A Morte do Padre Eugênio


– Mataram padre Eugênio! Mataram padre Eugênio! – entrou gritando na delegacia o rapazote que fazia a limpeza da igreja.

O ordenança que estava por ali varrendo mandou-o se acalmar.

– Conta essa história direito, moleque!

– Eu terminei de faxinar a nave e fui pra sacristia. Ele tá caído lá.

– Como é que tu sabes que ele está morto?

– Tá cum zoião aberto, paradão lá, no meio de uma poça de sangue!

O soldadinho largou a vassoura e correu para avisar o delegado. Depois, foram os três até a paróquia, para verificar a informação do rapaz.

Entrando na saletinha, encontraram o pobre padre exatamente como o garoto afirmara.

O delegado Almeida virou-se para ele:

– Tu não mexeste em nada, pois não?

– Mexi nada, dotô. Quando vi isso aí, saí correndo.

– Viste se está faltando alguma coisa?

Ele olha em volta.

– Acho que não. – lembrando-se – Só se...

Correu até um móvel no canto, abriu uma gavetinha.

– Não, dotô... Ninguém mexeu nem no dinhêro das oferta.

– Está bem... Tu podes ir agora, Aurélio. Mas, não sumas, não, que posso precisar falar contigo.

O sacristão aproveitou a deixa e sumiu pelo templo afora, enquanto o homem da lei lamentava-se:

– Era só o que me faltava, faltando três anos para aposentar... Nesta cidade nunca houve dessas coisas.

E era verdade. Pereápolis era uma cidade pacata, pequena, todo mundo conhecia todo mundo, prisão, quando havia, era por bebedeira, briga ou quando algum espertalhão atentava contra a honra de donzela ou senhora de respeito.

Almeida iniciou o exame do corpo. Não era preciso médico legista para diagnosticar a causa mortis. Ao levantar o braço da vítima, lá estava a faca cravada em seu peito. Examinou o corpo e o ambiente em busca de pistas que pudessem ajudá-lo a identificar o assassino, mas não encontrou nada. O médico veio da capital apenas para confirmar que a morte foi provocada por instrumento pontiagudo e contundente, compatível com a arma encontrada no cadáver. Era uma bela adaga militar, que ninguém do convívio do sacerdote lembrava-se de ter visto antes.

Eugênio viera para a cidade para substituir o quase centenário padre Isaías falecido há cerca de três anos.

No início, a população ficou um pouco desconfiada do jovem bonitão e musculoso, que em nada se parecia com um religioso. Porém, em poucos dias, padre Eugênio conquistou a todos com seu jeito caridoso, gentil. Seus sermões pareciam inspirados pelo próprio Deus, sempre tocavam os fiéis de forma muito especial. Após as missas, ele costumava visitar os ausentes em uma campanha de fé, trazendo de volta à igreja muitas ovelhas desgarradas. Também dava suporte às famílias mais carentes e aos enfermos, conseguindo-lhes roupas, medicamentos, alimentos...

– Ele fez o Simão parar de beber. – dizia a agradecida dona Efigênia.

Padre Eugênio rezava com eles, enchendo-os de esperanças e até alguns milagres lhe eram atribuídos. Dona Argemira não parava de alardear que ele lhe curara da tuberculose.

Era óbvio que todos naquela comunidade amavam o clérigo, ninguém ali teria motivos para matá-lo. Seu assassino certamente seria alguém de fora, provavelmente alguém que o teria odiado em sua vida pregressa. Resolveu procurar na diocese alguma informação sobre a origem do presbítero. O bispo inicialmente furtou-se a dar maiores detalhes, mas quando soube da morte de seu sacerdote, concordou em falar sobre ele.

– Eugênio veio para o mosteiro muito convencido de sua vocação, apesar da idade já avançada para o ingresso na vida religiosa.

– Mas ele era muito jovem! – retrucou o policial.

– Sim! Mas ele já tinha trinta anos quando ingressou na ordem. A maioria de nossos seminaristas sequer criou barba ainda.

– Entendo. E como conseguiu formar-se tão novo? Ele tinha o quê? Trinta e cinco?

– Quarenta. Ele ordenou-se padre aos trinta e seis e foi nossa melhor opção para substituir o padre Isaías.

– Ele fez inimigos aqui?

– De forma alguma! Era querido por todos, estudava com afinco... Nossa ordem não exige a clausura, mas ele optou por ela e passava todo o seu tempo mergulhado na teologia, aprendendo ou ensinando.

– Ele dava aulas?

– Não. Mas tinha sempre um colega menos, digamos, menos perspicaz que ele, precisando de ajuda. E ele nunca se furtou a isso.

– Isso não suscitaria inveja?

– Talvez, num meio acadêmico convencional, mas aqui?

– Tens razão... E antes de ingressar aqui?

– Ele não queria falar sobre seu passado, apenas insistia em haver recebido o chamado e estar pronto para servir ao Senhor.

– Isso é comum?

– Acontece. Mas, sempre tememos que seja algum criminoso em busca de refúgio, por isso, mandei alguns freis investigarem.

