Andrezza Iriri (Romance, Cap. VIII)
O final de novembro trazia a expectativa das festas de Natal. Mas para Iara e Efigênio trazia também a definição da época escolhida para a separação do casal. Uma decisão amadurecida ao longo do tempo, ainda que de forma velada e raramente discutida pelos dois. Tanto que, quando se deu a aproximação do fim do ano, apresentou-se de forma natural a opção pelo final do mês de novembro para a separação, de modo a que não houvesse maiores constrangimentos em função das festas natalinas. Apesar de não haver mais crianças em casa.
-A pensão alimentícia relativa ao Rafael está garantida, enquanto ele for menor. Mas igual valor será destinado ao Domício, enquanto ele não estiver trabalhando. A casa, com tudo o que estiver dentro, e o carro ficam com você. Por outro lado, você vai assumir as contas de luz, gás, água, telefone, etc. Se houver necessidade de ajuda quanto à manutenção do imóvel, podemos conversar. Se quiser, você pode voltar a dar aulas. Mas acho que nem vai ser preciso.
-Isso quem vai decidir sou eu. Agradeço a preocupação.
-Claro, sem dúvida. Estava apenas comentando.
-Estou gostando de ver a sua resolução e tranqüilidade, pra não dizer a disposição com que você vem tratando do assunto.
-Bem, Iara, trata-se da culminância de uma situação que a cada dia ficava mais clara. Acho que os garotos foram até muito discretos. Nunca fizeram comentários sobre o problema. Mas é evidente que eles devem ter percebido.
-É verdade. Vai ser bom pra nós dois. Você se libera e eu também. O que não quer dizer que o afastamento deva ser definitivo, ponderou Iara.
-Claro que não. Quero ter a liberdade de poder vir aqui, ver meus filhos e você, sempre que me for permitido.
-Tudo bem. Quanto a mim, quem sabe chegue o dia em que eu possa conhecer sua nova mulher?
-Quem sabe? Mas não vamos colocar a carroça na frente dos burros. Em todo o caso, será uma decisão que também caberá a você. Só que na época oportuna, espero.
Combinaram finalmente os dois que continuariam mantendo a circunstância de permanecerem vivendo sob o mesmo teto, pelo menos até o final do ano. A separação mesmo, incluindo-se as providências de caráter judicial, se daria no ano seguinte. No entanto, o importante era já terem chegado a uma decisão.
Durante o trajeto ao escritório naquela segunda-feira, onde chegaria, como de hábito, por volta das 7h da manhã, Efigênio já sabia que um homem o aguardava. A pessoa não quisera se identificar, segundo a recepcionista. Seria um advogado, a mando de sua mulher? Mas tudo terminara tão bem no fim-de-semana! Tinham inclusive combinado que conversariam com os filhos durante um jantar em um bom restaurante na quarta ou na quinta! Ou será que é alguma coisa da parte de Anelice?
As dúvidas foram desfeitas quando Efigênio se aproximou de Mariana na recepção.
-Bom dia, Mariana. Tudo bem?, cumprimentou Efigênio a recepcionista, fingindo não notar o homem que aparentemente folheava uma revista técnica, sentado na única poltrona da saleta. Percebera-lhe apenas o boné.
-Bom dia, Sr. Efigênio. Tudo bem, obrigada. Este cidadão o aguarda há uns trinta minutos, respondeu a recepcionista, olhando na direção do homem que imediatamente se levantou.
-Ora, ora! É o Juvenal, exclamou Efigênio, mostrando-se surpreso e ao mesmo tempo aliviado por não ter sido nada do que suspeitava. Pô, cara, podia ter me avisado. Assim não precisaria ter madrugado aqui. E podia também ter me informado que viria de boné. Eu teria sido poupado da indelicadeza de não o ter cumprimentado logo que cheguei.
-Deixa disso, meu amigo. Você não vai querer que eu fique meio sem graça na frente da menina, disse Juvenal, sorrindo com timidez para Mariana, antes de abraçar o construtor.
