Andrezza Iriri (Romance, Cap. 12, Epílogo)
Naquele sábado Juvenal chegou em casa por volta de dez horas da noite. Desolado e abatido pelas ocorrências do dia. A lembrança do olhar vago de Andrezza, tendo que entrar no carro da polícia na frente de sua mãe, de sua tia e das meninas. A cabeça sendo levemente pressionada pela mão do policial. D. Tita aos prantos, sendo confortada pela irmã. Efigênio pretendendo inspirar a confiança de que tudo estaria sob controle com a pronta intervenção da Dra Júlia. E os indefectíveis vizinhos, na sua infalibilidade de espectadores de plantão, deliciando-se com o prato inusitado.
Era preferível não recordar, embora fosse difícil evitar, a melancolia de D. Tita ao recolher, apressada por Efigênio, umas poucas peças de roupa, escova de dentes e outros objetos de uso mais imediato para a filha, antes de entrarem no carro para irem à delegacia indicada pelos policiais.
Mesmo nessas circunstâncias, a ida ao banheiro era infalível. Surpreendia-se ainda com o fato de ter que dar uma mijada sempre que botava o pé em casa. Mesmo que não tivesse aparecido a vontade quando estava na rua. Dessa vez não seria possível deixar de olhar a água escorrendo pelas paredes do vaso. Momento em que pensava num monte de coisas numa fração de segundos. Para depois esquecer-se de tudo, se é que o conseguia, ao se dirigir ao lavatório. E ouvir, como agora, o telefone tocar.
-Juvenal, é Iara. Tudo bem?
-É... Tá tudo legal. E você?, respondeu Juvenal, não disfarçando o desânimo.
-O que houve? Parece cansado.
-Não sei se você já soube. Estive com Efigênio lá em Vila Vazia.
-Soube, sim. O Domício me colocou a par de alguma coisa. A Dra Júlia já foi acionada. Vai ficar tudo bem.
-Assim esperamos. Mas não me esqueci, não. Ia mesmo ligar pra você.
-Nessa hora imaginei que quem devesse ligar fosse eu.
-Obrigado, Iara. É muito chato ver uma moça jovem, com uma filha pequena, ter que passar por tudo isso na frente da mãe e da tia, quase uma outra mãe para ela.
-É verdade. Só que foi o que ela mesma procurou.
-Certo, certo. Mas convém lembrar que nem sempre as causas são fáceis de serem encontradas. E que também não é por isso que devemos ficar imunes ao que a pessoa está passando. Ainda mais quando se trata de alguém com quem tivemos algum grau de proximidade.
-Você gostava dela, Juvenal?
-Gostar é uma palavra ampla. A gradação será ditada pela tirania do nosso coração. Digo tirania porque muitas vezes ele nos obriga a fazer o que não queríamos ou o que não acharíamos melhor.
-Bela resposta. Só poderia partir de alguém que tem realmente a cabeça sobre o pescoço.
-Obrigado, Iara. Você está sendo delicada. Na verdade não disse nada do que você já não soubesse. Nossos anos de existência nos habilitam a ter algum conhecimento.
-Sim, mas nunca saberemos de tudo. Acho que não dá pra discordar.
-Claro, claro. Mas dispomos de algumas ferramentas pra continuar pesquisando. O problema é quando nos cansamos da pesquisa, comentou Juvenal, temendo a possível redundância de um papo que certamente se tornaria estéril, além de não chegar a lugar nenhum
-Você se achava muito próximo dela, pelo menos.
-É verdade. Mas agora as coisas tomam outro rumo. Apesar de a gente não conseguir se afastar do processo assim de uma hora para a outra.
-Entendo. Mas, como disse na última vez em que nos falamos, espero que você possa contar aqui com a amiga. A casa estará aberta para recebê-lo. Cheguei a pensar num jantarzinho aqui com os meninos.
-Novamente agradeço. Mas nesse caso, preferia que fosse num restaurante tranqüilo. Você teria mais tempo pra escutar as minhas lamentações, brincou Juvenal. Até mesmo as que se referissem a Izamara.
-Ótima idéia. Se você não ligar, eu te telefono cobrando. Vai ver só!, pilheriou Iara.
-Falou, querida. Ligo, sim. Quarta ou quinta está bom pra você?
-Qualquer dia. Você sabe que estou livre. E talvez leve e solta, como quer o cantor.
-É por aí, é por aí. Um beijo então, Iara.
-Outro pra você, querido.
Ao finalizar a ligação, Iara estava radiante com o diálogo. Especialmente pela palavra querida, proferida ao final por Juvenal com um carga maior, ela imaginou, do que a que normalmente se confere a uma pessoa amiga. O fato de estar sozinha na sala àquela hora, já que Domício não estava em casa e Rafael já estava dormindo, poderia lhe ter permitido esse tipo de elucubração. De que ela não se dera conta, tal o seu estado de evidente excitação.
