi que iria até ela, e a tomaria como exemplo para ter meu trabalho reconhecido. Em uma noite chuvosa de 1843, esgueirei-me para fora da cama, sem o conhecimento de Otávio(que no mínimo teria tomado meu ato por demasiado arriscado), cortei o cabelo como se cortava os cabelos masculinos(valendo-me do fato de nunca ter possuído necessariamente um corpo muito feminino, por conta de meus músculos e minha altura), trajei-me com as vestimentas de Otávio, retirei a carruagem da propriedade, e parti em busca de minha musa, que se chamava Angelina, assim como eu.
Tão logo pude identificar sua localização. Um sarau à céu aberto animava a praça, e em meio à luzes, orquestras, bandeiras e carruagens, a vi pela primeira vez. Era tão bela, que parecia ter sido esculpida em meio às flores da primeira primavera. Seus movimentos lembravam uma sinfonia de Ludwig, e sua voz parecia ter sido tecida pelas próprias mãos da eternidade. Paralisei ali, em frente ao palco de onde ela declamava sua poesia. As palavras que ela oferecia naquela noite, guardo comigo até hoje, em meus sonhos.
Aguardei ansiosa que ela descesse de seu merecido pedestal mágico. Os minutos que pareceram eternos, mesmo que coubessem em uma mínima fração de hora, se passaram, e pude finalmente me aproximar.
Corri para perto do palco, valendo-me da cobertura da multidão, e esgueirei-me até o que acreditei ser a carruagem que a aguardava. Fui insana, agredi o cocheiro com o cano de minha arma, e o desacordei, livrando-me em seguida de seu corpo inerte para dentro de outra carruagem que por ali se encontrava. Assumi o lugar do pobre homem, e aguardei-a adentrar seu aconchego.
Difícil descrever o que uma filha de nobres, herdeira de fortunas, sente ao colocar-se em posição de serviçal, mas...eu à serviria. Serviria e agradaria, todos os propósitos dela passariam à ser meus, se ela assim me permitisse. Aquilo era de longe a melhor oportunidade que eu teria na vida. O que não desconfiei nem por um segundo, é que seria a última.
(continua)