-Mariana, por favor, providencie café e água pra gente. É o Juvenal, meu cunhado, anunciou Efigênio, levando o visitante pelo braço para o interior de sua sala.
Juvenal sentou-se numa poltrona bem mais confortável que a anterior, ladeada por outra igual, diante da espaçosa mesa com tampo de vidro. Observou que sobre a mesa encontravam-se, num dos cantos, papéis organizadamente amontoados sobre uma bandeja de madeira, um cinzeiro de vidro grosso, um copo alto de madeira, com a logomarca de uma empresa qualquer, cheio de canetas e lapiseiras de todos os tipos, um calendário digital e uma pequena réplica em aço de uma ponte estanhada. Por trás da cadeira de chefe de Efigênio, parecida com aquela, na imaginação de Juvenal, em que nunca pudera sentar-se, o que não teria feito diferença por que seu trabalho de fiscal era eminentemente externo, Juvenal pôde notar o belo quadro com o indefectível traço de Portinari.
Mariana entrou logo em seguida. Possivelmente com a idade da filha que não teve, Juvenal era servido pela menina com um sorriso tão franco que teve a imediata certeza da plena aprovação do boné que usava.
Enquanto isso, confortavelmente instalado na sua cadeira, Efigênio detinha-se no ex-marido de sua futura ex-cunhada. Notava que Juvenal emagrecera razoavelmente, embora talvez não fizesse nem um ano desde a última vez em que tinham se encontrado. A separação pode trazer marcas, das quais ele esperava saber livrar-se quando elas aparecessem. Não tinha ocorrido o mesmo com Juvenal, que certamente não devia ter a sua Anelice. O homem meio alto e de pele quase pálida, de olhos fundos num rosto cujo sorriso surgia apressado, parecia mais desanimado que propriamente cansado. Embora procurasse mostrar o contrário, a partir da jovialidade no uso correto de um boné que, não obstante, não lhe conseguia esconder as pronunciadas cãs.
-Juvenal, meu velho. Que bela surpresa você por aqui! Conte-me tudo e não me esconda nada, iniciou Efigênio, depois de se servir do café oferecido por Mariana e de ela tê-lo deixado a sós com o visitante.
Efigênio mostrava-se alegre e receptivo. Sabia que aquela visita só poderia deixá-lo à vontade. Gostava de ouvir o ex-marido de Izamara, irmã de Iara, especialmente nos seus lamentos quanto à separação. Muito oportunos agora, quando a separação dele mesmo estava definida e em vias de se concretizar. O que o deixara mais solto, trazendo-lhe uma sensação de liberdade. Provocando o afloramento do seu lado expansivo, mantido sob inibição durante grande parte do tempo em que esteve casado. Era hora de respirar, de aplaudir e estimular essa transformação que nele se processava.
-É, meu amigo. Obrigado pelo carinho. Venho adiando esse encontro há algum tempo. Mas agora não houve jeito.
-Mas o que houve, cara? Vai dizer que ainda não se refez do golpe?, falou Efigênio, o cenho levemente franzido, revelando alguma preocupação.
-Ainda não. Mas não é exatamente o que você está pensando.
-Tem mais coisa ainda, Juvenal? Ou é você que anda criando fantasminhas nessa cabeça, enfeitada agora por esse boné? Vai ver é o boné, parceiro!
-É um pouco por aí. Fantasmas, fantasias, sei lá. Mas eu explico.
-Então, vamos lá, cara. Pra você eu tenho tempo.
-Conheci uma menina lá de Portobelo. Ela mora na Vila Vazia. Acho que isso tem uns oito meses. Foi pouco antes, ou depois, daquele almoço lá em sua casa com você e Iara, deteve-se Juvenal para respirar, lembrando-se do conforto representado pelo espaço de tempo que lhe prometera o anfitrião.
Os nomes Portobelo e Vila Vazia causaram em Efigênio aquela conhecida espécie de friozinho na barriga, de que ele se livrou imediatamente ao se lembrar de que sua separação estava praticamente definida. No entanto, agora mais do que nunca, valia à pena prestar muita atenção ao que Juvenal viera lhe contar.