A liberação de Andrezza se deu na quinta feira pela manhã. A própria Dra Júlia, tendo Domício a seu lado, levou-a em seu carro até Vila Vazia. Efigênio e Anelice seguiam o carro da advogada.
-Bem, agora, mocinha, é não marcar bobeira. Proceder direitinho como manda o figurino. Fazendo assim às vezes num fica bonito, imagina fazendo o contrário!, disse Dra Júlia, voltando-se para olhar Andrezza no banco de trás. Domício dirigia o veículo.
-Pode deixar, doutora, falou Andrezza, não disfarçando a emoção e a satisfação ao escutar o que ouvia, especialmente por reconhecer em alguns momentos a tentativa da advogada em reproduzir uma linguagem que não estaria compatível com o seu nível de erudição. É um compromisso que assumo não apenas com a Sra, doutora, mas em primeiro lugar comigo e também com a minha família.
-Muito bem. Você deve saber que nos comprometemos muitas vezes muito mais com o que falamos do que com o que escrevemos. Por isso estou gostando de ouvir o que você disse. Acrescento que se houver interesse de sua parte, ainda há a possibilidade de conseguirmos um vaga naquele supermercado, que lhe foi oferecida nem me lembro quando. Anelice tem todas as indicações.
-Ficaria imensamente agradecida. Vou falar com Anelice logo que chegar em casa. Depois de beijar muito a minha Juju.
A chegada a Vila Vazia se deu por volta do meio-dia. Como não podia deixar de ser, foi comemorada com muita alegria. Dessa vez sem a presença dos expectadores infalíveis, alguns vizinhos que sempre se acham de plantão em ocasiões semelhantes. Especialmente quando se trata da desgraça alheia.
Via-se no expressivo sorriso de Andrezza, ainda dentro do carro, que ela saia contente e bem disposta. Mas também, e nem todos sabiam, com a preocupação de continuar contribuindo com a Organização. Objetivando, sobretudo, a libertação mais rápida possível de Inglês e Nozinho. Seria uma forma de atenuar o seu progressivo afastamento do pessoal do crime, que de fato desejava, sem os traumas que normalmente acontecem quando alguém se decide pela escolha de um novo caminho. A idéia era continuar com a contribuição que oferecia, sem prejuízo do que estivesse ao seu alcance no sentido de ajudar os companheiros encarcerados, mas afastando-se definitivamente das ações que tanto afligiam seus familiares. O que no fundo era uma necessidade de que nunca conseguira livrar-se inteiramente e que reconhecia com tendo sido gerada a partir dos tempos de colégio, em que era tida pelos professores com uma aluna inteligente. Ela que já fora assediada por um dos chefões do Comando. Que não se conformava em ver aquele mulherão sem se submeter a homem nenhum. Mas que tivera a proteção de Guilherme P. Passos, última palavra com poder final de decisão na Organização, que defendia a liberdade e a autonomia da mulher do crime, quanto à escolha do homem com quem quisesse viver. Preservada a condição de somente a ele pertencer.
D. Tita e D. Mocinha protegiam-se do sol forte com a sombrinha colorida. Que foi deixada de lado num ponto qualquer da calçada quando Andrezza saiu do luxuoso Pólo Classic da Dra. Júlia. Para o abraço demorado de sua mãe, que não se importava em conter as lágrimas que produzia. D. Mocinha, um bom tempo depois, quando a teve liberada dos braços da mãe, abraçou também afetuosamente a sobrinha, sob o sol forte do meio dia. Na varanda, permaneciam um pouco surpresas Angélica e Juliana, provavelmente entendendo tudo, embora sem terem talvez uma idéia mais clara do que acontecia. Estavam ladeadas por uma senhora mulata, alta e forte, de cabelos grisalhos e nariz afilado – Josefina Franconi, amiga de longa data de D. Mocinha. Seus maridos, ambos falecidos, tinham sido colegas na fábrica de tecidos Nova Europa, no bairro de Bel Ambrósio, a quinze minutos de trem da Aldeia. No tempo em que este era um país de Primeiro Mundo. Em que, nesta cidade, as pessoas acertavam seus relógios pelo horário do bonde. Agora levava-se 45 minutos de Bel Ambrósio a Aldeia. E não havia mais bonde ou trem. Apenas os ônibus. Que, a despeito de toda modernidade, acabaram aumentando a distância. Ou, na realidade, o tempo para percorrê-la.
Efigênio e Anelice chegaram logo em seguida, quando Andrezza estreitava em seus braços o corpinho rechonchudo de Juliana, sem conter as lágrimas, tal como fizera sua mãe ao lhe abraçar.
