OS PRIMEIROS A MORRER

Atravessei a rua e fui andando até a galeria. Eu precisava passar à noite em algum lugar. O espetáculo mesmo só começava às onze e meia. Anos atrás costumava estar presente religiosamente naquele lugar. Havia poucas pessoas, sempre os mesmos, iam até o fim da noite.

(ascende-se as luzes, de fundo ouvimos uma musica ácida e vemos uma mulher raquítica com cara de doente olhando-se no espelho de calcinha e sutiã, ela experimenta varias roupas, mas nenhuma delas parece agradar-lhe, subitamente joga tudo para o alto visivelmente perturbada)

Talvez a saída seja mesmo um tiro na testa

(fala a si mesmo refletida no espelho)

É!

A raiz do problema!

Logaritmos

Mar,

Ritmo

(fascinando o próprio punho)

O sangue correndo nas minhas veias

O sorvete derretendo em taça

(lambe o punho fechado como se fosse uma deliciosa bola)

Gosto de avelã é o que sinto na boca...

(atira o objeto imaginário ao chão)

Quando penso nos amores de amanhã

Doce!

Efêmero!

Deixando resíduos !

(pausa)

Shhh...

(espia pela janela entre a cortina)

O silencio na praça é só um indicio...

De um sábado sem brilho

(fala para si mesma refletida no espelho)

O mundo está cansado da sua própria farsa!

(feminina como a vida, ela caminha descalça, numa dança destrambelhada, num espelho sem reflexo)

Talvez a saída seja mesmo uma vida regrada a sexo.

(ensaia uma masturbação. Abruptamente corre ao espelho)

Hahaha!!!

(ameaça a imagem com o dedo, lentamente leva o mesmo dedo até os lábios)

Shhh...

(pausa)

(numa mistura de humilhação e medo, confessa-se a si mesma no espelho)

O revólver está sobre a banca da pia

(vira o rosto, envergonhada)

Sinto um estranho desejo...

(exalta-se de um lado para o outro)

Lavo a arma com água e sabão!

(num crescendo)

Escorrega das MINHAS MÃOS!

(aos gritos)

E O DISPARO ESPANTA OS POUCOS POMBOS QUE VISITAVAM O JARDIM!

(um som ensurdecedor de revoada de pássaros, seguido de um silencio incomodo)

(lúcida, num fio de voz)

E a bala invagina a minha pele...

Como um dedo de luva

Era tarde quando acordei. Um senhor me cutucou com um guarda chuva. Odiava quando me acordavam no meio do sono. Ele foi gentil apesar de ter me cutucado. Disse que a atriz teve uma sincope no meio do palco, levaram-na ao hospital e por isso não haveria mais peça. Era um sinal. Os escavadores utilizam pássaros dentro de uma gaiola nas minas de carvão que funciona como detector de gases mortais. Por isso eles são sempre os primeiros a morrer. Levantei-me e sai rapidamente e o senhor do guarda chuva foi acordar outro dormindo na fileira à frente.

F Mendes
Enviado por F Mendes em 06/05/2011
Código do texto: T2953135
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