-A partir daí, prosseguiu Juvenal, começando uns dois meses depois da primeira vez que saímos, fui vítima de três golpes consecutivos. Ou assaltos, ou roubo mesmo, já que foram à mão armada. Que aconteceram sempre depois de eu a deixar perto de casa.
-Deu parte à polícia? Imagino que tenha feito isso, já que foram três vezes.
-Não fiz não, Efigênio. Primeiro porque nas três vezes de certo modo fui preservado. Em nenhuma delas levaram meus documentos. Só dinheiro e algumas jóias – pulseiras, meu relógio. Só na última vez foi que levaram meu carro. Que foi achado por lá mesmo, logo no dia seguinte, sem os quatro pneus e o toca-fitas, mas praticamente sem nenhum arranhão. Nunca me trataram mal. Nunca foram violentos.
-E daí? Isso não é motivo pra se proteger?
-E polícia protege alguém, meu irmão?
-Tudo bem. É certo que não, concordou Efigênio. Mas só que parece que você está marcado. E como os caras tão pensando que você tá dando mole, estão te aliviando.
-Sei lá. Pode ser. De qualquer modo, o outro motivo pelo qual acredito ter sido preservado se refere à possibilidade de eu conhecer um de meus agressores.
-Como assim, homem? Terá sido um dos irmãos da mulher ou alguma pessoa do relacionamento dela?
-É disso que estou suspeitando. Acho que Andrezza está por trás de tudo, respondeu Juvenal, o olhar vago dando idéia de que estivesse aparentemente alheio ao que dizia.
-Andrezza é o nome dela?, indagou Efigênio, com o maior esforço possível para que a pergunta soasse com naturalidade.
Ficaria a partir daí em busca da confirmação de que se tratava da prima de Anelice. Apesar de não ser exatamente um nome pouco usual, Andrezza também não poderia ser considerado um nome comum. Não deveria haver muitas Andrezzas em Portobelo, muito menos em Vila Vazia. Especialmente com as características da prima de Anelice e suas ligações com pessoas não muito recomendáveis.
-Chama-se Andrezza sim, tem uma filhinha e parece que mora com a mãe. Mas o mais engraçado foi como a fiquei conhecendo.
-Ué, não foi lá pros lados de Vila Vazia? Aliás, não sei o que você foi perder numa área tão afastada.
-Não foi em Vila Vazia, não. Na verdade, na primeira vez que saímos, ou que lhe dei carona, a encontrei em Engenho Claro, perto de onde morei. Mas antes disso já a tinha visto.
-E não a reconheceu nesse primeiro encontro?
-Não mesmo. Nela, devo confessar, o que primeiro me chamou a atenção foram as suas pernas, as mais atraentes e volumosas que já vi.
-É foda, cara. O homem sempre pensando com a cabeça do caralho, interrompeu Efigênio, em busca de alguma descontração.
-Mas eu explico, continuou Juvenal, sorrindo mais abertamente, depois da observação irreverente de Efigênio. Uns dois meses antes desse primeiro encontro, lá perto de onde morei quando criança, ao sair de casa pela manhã para caminhar um pouco, deparei-me com uma algazarra danada na primeira esquina da minha rua próxima ao meu prédio. Ao me aproximar de algumas pessoas já aglomeradas, vi que se tratavam de bate-bolas fazendo um monte de palhaçadas. Estranhei, provavelmente como todos ali, porque o Carnaval já tinha acabado.
-É, mas não é bem assim. Em várias cidades agora, surgiu a moda de se promover um Carnaval fora de época. É claro que o interesse comercial está por trás de tudo. Empresas de bebidas, estações de televisão, etc. Vai ver que os caras, esses bate-bolas, estão trabalhando para algum grupo que pensa em implantar um Carnaval fora de época por aqui também. Isso sem falar no verdadeiro Carnaval que os políticos promovem o ano todo, na tentativa de tirar dinheiro da gente, através do eterno samba-enredo que tem como tema o esvaziamento dos cofres públicos, com a utilização de falcatruas que, essas sim, se renovam a cada ano.
