Andrezza Iriri (Romance, Cap. III)
Apesar de 1.0, o carro deslocava-se rapidamente pela estrada asfaltada, envolvida em seus dois lados por amplos terrenos, em grande parte vazios. Que se prolongavam pelos morros da região. Deviam ser quase quatro horas da tarde. Completamente liberto, o vento responsabilizava-se pelo perfeito arejamento da área, apesar dos dias de intenso calor naquela época do ano. Acontece que estávamos num lado da cidade de aspecto marcadamente rural, completamente diferente da zona sul, onde na orla expunha-se uma cortina de concreto e aço que acabava impedindo a livre movimentação das correntes de ar oriundas do mar aberto.
As altas torres dos prédios, muitos deles construídos sob a gerência de Efigênio Andrade Machado.
O marido de Iara adquirira, na principal escola técnica do estado, a profissão de Técnico em Edificações. E, depois de mais de vinte anos de trabalho, o respeito dos colegas, dos mestres-de-obras e até dos engenheiros, que reconheciam nele a competência que faltava a muitos profissionais de nível superior.
Apesar de dirigir apressadamente, Efigênio não podia deixar de notar que as casas, e mesmos ou poucos estabelecimentos comerciais nas margens da estrada, não tinham mais que dois ou três pavimentos. Por isso era bem mais fresco o ar que entrava pela janela do carro. E se podia ver o verde da vegetação desde a lateral da via até às fraldas das colinas a alguns quilômetros de distância. Área que deverá estar inteiramente ocupada daqui há uns vinte anos. Seja qual for a capacidade de resistência do terreno. Que aqui deve ser de boa qualidade, a julgar pelo discreto afloramento de rochas em alguns pontos. Mas mesmo que isso não aconteça, não tem problema. A engenharia resolve qualquer negócio. Ainda mais quando ela se alia à avidez do lucro desmedido, proporcionado por uma irrefreável especulação imobiliária que tem o aval das chamadas autoridades constituídas. Mas Efigênio teve que interromper as suas digressões inúteis ao ouvir o estridente barulho do celular. Que acontecia pela terceira vez, desde que entrara naquela região. Sabia quem era.
-Oi, querida. Já estou perto.
-Pô, Efigênio. Você sempre me deixa esperando.
-São só mais cinco minutinhos.
-Você está dizendo isso desde a primeira vez que liguei. Acho que vou embora.
-Não faz isso, não, amor. Acho até que já estou vendo a cor do seu vestido.
-Há, há, há, há, palhaço. Você e as suas mentiras, respondeu a voz do outro lado, cuja irritação parecia ter sido contida pela brincadeira de Efigênio.
Conhecera Anelice há pouco mais de seis meses num bar próximo ao escritório, no centro da cidade. Gostava de se lembrar da primeira vez em que a viu. Naquele dia no bar, os rápidos olhares trocados em função da proximidade das mesas intensificaram-se durante a refeição. A ponto de Efigênio ter percebido que lhe seria concedida permissão para se sentar à mesa em que estava Anelice, aproveitando-se da saída da amiga que entrara com ela. Podia não ser normal uma atitude como essa. Na verdade não se lembrava de ter agido assim no seus quarenta e cinco anos de vida. Mas tampouco era normal a beleza da mulher que via diante dele. Devia ter uns 26 anos e não seria alta, o que pôde conferir depois que ela se levantou. Mas era extremamente bela. O rosto de pele clara e ligeiramente ovalado, o nariz pequeno e de sinuosidade em perfeita sintonia e adequação ao contorno da face. Os olhos também castanhos, com aquela tonalidade clara que lembrava o piso conhecido antigamente como parquet-paulista. Os cabelos anelados tinham a mesma cor dos olhos. Definitivamente não era pouco o que o fizera optar pela decisão de se aproximar dessa mulher naquele dia. Fazia-o bem passar o tempo que ainda restava para vê-la na tentativa de reproduzir o diálogo:
-Posso sentar? – uma pergunta infantil, já que a permissão lhe havia sido concedida.
-Claro. Minha amiga teve que sair.
-Posso perguntar se você espera por alguém? – a indagação decorrendo da percepção de que ela, como ele, terminara de almoçar.
-Estou esperando por meu irmão. Vou de carona com ele pra casa.
