DEFORMAÇÃO
Eu não conseguia mais me concentrar no trabalho, extrair questões, alto índice de incomunicabilidade.
–Todos são figurativos, apesar de seguirem uma linha – gritou alguém do fundo do estúdio.
Ele gritou aquilo para mim?
Logo que entrei na agência, fui até a sala do meu chefe.
–Faz uma semana que você não aparece. Disseram que você fugiu com um coroa rica, é verdade?
Meu chefe era um gordo perecível. Cinco minutos de conversa e ele estraga o seu dia.
–Você não rende mais como antes.
Isso é comercial de sabão em pó.
–Imbatível nos desafios do dia-a-dia...
Roupas como novas por mais tempo.
–Multiativo...
Levando a sujeira embora.
–Com tudo...
Estava na cara que o puto ia me mandar embora. Eu não ia dar esse gostinho a ele. Pedi a conta.
Ele ainda quis contornar a situação, como se aquilo fosse um jogo político. Não teve jeito. Cai fora. A verdade deste mundo é que todos vivem para me empurrar, mais ou menos sutilmente, para merda. Saquei como é. Como funciona.
–Vou sentir a sua falta – disse Lucrecia, ela trabalhava como secretária na agencia.
Essa dona, a Lucrecia, eu não dava muita bola pra ela, e ela parecia se preocupar comigo.
–E agora?
–Agora nos separamos.
–E a gente não se vê mais?
Ela deixou a bolsa sobre a mesa e saiu para pegar dois cafés pretos para nós dois. Ela carregava uma cartela de comprimidos para dormir, a chave de um carro popular e o endereço de uma casa em Ubatuba, que tive dificuldades de encontrar por causa da cerveja que tomei após mordiscar os comprimidos.