Andrezza Iriri (Romance, Cap. IX)
Banzé às vezes trazia Juliana da escola. A menina gostava porque, além de seu jeito engraçado de falar fazendo caretas e das mentiras que inventava, Banzé sempre lhe trazia balas de mel ou de chocolate. Que na verdade eram compradas por sua mãe, sem que ela soubesse.
Banzé era um menino magro, mulato de cabelos lisos, treze anos. D. Tita o admirava por seu comportamento diante dos adultos. Sempre calado e respeitoso. Mas essa admiração cessou a partir do momento em que passou a ver o menino em companhia de Pedro Crivo e seus principais parceiros, Inglês e Nozinho. Passou a evitar que Banzé fosse buscar Juliana na escola. O que não foi possível nesta segunda-feira em que teve que ir à casa de Anelice, onde D. Mocinha a esperava para lhe emprestar dinheiro para os presentinhos que iria dar no Natal. Lembrou-se, entretanto, de que Andrezza não via mal algum em deixar Juliana aos cuidados de Banzé, em quem tinha extrema confiança, no trajeto de dez minutos a pé da escola à casa.
D. Tita só não sabia que sua filha não pôde trazer Juliana porque, no momento em que as duas irmãs se encontravam na casa de Anelice, Andrezza reunia-se com Pedro Crivo, Inglês e Nozinho nos fundos do quintal de sua casa.
-Somila já levantou toda a parada. A casa do dentista parece mais uma loja de shopping, aí. Dois fax, três TV’s, sendo uma de plasma, telefone sem-fio em tudo que é quarto, uns cinco celulares, uns quatro computadores, com estabilizadores, caixinhas de som, impressoras e o caralho. Quer mais ou tá bom?
-Valeu, Drizza. Legal. Mas e a grana?, perguntou Pedro Crivo. Deu pra Mila saber onde é a maloca?
-Jóias no quarto. Isso é certo. A brancona tem dois potes cheios dentro do armário. O papel a Mila acha que pode estar num cofre atrás do plasma na sala. Maior barato. A TV fica na parede, parecendo um quadro. 29 polegadas, a Mila falou. Na certa a grana tá ali atrás.
-E si num tivé?, indagou Inglês, preferindo olhar para Pedro Crivo.
-Aí tem que procurar no quarto, porra!, respondeu prontamente Andrezza, não disfarçando a irritação. Começando pelo quarto do casal, esperto. Num vai começá pelo dos filhos deles. Nem pelo da empregada, bundão.
Todos sorriram, com exceção de Inglês, que se mantinha calmo e sisudo do alto dos seus 1,80m. Sempre com a coluna erecta, aquele cabelo sarará e a pele meio amarelada, que lhe valeram o apelido de que se comprazia.
-São quatro figuras na casa? Eles têm dois filhos só?, quis saber Pedro Crivo.
-Isso aí. Dois coroas e um casal de filhos. Estudam à tarde. Estão em casa às cinco e meia ou seis horas. O patrão fica o dia inteiro na rua. Sai por volta de nove e meia e não chega antes das oito.
-E a coroa?, perguntou de novo Pedro Crivo.
-Disse pra Somila que sai à tarde, depois do almoço. Faz hidroginástica, fisioterapia e outras merdas aí. Nos dias de faxina, sai depois da Somila.
-Você disse que tinha um plano, provocou Inglês.
-Tenho sim, até porque a cabeça de vocês é só pra separar orelha. É o seguinte: vai ser numa quinta-feira. Você, Nozinho e PC chegam com roupas da PlanTel logo depois de a Somila sair. Tão reparando as linhas telefônicas do bairro. Banzé tá do outro lado da rua soltando pipa. Se perguntarem alguma coisa, ele tá preparado pra dizer que foi cortado numa rua lá de cima e que veio atrás do seu pião. Voou cheio de linha.
-Isso aí, interveio Inglês. Porque um moleque soltando pipa naquela rua de bacana, malandro pode achar que é caô!
-Valeu, Inglês. Agora você marcou dez! Por isso que o Banzé tem de estar preparado. Sem bem que todo mundo agora solta pipa em tudo que é lugar. Até no calçadão da praia. E no cair da tardinha. Nunca vi disso.