-Você está indo pra onde?
-Portobelo.
-Ah..., um pouco afastado, não é? – pergunta sem graça, amarelada a partir do início da sua gestação.
-Não, é mais que isso. É bem longe mesmo – lembrando-se de que ela disse isso sorrindo. Você conhece?
-Claro. Já estive trabalhando por lá.
-Moro na Aldeia.
-Já ouvi falar na Aldeia, mas nunca estive no local. Sei que fica em Portobelo, que aliás não é tão longe assim. Se quiser, posso levar você até lá.
Recordou ainda que a conversa se estendeu por mais alguns minutos. Até que ela resolveu avisar ao irmão pelo celular que não seria preciso vir buscá-la. Tinha conseguido uma carona, o que viera a calhar, porque teria que esperar no mínimo por mais meia hora pelo irmão. Assim, livro-o da preocupação de se ausentar do trabalho mais cedo para me buscar, além de chegar a tempo de passar em casa antes de pegar Angélica na escola. Foi o que ela lhe explicou depois.
Anelice contou-lhe também que trabalhava num escritório de advocacia ali perto. Conseguira naquele dia uma tarde livre para levar sua filha ao médico, contando com a carona na moto do irmão. Que possuía uma banca de conserto de relógios num dos principais centros comerciais da cidade.
Efigênio lembrou-se de que fez a ela o convite para beberem rapidamente uma cerveja num dos bares da Aldeia, depois que chegassem a Portobelo. Sem que soubessem até àquele momento, ele da condição dela de viúva, e ela da condição dele de casado. Foi admirável o fato de ela aparentemente não ter se preocupado com o seu estado civil. Embora desde o primeiro momento, ele hoje reconhecia, ela já estivesse desconfiando de que ele fosse casado.
Ficaram pouco tempo num dos bares por ela escolhido. Tomaram duas cervejas e decidiram se retirar. Anelice tinha compromisso com sua filha. Naquele dia Efigênio chegou em casa por volta das seis e meia. Cedo, portanto, já que o costume era chegar às oito e às vezes até mais tarde. Mas isso não lhe deu, como nunca mais iria lhe dar, a certeza de poder ser do agrado da mulher. Que não raro se mostrava, como se mostrou depois cada vez mais, indiferente quanto ao fato de ele aparecer em casa cedo, ao final do expediente, ainda com a luz do dia, ou tarde da noite. Embora nos finais de semana ele percebesse que ela se esmerava na atenção que lhe dedicava e até nos carinhos, na cama ou fora dela. O que sempre lhe trazia a lembrança dos dois primeiros anos de casamento. Mas o que não compreendia é que não pudesse acontecer a mesma coisa durante a semana. Cabeça de mulher é coisa que nunca ninguém vai entender. Pelo menos, Iara nunca demonstrou a menor dose de ciúme. Ou será que ela dissimula?
Alguma coisa parecia mostrar a Efigênio que o relacionamento com Anelice iria se aprofundar, embora estivessem juntos há apenas seis meses. Talvez fosse a forma como as coisas andassem em casa, onde as ausências dele ou da mulher já não eram sentidas da mesma maneira, por um ou por outro. Eram cada vez mais toleradas. Ou quem sabe até desejadas. Interessava-o, por isso, a separação de Juvenal. Porque representaria a aquisição de experiências de que tivesse que se valer num futuro que poderia não estar tão longe.
Em menos de cinco minutos estava diante de Anelice, que o esperava no canteiro central da avenida, quase ao lado de uma construção pequena, de um pavimento e de forma hexagonal, utilizada pelos Anjos da Estrada, uma organização encarregada dos primeiros socorros às pessoas envolvidas em acidentes rodoviários. Um anjo de cabelos anelados, que decoravam o justo vestido vermelho que lhe acentuava o contorno do corpo. Devia estar sentindo calor àquela hora do dia.
Juvenal voltou à casa de Iara quase dois meses depois. Cumprira a promessa de levar o sorvete e a torta de chocolate para a sobremesa do almoço. Que não teve a participação dos dois filhos do casal. Tinham viajado com amigos naquele fim-de-semana. Novamente Juvenal aproveitara-se da viagem para fazer algumas compras num dos supermercados próximos.