Angélica correu para o abraço da mãe, percebendo que se tratava de um momento de alegria, ao vê-la saindo do carro, e que deveria estar nos braços da mãe, tal como Juliana nos braços da sua. O que permitiu que na varanda Andrezza recebesse o afetuoso abraço de D. Josefina, depois de ter colocado com carinho a filha no chão.
Todos entraram então na casa, cuja sala tornou-se pequena para acolher todo mundo.
Dra Júlia e Domício saíram logo, após um rápido cafezinho oferecido por D. Tita. Fizeram antes algumas recomendações a Andrezza, relativas a uns papéis que ela deveria assinar depois e documentos que deveria providenciar. Os dois assentos que usavam, no único sofá da sala, foram ocupados por D. Mocinha e D. Josefina, ficando Anelice com uma das cadeiras de madeira da rústica mesa de jantar. Andrezza preferiu permanecer de pé, assim como Efigênio, não se importando em ser considerada como o centro das atenções. De alguma forma ela o merecia. D. Tita ficava da sala pra cozinha, procurando servir café e água a todos.
-Juvenal já foi avisado, anunciou de repente Efigênio. Daqui a pouco ele estará por aí.
-Por que foram incomodar o homem, meu Deus?, indagou timidamente Andrezza. Ele tem seus afazeres.
-Ele tem tempo. É funcionário público, tem boa situação, não tem filhos..., explicou Efigênio.
-Mas isso não nos dá o direito de abusarmos da bondade e da consideração dele, protestou Andrezza.
-Ele mora sozinho, Efigênio?, quis saber D. Mocinha.
-Mora, sim. Minha ex-cunhada o deixou de repente.
-Quem faz a limpeza da casa dele?, inquiriu de novo a irmã de D. Tita.
-Iara e eu nunca soubemos. Ou é ele mesmo ou a casa fica meio suja. Parece que não tem empregada.
-Estou perguntando por que poderia ser uma oportunidade para Josefina. Que não está fazendo nada no momento. Não é, Zéfa?, que somente era chamada dessa forma pela amiga.
-É mesmo, interveio Andrezza. Eu mesma vou falar com ele quando chegar. É também uma oportunidade que ele terá de não ficar tão sozinho.
-O homem nem chegou e vocês já estão querendo que eu trabalhe na casa dele!, observou D. Josefina de forma elegante.
-Daqui a pouco ele taí, repetiu Efigênio.
O jantar acontecera num lugar tranqüilo, numa rua estreita, com piso em paralelepípedos, num bairro boêmio da cidade. As alvenarias em tijolinho aparente, sustentando alguns quadros com temática surrealista. A iluminação se dava de forma indireta, através de lâmpadas fluorescentes posicionadas junto ao teto, ao longo dos cantos do salão, em ressaltos construídos especialmente para esse fim. Um profissional habilidoso tratava o piano com carinho. E disso Juvenal se orgulhava, por saber reconhecer quando uma boa qualidade de música estava sendo produzida.
Entrara ali imaginando que estaria comemorando a libertação de Andrezza, que se dera no mesmo dia, pela manhã. O que estratégica ou cautelosamente deveria ser pouco comentado à mesa com Iara. Por razões óbvias, ele já havia percebido.
De qualquer forma, tinha sido do jeito que ele queria. O requinte e a tranqüilidade do ambiente levando-o inclusive a se desvencilhar das emoções sentidas ao início da tarde naquela casinha simples de Vila Vazia. E levando-o também, não soube bem nem como ou porque, talvez pela ordem natural das coisas, ao quarto de motel onde agora se encontrava com a ex-mulher de Efigênio.
O orgasmo tinha sido bom, melhor que satisfatório. Classificaria a foda como boa, embora nada tivesse havido de especial. Não podendo ser desconsiderado o fato de a ereção ter se dado num tempo relativamente maior do que normalmente acontecia. Talvez fosse devido à reprodução muito próxima das qualidades e características de Izamara. São parecidas em tudo. Apesar do corpo reconhecidamente luxurioso de Iara, assim como o de sua ex-mulher.
O fato é que o relacionamento não emplacou. Houve mais uns três encontros, dos quais dois íntimos, que se deram ao longo de dois meses. Mas o affair não evoluiu. Até pela pouca freqüência com que se encontraram num espaço razoável de tempo.