Efigênio surpreendia-se com o próprio bom humor, que lhe permitia a língua mais solta, desde que não se tratassem de observações realmente relevantes. Por outro lado, longas intervenções, como a última, além de deixar o visitante mais à vontade, poderiam contribuir para o fato de que Juvenal não suspeitasse de que Efigênio praticamente já sabia de quem se tratava.
-Nem sei como ocorreu, continuou Juvenal, mas não levou muito tempo e eu já me achava sozinho com os bate-bolas numa rua secundária, sem muito movimento, sendo forçado a entrar num prédio, descer uma escada externa e ter acesso a uma espécie de porão. Só não era um porão mesmo porque o pé-direito, como diz você, não era baixo.
-Quê loucura, cara. Coisa estranha, héin!
-A essa altura eu já havia percebido que quem liderava o grupo era uma mulher. Não muito alta, o macacão não impedindo que eu notasse o corpo volumoso.
-Você sempre ligado na fruta, doutor.
-Aí ela começou a se dirigir a mim numa linguagem estranha. Melaodmela num sei o quê. Avassecov do caceta. Etrom sotiep, etc. Uma merda danada. Eu não entendia porra nenhuma. Pensei que aquilo estivesse fazendo parte da brincadeira. Mas vi depois que o negócio era sério. Cheguei a pensar em seres alienígenas, em criaturas replicantes.
-Tem visto muitos filmes de ficção científica ultimamente, meu jovem?
-Duas coisas me chamaram a atenção na mulher, além do corpo volumoso, sem ser gordo: a voz meio rouca e um dos seios.
-Como é que é, cara? Isso é ficção científica ou filme erótico? Finalmente ficou bom pra você, observou Efigênio, efetivamente dando a entender que levava a coisa na brincadeira. Com isso permitia que Juvenal tivesse acesso a um lado seu que não conhecia, além de contribuir para o restabelecimento da auto-estima do ex-marido de Izamara. Cuja postura era o oposto da que apresentara antes de iniciarem a conversa. Apesar do relato da inusitada experiência.
-Nada disso, amigo. Numa das vezes em que se dirigiu a mim daquele jeito, ela me mostrou os dois peitos. E vi que um deles tinha o bico ligeira e eroticamente amassado.
-Viu como é que você parece que tem jeito para roteirista de filme de putaria?
-Obrigado pelo elogio, Efigênio. Agora, numa boa. O caso é que depois dessas três ações contra mim; depois das várias saídas com Andrezza, em que pude observar que ela também tinha o bico do seio esquerdo meio amassado, em que pude perceber na cama o som meio gutural da sua voz em meu ouvido; depois que pude me dar conta da pressa que ela tinha em que eu fosse logo embora após deixá-la perto de casa, o que aconteceu justamente nas três vezes em que fui assaltado; depois de algumas outras circunstâncias, como o repentino sumiço dela, às vezes por uma semana, sem qualquer explicação; depois disso tudo cheguei à conclusão de que Andrezza sempre esteve por trás dessas três ocorrências. Embora me recuse a admitir – ou talvez jamais possa reconhecer – que ela seja chefe de uma quadrilha. Desculpe-me por tê-lo alugado com esse assunto. Mas eu tinha que falar com alguém.
-Quê isso, Juvenal. Eu é que lhe peço desculpas pelas brincadeiras. É que você me pareceu bem acabrunhado quando sentou nessa poltrona aí. Quero que você saiba que me sinto muito honrado por você ter vindo me procurar. Certamente teremos ainda muito sobre o que conversar. Até porque quem agora está se separando sou eu. Chegou a minha vez. Ou melhor, a sua vez de me aturar.
-Não diga, meu amigo! Mas como foi isso? Ou melhor, não diga nada, se não quiser. E perdoe-me a tola indagação.
-Tem nada não, cara. Você sabe, as coisas se desgastam como a camisa nova que se compra e se começa a usar. E não adianta vesti-la normalmente depois de puído o colarinho.