AGUARDADA VISITA *

Uivos e mudos lamentos na noite, distante lobo da alcateia, parecendo absorto em seu mundo. Alcoólicos ares, a mente liberta, dores extravasadas, na umidade das retinas, traindo lágrimas repentinas de pensamentos obscuros, recluso em si mesmo.

Naquele curto espaço de uma mesa encostada na parede, duas cadeiras, um exílio voluntário, reservado espaço para amarguras confidenciadas a si mesmo, solilóquios intransponíveis, enredos íntimos como pérola escondida no âmago da ostra. Nos cantos da boca, como sorrindo irônico das funestas lembranças davam azos a furtivos sorrisos, como memórias hilárias.

Balanço anestesiado de seus rancores, passagens desfilando na mente, revividos passados presentes em instantes, amores mal amados, pilhérias e insucessos naquele universo restrito, no vazio da garrafa, a única presença naquela ilha, companhia daquele homem que parecia não estar ali, mas distante, ausente, imerso em suas cogitações. Curiosamente, contudo, mantinha uma cadeira vazia, como se esperasse alguém, sempre na espera, mesmo na certeza de que não seria ocupada. Presença ausente em sua melancolia, presente, todavia, em recordações vivas, vãos sonhos acalentados por uma visita nunca aparecida...

Apenas no semblante denotava o que lhe ia no íntimo, devaneando em sua solidão, arriscando risos inacabados, nascidos em momentos e falecendo rápidos, como se negando a voos mais felizes... ainda que lembrassem risos eram risadas amargas, sufocadas,entremeadas em sustidas lágrimas, brigando consigo mesmo para não transparecer a intimidade a alheios olhos. Autopiedade, estrela embaçada, no brilho opaco do vidro do copo, vislumbres de sua imagem, detido em suas viagens pessoais, resgate de momentos vividos, inescrutáveis a terceiros.

Ritual que se repetia, dia a dia, semanas, meses, anos, sempre a figura enigmática, solitária, atraindo atenção de olhares curiosos, mergulhado em seu mundo hermético, inacessível atmosfera plasmada onde habitava sua única personagem, cenário exclusivo, na reclusão de um só habitante, ermitão na azáfama das rotinas de milhões de vidas açodadas em suas pressas e afazeres...

Contrariando sua rotina de costume, vez ou outra, como se dirigindo a alguém inexistente para todos, olhava e parecia conversar em troca de olhares, pequenos gestos, a estabelecer contatos como se a companhia da cadeira vazia estivesse chegado, enchendo-o de vida. Raros instantes em que o semblante irradiava luz e escassa alegria. Detinha a mão suspensa no ar, como querendo alcançar a imaginária figura, em meneios de afagos, um filme mudo, uma representação tosca, tolerada pelos demais, por conhecê-lo há muito tempo, em seus desvarios solitários e silenciosos. Para alguns apenas um ébrio na noite, suportado por não importunar ninguém, a viver sua história surreal circunscrita a seu mundo incompreendido. A outros tido como um maluco inofensivo, enredado em um drama pessoal não revelado.

Sorveu ávido vários goles, parecia animado, distinto do hábito de levar horas bebericando, como se, de súbito, demonstrasse pressa. Parecia aliviado ao levar o copo à boca, sorriu abertamente um desatento riso, quase infantil, levantando a mão em um brinde a todos, pendeu a cabeça como se buscasse a si mesmo. O tempo inclemente a cobrar das gentes, nos colocando a nu às desventuras, tornando-nos implacáveis juízes de nós mesmos, a pó expondo ilusões efêmeras. acuado em pena de si mesmo, encosto de desgostos e iras, bravatas de bêbedo, escárnios de alheios.

Naquele noite, diferentemente de todas as inúmeras outras, levantou-se ereto e cortês, dirigindo-se à invisível pessoa que o acompanhava, e, como se estivesse de braços dados com ela, atravessou imponente e garboso o corredor extenso do bar, embevecido por aquela companhia inusitada, parecendo estar feliz como jamais fora visto antes.

Na esquina de constante trânsito e carros em velocidades, equlibrou-se em falsos passos, devolveu parcos risos rasos e adentrou negligente na passarela. Seu corpo foi lançado na altura de alguns metros, espatifando-se no solo, com um indescritível sorriso de felicidade... Morte instantânea.

Alguns afirmavam, impressionados, tê-lo visto levantar-se, empertigado, acompanhado de uma mulher sedutora e bela, e sumirem na multidão...

*PUBLICADO EM LIVRO NA ANTOLOGIA DE CONTOS DA EDITORA CBJE, RIO DE JANEIRO-RJ, MARÇO 2012.

* UM DOS CONTOS SELECIONADOS PARA FIGURAR NO PANORAMA DA LITERATURA BRASILEIRA DE 2012 - ESCOLHIDO ENTRE OS MELHORES CONTOS PUBLICADOS NO ANO PELA EDITORA CBJE.