-E qual é o horário da parada?, devolveu Inglês.
-Quatro, quatro e quinze da tarde. O casal de filhos tá ainda na escola e o dentista só chega à noitinha. Cada um, ou dois pelo menos, com alicate e chave de fenda na mão e um martelo pequeno no bolso do macacão. Cada um com seu berro malocado junto com o rádio também no macacão da PlanTel.
-Você já tá co’s macacão?, perguntou Pedro Crivo.
-Tem dois lá em casa. Só falta o do Nozinho, esse crioulo que ainda não cresceu. Deus marcou ele com essa altura pra num perdê de vista. Mas o dele já tá prometido pelo meu contacto.
-Tudo bem. Continua aí, Drizza.
-Tem que arranjar uma escada comprida. Nozinho sobe na escada no poste que tem em frente. Todo mundo esperando a coroa sair. Banzé tá do outro lado da rua olhando pra tudo que é lado. Pintando sujeira, ele dá o sinal pra mim. Se a coroa não aparecer, fica pra outra semana.
-Pra outra semana? Tudo de novo?, protestou Inglês.
-É melhor ir na boa, bundão. Não se deve ir ao fundo logo no primeiro mergulho. Mas fica frio, ela deve sair. Porque quinta-feira é dia certo de hidro. Quando ela aparecer, é só dar o bote e entrar com ela. Tô cum carro na esquina. Se os filhos chegarem mais cedo, ou mesmo o coroa, Banzé faz o sinal e pelo rádio a gente se fala. Se pintar sujeira mesmo, todo mundo mete o pé. A saída é pela Rua Cálida Escorel, atrás da mansão. Onde o muro é mais baixo. Vou passar batida por ali. Quem estiver na fita eu carrego.
-O Banzé num carecia de tá aqui não?, perguntou Nozinho.
-Carecia o caceta, crioulo. Já falei com ele umas dez vezes. Sabe tudo de cor. Ele tá trazendo a Ju da escola. Mas num acho que tem muita chance de dar errado. É mole porque a coroa fica sozinha nessa hora em casa, depois que a Mila vai embora. Mas se ela não sair, vou lembrar, a gente desarma o circo e espera outro dia. Se sujar mesmo, num tem que fazer a coroa de escudo ou refém. Quanto mais merda, pior. Num vamo esquecer que ninguém tem muita bronca em cima. Aí fica mais fácil se livrar da tranca. Um bom advogado e tudo certo, valeu?
Naquela mesma segunda-feira, Efigênio chegou em Vila Vazia por volta de sete horas. Observou a quietude das ruas que compunham o loteamento, um dos poucos com todas as vias em paralelepípedos, em que alugara a casa para Anelice. Quase ninguém andando pelas calçadas, apesar de não ser muito tarde, assim como pela rua de terra por onde se chegava ao loteamento. A exceção mesmo eram algumas biroscas, que tinha visto na Avenida Santos Cardoso, com aquela luz tênue e seus freqüentadores habituais.
Angélica parecia estar aguardando-o, passeando com a sua bicicleta de rodinhas na calçada estreita na frente da casa.
-Oi, tio, disse a menina com certa timidez, detendo-se quase na beira do meio-fio, depois que Efigênio saltou do carro. Mamãe tá fazendo o jantar.
-Olá, menina bonita, saudou-a Efigênio, inclinando-se para beijá-la no rosto. Tá gostando da bicicletinha?
-Muito maneira. Acho que amanhã já tiro as rodinhas.
-É, mas tenha muito cuidado. E nunca ande muito perto do meio-fio. Pode ser perigoso.
Anelice os observava da varanda. Tinha sido atraída pelo barulho do carro. O sorriso contemplativo acompanhou a efusão do cumprimento:
-Oi, Geninho. Parece que você sentiu o cheiro da comida.
-Desde lá da Santos Cardoso, brincou Efigênio, contendo ainda a namorada nos braços após o beijo na boca.
-Não vai colocar o carro na garagem? Será que vou dormir sozinha de novo?, perguntou Anelice entre sorrisos.