Juvenal dizia para si mesmo que já estava praticamente habituado à condição de solteiro. Mas sabia que não era verdade, embora fosse o que procurasse demonstrar. E a confirmação dessa realidade se dava a partir do comportamento de Efigênio, cada vez mais interessado no atual momento da vida do ex-marido de Izamara. Apesar de continuar sendo um interlocutor muito mais interessado em ouvir do que em falar. Porque sabia que Juvenal ainda tinha o que dizer a respeito da sua separação. Algo sempre traumático, por mais que se acredite que não.
Na hora de ir embora, antes de entrar no carro, estacionado do outro lado da calçada, Juvenal ainda pôde dar adeus a Iara. Que permanecera sozinha na varanda, entre as duas colunas sobre as quais se apoiava uma viga chanfrada simetricamente nos seus dois pontos de apoio nas colunas. Só aí pode perceber como era antigo aquele tipo de varanda. Contendo ainda, um pouco afastada da porta de entrada, a caixinha embutida na parede para o quadro de luz. Só aí pode admitir, pelo tempo de permanência de Iara na varanda, que pudesse ter sido intencional a desinibição com que fora tratado pela ex-cunhada, apesar da presença do marido. Sem aquela formalidade toda que ela dele reclamara no dia em que o recebera sozinha. De repente, veio-lhe um arremedo de arrependimento, por não ter procurado, de alguma forma, corresponder àquele tratamento durante a visita. Mas agora não adiantava.
Não havia pressa de chegar em casa. Colocar o que tinha comprado nos armários da cozinha e do banheiro só o faria lembrar-se mais uma vez de Izamara. Até nisso a recorrência a Iara seria pouco criativa. Além de certamente geradora de problemas, ele acabaria ficando com uma espécie de réplica da ex-mulher. Algum tipo de mudança era recomendável. Já que ele se considerava incapaz de provocar uma mudança que abrangesse tudo.
Sabia que na via movimentada pela qual passava agora encontraria a esquina com a Rua Jurupi. Ali está. Tratava-se da rua em que fora criado. Ficávamos até de madrugada jogando conversa fora naquela esquina. Contando o número de carros que passavam. Dava pra fazer isso porque não eram tantos como os de hoje. Ou identificando suas marcas: Oldsmobille, Hudson, Pontiac, e outras. Ou juntando maços de cigarros usados: Douradinho Extra, Caporal Amarelinho, Liberty Ovais, etc. Vendo quem saltava dos lotações na parada irregular em frente à esquina, já que ali não era ponto. Lotação, uma palavra que os garotos de hoje provavelmente não associariam a transporte coletivo. O motorista, ele mesmo fazendo a cobrança pela passagem e dando o troco, quando havia. As moedas contidas no espaço criado pela chapinha metálica na parte inferior do pára-brisa.
A via de penetração, devidamente asfaltada e marcada pelos inúmeros tampões indevidamente rebaixados, um outro tipo horroroso de buraco, alarga-se agora e Juvenal se lembra da Barreira. Que era um clarão numa grande área de terra que terminava numa trilha no meio do mato, chegando-se por essa trilha a uma outra rua onde só havia casas bonitas. A Barreira fora palco de inúmeras peladas que se iniciavam sempre com o par-ou-ímpar. Das quais ele orgulhosamente pudera participar. O desconforto, ignorado pelos meninos, gerado pelos pés descalços correndo sobre as pedrinhas do terreno. Havia trechos em que elas se achavam encobertas por uma camada de areia ou de barro. O que tornava melhor, ou mais confortável, a condução da bola ou o drible. Como acontecia também nas áreas periféricas, onde sempre havia algum mato ou graminha.
Mas tudo fazia parte agora da mesma via de penetração, devidamente pavimentada, pela qual ele passava propositadamente devagar. Como que para reconhecer um prédio antigo de quatro andares, um dos únicos que ainda permanecia ali, em frente a um posto de combustível construído numa área que fora marcada por elevadas camadas de capim gordura.
O posto ficava na esquina com a rua em que só havia casas bonitas. Que ficaram feias com o tempo – no que se pode admitir um paralelismo com o que ocorre com as pessoas. Ou com a decadência do local, o que seria mais provável, provocada pelos altos índices de violência em toda a cidade. Decorrentes, antes de tudo, dos níveis de pobreza da população, cada vez mais acentuados por todo o país.
