VISITANTES DO INFERNO

A mulher toda sorridente saiu da casa levando uma garota pela mão, provavelmente sua filha. Seus bem escovados cabelos longos descendo-lhe pelas costas e flancos denotavam o quanto era vaidosa e como apreciava estar bem vestida e elegante, apesar de transparecer a simplicidade de sua condição financeira. Falava algo à menina e ambas riam. Distraída na simplicidade de sua condição social comum, não deu a menor atenção ao homem do outro lado da rua que parecia estar consertando algum objeto não identificado, pequeno, de forma retangular, e completava a tarefa com ar enfadado de quem se mostra confuso e apatetado pelo inesperado defeito no artefato em suas mãos. Também não escutou o ruído característico das máquinas fotográficas em ação, duas, três, cinco vezes à medida que ambas seguiam seu destino caminhando pelas calçadas da rua.

Satisfeito com as fotos tiradas e ante a certeza absoluta de não ter despertado qualquer suspeita nem nos transeuntes nem na vizinhança ocupada em seus afazeres, o sujeito prestou rápida e sutil atenção à roupa usada pela mulher e pela garotinha, detalhe que teriam suma importância e impacto nos dias subsequentes. A calça tipo jeans azul clara desbotada se ajustava perfeitamente ao corpo da jovem, de idade oscilando entre os vinte e cinco ou vinte e oito anos, e a regata de tonalidade cinza clara enlaçava seu busto como se tivesse sido moldada e costurada no dorso dela. A indumentária se completava com a rasteira básica escura e brincos de bijuteria em forma de estrela. Tinha os cabelos longos e ondulados, negros como a noite, naquele dia soltos à brisa. A criança, talvez contando seis a oito anos, estava vestindo short jeans branco-gelo e uma babylook, nos pés sandálias rosas exalando odor morango, nos cabelos puxados ao da mãe marias-chiquinhas borboletas. Perfeito e inesquecível, tudo clicado e gravado nas fotos.

As peças do quebra-cabeças se movimentavam nos encaixes adequados a pouco e pouco, e o processo continuaria desse modo paulatino até chegar o momento decisivo da ação. Sem erros, pois seriam imperdoáveis, e obviamente desprovido de falhas, já que eles não teriam a menor fração de tempo para refazer ou desfazer os nós e as pontas viradas dos pregos. Porque até aquele instante, felizmente, tudo corria conforme o longamente planejado pelos cérebros pensantes da grande operação. E embora não mais que apenas incipiente gota no oceano dos preparativos em fase de execução, as fotos teriam seu comprovado valor no dia, naquele dia que se aproximava, tanto quanto os demais movimentos no complicado jogo de xadrez já iniciado. O endereço, a cor da casa, o bairro, tudo combinava com os dados que lhe foram entregues anteriormente. Faltava pouco, as peças estava se juntando e logo o mosaico atingiria a perfeita conclusão.

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Naquele mesmo dia, por volta das dezoito horas, sentados em bancos distantes um do outro, na praça central da cidade, como se não se conhecessem, dois homens esperavam tranquilos. O trabalho a ser executado por ambos exigia paciência, cuidado, parcimônia e discrição. Ninguém diria que os dois estavam ali por alguma razão especial, tamanho o ar descontraído que deixavam transparecer. Seriam isso sim confundidos com os cidadãos comuns do local, indo e vindo, sentados ou parados ao longo da praça.

O prédio sorrateiramente observados por eles se agitava no interior com o vai-e-vem de quantos ali trabalhavam nas diversas seções dos seus três andares. As luzes ainda permaneciam acesas nos três pavimentos, apesar da noite já ter substituído o entardecer e ser hora do merecido descanso. Viam-se nos quadrados das janelas envidraçadas homens e mulheres sorrindo, conversando,trancando gavetas, desligando computadores, afrouxando gravatas. E logo as lâmpadas começaram a ser apagadas nas diversas alas vislumbradas.

Edson, o primeiro esperado a sair do prédio depois de também deixar em ordem seu ambiente de trabalho para o dia seguinte, parecia exausto, e tudo que desejava era chegar logo a sua casa, tomar um banho, jantar e ficar com a família. Quando ele desceu as escadas sobraçando uma pasta preta, cumprimentou o guarda da portaria com um sorriso desprovido de graça e saiu aspirando a brisa noturna, um dos dois homens sentados na praça levantou-se procurando não dar na vista e, de longe, o acompanhou às proximidades do estacionamento. O carro de Edson, um escort bege, estava estacionado a menos de vinte metros da motocicleta do sujeito que o acompanha a pé, assim, aquele chegou primeiro e acionou o controle remoto, ouvindo-se o ruído característico de fechaduras destravando. Antes de colocar a chave na ignição, Edson jogou a pasta preta sobre o banco ao lado e olhou-se no espelho. As rugas não desmentiam sua idade, percebeu, mas era o trabalho estafante que mais lhe embranquecia os cabelos. Ao tempo em que ele se olhava, o sujeito alcançava a moto e esperava mexendo num e noutro ponto dela para despistar. Ambos ligaram seus veículos quase ao mesmo tempo, mas só alguns segundos após Edson ter saído o homem o seguiu à discreta distância.

Jânio foi o último a desligar o computador e a impressora, apagar a luz da sala e suspirar aliviado ao se ver livre daquele dia extenuante.

Todos precisavam ser considerados figuras-chave do plano, cada qual no seu devido lugar no palco da peça que se ensaiava, portanto nada e ninguém poderia ser desprezado no conjunto, nem uma vírgula, um ponto ou um traço. A imperfeição se mostra quando ficamos indiferentes às consideradas insignificâncias, aos pontos fracos, à base, ao alicerce, às pedras que compõem o todo da construção em andamento. Por conseguinte, os guardas da portaria mereciam tanta ou mais atenção e cuidado quanto os demais. Aquele principalmente, sempre abrindo e fechando a porta de acesso ao estabelecimento, atento, cuidadoso, fatos esses de pronto observados e anotados.

UM MÊS ANTES - A reunião

Os cinco homens de aspecto comum, sem nada de especial que chamasse a atenção de alguém chegaram à pequena cidade do interior discretamente e em horários e carros separados. Traziam pouca bagagem no porta-malas, apenas uma sacola simples e três enormes caixas retangulares empacotadas com papel de presente e adornadas, cada uma delas, com duas tulipas recém colhidas. Usando óculos escuros, boné para proteger do sol, camisas mangas curtas, calças jeans e tênis, seriam decerto advogados, comerciantes ou mesmo turistas de passagem pela cidade dispostos a descansar da viagem por alguns dias antes de prosseguir.

O primeiro chegou por volta das oito horas de ensolarada manhã, mas não reparou na temperatura nem deu atenção às poucas pessoas encontradas em sua passagem para o hotel. Parou no estacionamento privativo do hotel o Gol que dirigia, desceu, abriu o porta-malas de onde retirou a sacola e a caixa retangular parecendo algo que comprara em algum lugar para presentear e registrou-se com o nome falso de Carlos Henrique Coimbra

Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 05/06/2011
Reeditado em 06/08/2011
Código do texto: T3015959
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