A DESPEDIDA *
O quarto rescendia a almíscar, tal o apuro nos detalhes e na limpeza.
Em frente ao espelho da penteadeira vislumbrava sua beleza. O viço da juventude manifestava-se na tez canelada e nos cabelos de ébano escorridos sobre os ombros, no suave e enigmático par de sobrancelhas arqueados sobre os olhos graúdos e belos. Vez ou outra, traindo os pensamentos, num rito de sabor, mostrava os alvos e perfeitos dentes num sorriso velado, dissimulado.
O sobrado de n° 307 se destacava dentre os demais, ali esperava Izaura pelo amante, a visitá-la em dias determinados, na escapulida de seus compromissos de negócios e familiares.
As mãos, na escova dos cabelos, tornavam se crispadas ao sabor das memórias, ora suaves, ora tristonhas...
A mente a levava de volta à fazenda, onde tudo começara. Filha de lavradores pobres, trabalhadores do seu amante, fora recrutada para os serviços domésticos, longe dos tormentos da vida roceira, castigada pelo sol inclemente e pelas más condições de trabalho. Trabalhar na casa grande era um privilégio desejado por todas as moças que lidavam com a terra. Estava entretida em sua lida quando sentiu a presença do patrão, montado em seu cavalo:
- E ai, moça, boa tarde...
( nervosa com a surpresa, a princípio sem saber o que dizer, cutucada pela mãe)
- Liga não, Patrão, ela é tímida...cumprimenta o Dr., Izaura !
- Boa tarde ! ( respondendo avexada com a reprimenda materna)
- Izaura ? Bonito nome... quantos anos você tem ?
- ( a mãe, tomando à frente, diante o embaraço da filha) – Ela tá com 16 anos...
- Gostaria de ajudar na Casa Grande ?, precisamos de uma ajudante para os serviços de casa...
_ ( a mãe, sempre cutucando a filha) – Responde ao Dr., Izaura, que falta de modos !
- Sei não...a mãe que sabe, se ela quiser...
- Arre, claro que ela quer, Dr !
( acertaram tudo e, dias depois, com os pertences em uma pequena e simples maleta, mudou-se para a casa do patrão).
Logo se acostumou com os afazeres domésticos, sendo sempre requisitada pela patroa, pessoa fragilizada e constantemente doente. Havia no olhar daquela mulher uma certa condescendência com as atitudes do marido, mormente nas que se referia às suas conquistas amorosas, algo como resignação por não poder atendê-lo totalmente nos deveres conjugais em vista de seu estado de saúde. Homem gentil com a esposa, sempre a tratando bem, aquilo, de certa forma, a compensava, além do carinho e verdadeira paixão que ambos nutriam por Lauro, o único filho do casal, que vinha nas temporadas de férias escolares visitar os pais.
Izaura nutria respeito e dedicação à patroa, com quem aprendera muito, inclusive as letras, os bons modos, um certo requinte aristocrático estranho a sua origem. Lauro a encantava particularmente, pela beleza e humildade que transparecia, tratando-a como a uma igual, apesar das diferenças sociais. Eram ambos jovens, confidenciavam-se, divertiam-se, e de quem sentia saudades na ausência. Sempre recebia cartas do jovem patrão, a que respondia enternecida...
Hidalgo, o patrão, a cercou de cuidados e gentilezas, nunca forçou nenhuma situação, mas cedo ficou patente suas intenções para a jovem ama. Percebia seus olhares, a desejando, aquilo era curioso, pois não a fazia constrangida, mas desejada e querida, o que a envaidecia. Era um homem bonito, apesar da idade, tinha porte de cavalheiro, finos tratos. Era sim sedutor, amável. A cortejava em gestos, nunca se precipitando em atitudes menos confortáveis. Não se pode dizer que tenha sido enganada, gostava daquele jogo sutil de rata e gato, de certa forma, incentivava, mostrando-se mais bela e ousada nas vestes...
O tempo encarregou-se de patentear a relação extraconjugal, quase inevitável. E Izaura, como uma flor desabrochada, mostrou-se uma mulher interesseira e calculista, distante da cabocla tímida de outrora. Sabendo-se amada, conquistou certa tranqüilidade aos pais, com a doação de um naco bom de terra para que trabalhassem por conta própria e tivessem melhores condições de vida. Alegando desconforto pela situação, pediu uma casa própria na cidade, para não ter que compartilhar a traição junto à esposa debilitada. Todos seus desejos eram minuciosamente atendidos.
Mas nem tudo eram flores, ainda se sentia a outra, a amante. Queria mais, ser a dona absoluta do amante e de suas posses, mas a esposa, cada vez mais debilitada, era um empecilho. Além do que, Lauro se apresentava aos seus olhos como um homem lindo e desejado, o que a colocava em dilemas terríveis. Nutria sentimentos por Hidalgo, sempre solícito e gentil, excelente companheiro, mas o coração de jovem batia mais acelerado pelo enteado, quase da mesma idade, juventude excitante. E nisso era correspondida, pois o jovem também a desejava, sem conhecer a dupla vida de seu pai.
Hidalgo, o bom, o encantador, era agora algo que incomodava, que a impedia de ter sonhos maiores...por que o pai, ainda elegante, mas velho, se teria o filho, herdeiro único, belo e jovem ?
Aqueles pensamentos tumultuados vinham de forma freqüente, cobrando atitudes imediatas, tirando-lhe a paz.
Hidalgo chegaria a qualquer momento, o vinho estava pronto, as taças, tudo como ele sempre apreciava. havia dito que passaria por breves instantes, pois estava com pressa, teria que retornar à fazenda, assuntos imediatos, acompanharia o médico para uma consulta com a esposa, que piorava dia a dia.
Ao adentrar a porta, Hidalgo, recebido efusivamente por Izaura que era outra mulher, não mais dividida entre dois homens, mas inteira para ele, nisso não dissimulava, tinha imenso prazer com as furtivas visitas do homem que partilhava com a outra.
O brinde foi rápido mas festivo, embora Hidalgo não escondesse suas preocupações com o agravamento do estado de saúde da esposa. Beberam alguns goles, se abraçaram e seguiu viagem no compromisso de retornar em breve, conforme o combinado entre eles.
Ao ficar só, Izaura tremia, em confusões mentais, em arrependimentos tardios.
Só voltou a ficar tranqüila quando se anunciou Lauro, que vinha vê-la, enamorado.
Todo o desejo represado em tanto tempo, na etílica sugestão alcoólica estimulante, se entregaram perdidos em louca paixão.
No meio da noite, acordados por um emissário, levantaram-se aturdidos.
Hidalgo passara mal na fazenda, vindo a falecer. Acreditaram tratar-se de um infarto pelas atribulações com a saúde da esposa, também próxima da morte.
A sós, na pia do banheiro, Izaura esvaziava o litro contaminado com o veneno...
CONTO SELECIONADO PARA FIGURAR NA ANTOLOGIA "CONTOS DE AMOR E DESAMOR" DA EDITORA CBJE, EDIÇÃO ABRIL/2010.
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