Fosse pelo pragmatismo de Iara, que, apesar de seus dotes inegavelmente femininos, tratava das coisas da vida com a mesma objetividade dos homens, fosse pela abordagem quimérica ou metafísica da existência, que levava Juvenal a se perguntar porque certos cachorros tinham o mesmo conforto de algumas crianças menores, ao passo que outros perambulavam pela estrada numa noite fria e chuvosa, a verdade é que a relação entre os dois não chegou nem a esfriar, porque na realidade não tinha esquentado. E Iara, não tivesse a mulher o poder de percepção que tem o radar nos oceanos, foi a primeira a perceber que eles não teriam chance de caminhar juntos. Juvenal também não ficou muito atrás dela nesse reconhecimento. Basicamente por não poder se livrar da contingência de achar que ela reunia quase tudo que havia na irmã. Até mesmo certos traços da personalidade. Não posso ficar com a cópia fiel de minha ex-mulher.
E foi assim que, ao final de seis meses, depois da metade do ano, Juvenal chegava em casa esbaforido, tendo saído pela porta do elevador sem esperar que ela se abrisse inteiramente. Dirigiu-se imediatamente à mesinha de centro da sala, sobre a qual se apoiava a TV, que ficava encostada à parede ao lado da porta por estar próxima à tomada. Sob a mesinha, em cima de uma razoável pilha de jornais atrasados, havia esquecido um pacote contendo R$ 21.000,00, em notas de R$ 50,00, sem fita adesiva, elástico ou coisas do tipo. Tratava-se de algo próximo do triplo do que ganhava. Era o oferecimento de uma extensa cadeia de lojas de marca a ele e aos dois fiscais que atuavam, com ele, na repressão ao número sempre crescente de vendedores ambulantes em atividade nas calçadas em frente aos estabelecimentos. À coordenação da fiscalização era oferecido um pouco mais.
D. Josefina já havia saído, como sempre fazia ao terminar o seu serviço de faxina. Que agora, há quase oito meses no apartamento de Juvenal, passara à freqüência de duas vezes por semana.
O funcionário público suspirou fundo, ao tatear sob a mesinha e encontrar o pacote com o dinheiro. Mais aliviado ficou ainda ao perceber que o pacote encontrava-se como havia sido deixado. O que não eliminava a necessidade de uma rápida conferência. Apenas para demonstrar o que já sabia: a extrema confiança que podia ter em D. Josefina. Como muitas vezes ele tivera ocasião de comprovar. Embora não dessa forma, ou com alguma coisa representando um valor dessa ordem.
Olhando o dinheiro, enquanto conferia o valor, pensava em como seria se não tivesse o que ele preferia chamar de complementação salarial. Vou poder comprar com folga a bicicleta e o computador da Ju, que ele resolvera apadrinhar. Muito embora Andrezza lhe tivesse oferecido o garoto que vinha a caminho. Já que se achava grávida de Marcelo Vespázio, um analista de sistemas da cadeia de supermercados em que ela agora trabalhava.
Pelo menos agora a casa andava limpinha. Não havia mais poeira nem nas capas de seus discos de vinil. O banheiro, sempre com cheiro de essência de sáuna, não podia mais contar com seus olhos perscrutando o que dizia a água a escorrer pelas paredes do vaso sanitário. No dia em que se deu conta disso, correu ao banheiro, acionou a descarga, mas não conseguiu ficar olhando a água escorrer pelo vaso. Voltou para a sala rapidamente para encontrá-la limpinha e com um cheiro de um outro tipo de essência que só D. Josefina sabia onde adquirir.
Gostaria de que D. Josefina estivesse ali para contar as histórias dos netos que não teve, em virtude da morte precoce de sua filha aos 21 anos num acidente de carro. Mas, tudo bem. Ela estará aqui amanhã. Sabia que era tratado como um filho por essa mulata alta, de 62 anos e ainda bonita, que evidentemente deveria respeitar como se fosse sua mãe. Sabia também que dentro de pouco tempo ela teria de vir todos os dias da semana. Para favorecer a possibilidade de poderem se completar na sua solidão.
E também para fazê-lo ignorar, eventualmente, a necessidade do encontro que teria com Solange. Como, por exemplo, o do dia seguinte. Com essa putinha de 19 anos, toda certinha de corpo e bem sorridente, que terminava em repetir ATECUBANOS toda vez que ele atingia a ereção para a única foda que conseguia. E se lembrava, com certa irritação, da pouca criatividade de Solange, se comparada com a versatilidade incrível de Andrezza. Em que pese a maior periculosidade desta, na época em que a conhecera, apesar de não ter sido encontrada, como a primeira, no calçadão da avenida da praia. Mas sim num ambiente quase sem ar (AIR, em Inglês), como o daquele porão. Andrezza, que nunca ia além daquele riso zombeteiro. Não RIA à toa. Ele se exercitava, também sem muita criatividade, na leitura de trás pra frente. Talvez por ter se lembrado da canção Love’s in the AIR. E de que Andrezza poderia ter sido o amor de sua vida. Mesmo que naquele dia quase não houvesse ar no porão. Nem a certeza de que o amor existisse. Ou não.