-É que não resisti à tentação de beijar a menina, passar a mão em seus cabelos anelados, antes de fazer o mesmo com os da mãe.
-Puxa, eu não poderia ter ouvido coisa melhor nesse final de dia. Coisa boa devia durar pra sempre. Vamos entrar, querido.
Feijão manteiga com arroz branquinho. Vagem ensopada com carne moída, acompanhada de batata baroa cozida. Salada de alface, tomate, beterraba, chicória e agrião tinha sido o prato inicial. Efigênio preocupou-se em não passar mal durante à noite, embora isso não o impedisse de ter comido bastante.
Às nove horas Angélica já estava dormindo, o carro encontrava-se na garagem e os dois conversavam na sala ao som baixinho de uns boleros antigos, uma preferência de Anelice.
-Como foi o dia, querido? Tudo normal? Tudo bem em casa?, arriscou Anelice, com certo receio de não ter sido oportuna a última pergunta.
-Tudo jóia, graças a Deus. Foi legal porque estive com um cara bacana que não via há algum tempo.
-Ah, é? Colega de trabalho?
-Não. Na verdade um quase parente. Ele vem a ser o ex-marido da irmã de Iara.
-Um ex-concunhado, então.
-É isso aí. Juvenal é o nome dele.
-Você nunca me falou dele. De Izamara, sim. Embora não me lembre de ter ouvido se ela era casada.
-As coisas vêm com o tempo, Lice.
-É isso aí. Eu sempre querendo ser meio antecipada.
-Tudo bem. Mas o Juvenal veio até meu escritório para desabafar, coitado. E o pior é que acho que a história tem muito a ver com a gente.
Tudo dera errado naquela quinta-feira. Laura Cristina, mulher do renomado dentista Percival Amarante, primo do Ministro do Interior, demorara-se a sair de casa para a sua aula de hidroginástica no Iate Clube, depois de despachada a faxineira. Isso não estava nos planos de Pedro Crivo e seus dois assistentes. Assim como deixara Banzé soltando pipa por mais tempo. A mulher do dentista estendera-se no telefone com a esposa do ministro, que chegara naquela manhã de Miami. O que impediu que Tércio Amarente, filho mais novo do dentista, deixasse na secretária o recado avisando que chegaria mais tarde em casa devido a um trabalho de grupo na faculdade. Só que, após deixar a mensagem que queria no celular da mãe, Tércio resolveu fazer nova ligação, depois de algum tempo, para o telefone fixo por achar estranho que sua mãe ainda estivesse em casa. Surpreendeu-se ao ouvir a voz da mãe, e muito mais com a forma pouco habitual com que ela o atendia. Na verdade ela o fazia sob a mira da pistola de Pedro Crivo que, com seus dois assistentes, após Somila ter saído, resolvera não esperar tanto tempo pelo assalto à residência. Valendo-se os três, sem despertar atenção, da escada que trouxeram com a logomarca da PlanTel. Enquanto Laura Cristina pensava que ia desmaiar sob a mira da arma de Pedro Crivo, Inglês e Nozinho, depois de terem se apoderado de grande soma em dinheiro no local indicado pela dona da casa, apressavam-se em recolher jóias, eletrodomésticos e outros objetos de valor para colocá-los dentro da luxuosa pick-up estacionada na garagem e que seria utilizada pela dona da casa quando saísse.
Com tantas histórias de assaltos a residências pela cidade, com preferência pelas mansões do tipo daquela em que residia, Tércio não teve dúvidas em acionar a polícia. Se fosse um alarme falso, seu pai conversaria com o Ministro e tudo não passaria de um mal-entendido.