No ponto de ônibus, um pouco à frente do posto, do outro lado da calçada, Juvenal sentiu-se atraído pelas grossas coxas da mulher que não se furtou a retribuir seus olhares. Era o efeito provocado pela saia de jeans mantida bem acima dos joelhos. O que levaria uma pessoa de postura mais conservadora a um juízo de valor que não seria positivamente do agrado da mulher. Não sendo, é claro, o caso de Juvenal, que não mantinha há quase três meses qualquer tipo de contacto com o sexo feminino. Além do que vivenciara há pouco, como há cerca de dois meses, com a visita à casa da ex-cunhada.
Apressando-se mais, teve a iniciativa de tomar a primeira rua à direita para fazer o retorno. Torcia para que ela ainda estivesse no ponto quando ele chegasse.
Estava com sorte. As pernas grossas continuavam ali, tendo ele agora a chance de observar que ela vestia uma blusa vermelha de mangas compridas, que parecia de seda, não sem antes perceber o discreto sorriso que definitivamente o animou a se deter mais adiante. Admirou-se com o fato de ela não ter se sentido inibida a se dirigir até onde ele havia parado e entrar no carro, depois que ele abriu a porta.
-A condução sempre demora, não é?, disse Juvenal, logo que ela entrou.
-Posso saber pra onde você está indo?
-Bem, estava indo pra casa, respondeu Juvenal, colocando o carro em movimento. E você?
-Eu também. Se não for incomodar, pediria que me deixasse no terminal da Ponta Funda.
-Por que? Você vai pegar outra condução?
-É que moro um pouco longe. Vila Vazia. Conhece?
-Sei onde fica. Levo você até lá. Posso?
Ela nada respondeu. Preferiu valer-se do sorriso, muito menos discreto daquele que lhe oferecera no ponto do ônibus. Usava, porém, também de discrição para olhar todo o painel do carro, sem que Juvenal, ocupado com o tráfego, o percebesse. Notou que Juvenal usava no punho direito duas pulseiras finas de ouro, mantendo no outro braço um Bulova, cuja pulseira dourada combinava com as outras.
Andaram por mais de meia hora de carro, mas Juvenal ficou com a impressão de que tinham gastado dez ou quinze minutos quando chegaram. À medida que se afastavam para a periferia da cidade, o tráfego tornava-se menos intenso. Mas não foi isso o que encurtou o espaço. A novidade de estar com uma mulher atraente, com um riso gostoso e um jeito de falar simples e macio, fizera com que ele se desligasse de tudo. Esquecera-se das compras que fora fazer de novo perto da casa da ex-cunhada. Que, embora também atraente, não estaria ao alcance do que poderia ser oferecido pela mulher que estava a seu lado, de idade certamente igual à metade da dele.
Ao estacionar o carro na esquina da estrada com uma rua em terra, Juvenal conseguiu reunir a coragem que viera alimentando durante quase toda a viagem:
-Posso saber o seu nome?
-Andrezza, disse a mulher, surpreendendo-se por não lhe ter oferecido o nome errado. E o seu?
Quando pensou em lhe dizer o nome, Juvenal já se achava perto o suficiente para beijar-lhe a boca. O que fez logo em seguida, aproveitando-se do fato de não ter havido uma reação contrária à sua intenção. Talvez porque ele a tivesse surpreendido.
-É assim que você responde quando lhe perguntam o nome?, indagou a mulher, mostrando-se surpresa com o beijo repentino.
-Não..., quando a pergunta não é feita do jeito que você fez, respondeu Juvenal, fingindo-se levemente arrependido.
-Vou tomar cuidado então, quando tiver que fazer outras perguntas.
-Pode deixar. Não vai acontecer de novo Foi o tom de sua voz. Ou o jeito da interrogação. Acho que não acontece à toda hora. De qualquer modo, chamo-me Juvenal.
Ao retornar pela estrada pavimentada, ladeada em suas margens por habitações rústicas, todas elas de um pavimento, Juvenal se deu conta de que valera a pena ter vindo a um lugar tão longe para ter a boca molhada por um beijo jovem e macio. Nem tudo estava perdido.