Em cinco minutos a mansão foi cercada, sem o estardalhaço de veículos oficiais se aproximando com as sirenes ligadas. Três carros com chapas frias entraram pela rua da mansão dos Amarentes, quase que ao mesmo tempo, por dois acessos diferentes, não permitindo de imediato que Banzé notasse que as viaturas traziam policiais. O único menino soltando pipa naquela rua arborizada e de belas mansões, apesar de não contar com segurança particular, foi logo neutralizado. Três integrantes da equipe de elite da força policial do Estado, valendo-se também da escada da companhia telefônica que fora deixada junto ao poste em frente à casa, pularam o muro e se distribuíram em pontos estratégicos, próximos à espaçosa varanda por onde se dava o principal acesso à residência. Que não contava com nenhum tipo de alarme, conforme Somila já havia informado. Andrezza, que aguardava dentro do carro numa esquina a 80 metros do local, não estava gostando do tempo decorrido desde a saída de Somila até aquele momento. A faxineira já tinha passado pelo outro lado da calçada na direção do ponto do ônibus. Também não tinha havido qualquer notícia de Banzé pelo rádio. Sujou. Vai ver a porra da coroa não saiu. Dando-se conta finalmente do estranho sumiço do garoto, Andrezza movimentou-se na direção da Rua Cálida Escorel, conforme o que haviam previamente combinado, disposta a esperar não mais que dez segundos por alguém que pulasse o muro dos fundos da casa dos Amarantes. Caso eles tivessem decidido prosseguir com o plano, contrariando o que ela havia estabelecido, se houvesse um imprevisto desse tipo.
O último policial a conseguir transpor o muro foi percebido por Pedro Crivo pelo janelão da varanda, apesar da reduzida nitidez devido a presença de algumas árvores. Surpreendidos, confusos e em pânico, Inglês e Nozinho, logo avisados pelo líder, procuraram com ele os fundos da casa, por onde tentariam alcançar a Rua Cálida Escorel. Pedro Crivo ainda mantinha Laura Cristina sob a mira da sua pistola. A porta dos fundos, ou da cozinha, se achava trancada, informação não fornecida por Somila, porque essa providência só era tomada depois que ela saía. Ao perceberem que não teriam saída pelos fundos e temendo que não houvesse tempo para encontrarem as chaves, que Laura Cristina, num estado de extremo nervosismo, mesmo depois de umas coronhadas, mostrava não ter condições emocionais de saber onde se achavam, os três resolveram sair pela varanda. Mantendo Laura Cristina à frente e movimentando-se cautelosamente, Pedro Crivo não viu ninguém no jardim em frente à varanda, ao adiantar-se por menos de um metro da porta que acabara de transpor. Inglês e Nozinho, atrás do líder do grupo e de Laura à sua frente, ainda permaneciam na sala quando ouviram o primeiro disparo, seguido do baque surdo de dois corpos no chão. Alarmados por mais dois tiros na direção da porta que pretendiam transpor, recuaram para o interior do imóvel, não percebendo que os outros dois policiais o haviam invadido por um dos janelões laterais da sala. Foram rendidos pelas costas.
-Vamos largando as armas! Sem gracinha, sem gracinha! Um já era. Perdeu, mêirmão, perdeu!
Na varanda, presa de um choro convulsivo e incontrolável, Laura Cristina era ajudada a se erguer por Marcos Avelar, policial com mais de quinze anos de serviço e várias vezes campeão de tiro em competições no Estado. Nas largas placas de cor mostarda do piso cerâmico, em meio a uma poça de sangue que parecia ter chegado ao limite da sua expansão, via-se a cabeça de Pedro Crivo, atingida por um único disparo cuja bala penetrara-lhe pelo lado esquerdo da região da têmpora.
Depois de ficar esperando dentro do carro por cerca de dez segundos na Rua Cálida Escorel, Andrezza levou mais cinco segundos, após o primeiro disparo de Marcos Avelar, para se evadir com rapidez. Sabia que seria arriscado tentar se afastar da cidade naquele carro para se encontrar com Somila no local combinado. Podia haver blitzes durante o trajeto. Decidiu abandonar o carro na zona norte da cidade, a vinte minutos dali, e tomar um ônibus de volta à zona sul. Ficaria uns dias na casa de Aurenice, irmã de seu pai, solteirona convicta, que sempre fizera questão de tê-la como hóspede. O apartamento de sua tia ficava a menos de um quilometro da mansão dos Amarantes, o que poderia confundir a polícia quanto ao seu paradeiro. O único problema seria administrar as carências de sua tia, que poderiam ainda exigir da sobrinha a mesma competência que teve para supri-las quando tinha quinze anos.