– E o que descobriram?

– Nada. Foi o próprio Eugênio quem veio me procurar, quando se soube investigado. Chegou muito humildemente à minha presença e explicou-me que era mesmo um fugitivo. Mas não era um criminoso.

– E isso foi o suficiente para o senhor?

– Não. Disse a ele que precisava saber de que ele estava fugindo. Ele disse apenas haver abandonado a missão de toda uma vida por amor a Deus.

– Uma missão?

– Desconfiei que ele fosse militar. Apesar de sua doçura e humildade, ele tinha porte de soldado, o pisar era duro.

– E?

– Consegui a relação de desertores do exército na ocasião de seu ingresso na ordem. Mas, um evento muito estranho me fez encerrar o assunto.

– O que houve?

– Numa madrugada entrei na capela para minhas orações e ele estava lá, ajoelhado a um canto. Sobre sua cabeça, uma luz muito suave o iluminava, parecia vazar de alguma fresta na parede. Olhei novamente para fora, achando que o dia poderia já estar clareando, mas tudo era o mais profundo breu. Achei que fosse algum truque. Aproximei-me, silenciosamente, procurando a fonte da luz.

– E ele?

– Do jeito que estava, permaneceu. Grossas lágrimas rolavam pela suas faces. E ele murmurava “Sim, senhor! Eu atendi o seu chamado”.

– Conseguiu descobrir a fonte da luz?

– Não. Ela simplesmente brotava da parede. De repente, espalhou-se por toda a capela e desapareceu atrás do altar, deixando um cheiro inebriante de jasmim no ar. Como se houvesse jasmineiros floridos por toda parte...

– E não havia?

– Não! Naquela área havia muita infiltração e retiramos todos os jardins. Está tudo calçado.

Almeida não quis confessar, mas estava impressionado com tudo aquilo, um arrepio brotando-lhe da nuca.

– E o que houve depois? – perguntou.

– Eu saí discretamente. Sabia que havia assistido a uma verdadeira revelação e que o rapaz era mesmo destinado a ser um homem de Deus.

– O senhor ainda tem a relação dos desertores?

– Penso que sim.

Procurou um pouco e entregou-lhe um papel. Almeida agradeceu a atenção do bispo e saiu, analisando o documento. Eram poucos nomes. Naquela época, a carreira militar era uma grande oportunidade de vida e era raro que alguém desistisse dela. Um nome lhe chamou a atenção: Bernardo Oliveira da Cruz.

A família Oliveira da Cruz era tradicional no meio militar. Eram oriundos de seus berços grandes heróis nacionais que nomeavam ruas, praças e edifícios em várias cidades do País.

Encaminhou-se à propriedade da família. Ao anunciar-se como delegado da cidade de Pereápolis, o patriarca pediu aos demais presentes que deixassem o recinto.

– Eu sabia que tu virias. – disse.

O delegado olhou-o interrogativamente. Não se animava a falar. O homem à sua frente, embora parecesse tão miseravelmente infeliz, era uma lenda, preferia deixá-lo à vontade. Lutércio de Oliveira da Cruz sentou-se a apontou um sofá para que Almeida fizesse o mesmo.

– Passei dez anos procurando por ele, planejei tudo o que lhe diria. Queria convencê-lo de que ainda era possível retornar, estava certo de que ele me ouviria...

– Padre Eugênio?

– Meu Bernardo... Meu pobre Bernardo! Oh! Meu Deus! Quando cheguei lá, ele só falava que estava atendendo ao chamado. Tentei fazê-lo ver que seu chamado era a guerra, a luta pelo nosso País. Tentei mostrar-lhe as inúmeras medalhas que ele ostentou antes de enlouquecer... Insisti com ele que ainda havia tempo de voltar. Que sua carreira até então já era motivo suficiente para que seus superiores fossem brandos na pena que lhe seria imposta, antes de reintegrá-lo...

– E ele?

– Oh! Falava-me de amor, de perdão, de fé, Deus e paz. Então, tentou devolver-me a faca. Eu lhe dei aquela adaga quando ele recebeu a primeira medalha. Ele disse que a guardara, por amor a mim, mas que se sentia incomodado em ter consigo o instrumento de tanta dor e sofrimento.

Almeida permanecia calado.

– Eu estava exasperado! Ele é meu único filho homem. E eu, o único filho homem de meu pai. Ao abnegar de sua missão ao meu lado, ele estava destruindo nosso nome.

– O senhor disse isso a ele?

– Ele disse que o único nome que ele se preocupa em perpetuar era o nome de Deus. Desferi-lhe um tapa no rosto, queria acender-lhe o brio de macho, mas ele apenas virou a outra face. Tomei-lhe a faca que ele segurava pateticamente. Lembrei de como ele ficou feliz ao recebê-la. Ameacei-o com ela. Tinha esperança de que ele reagisse. Ele sempre foi muito mais forte que eu. Ainda mais agora que não passo de um ancião... Preferia que ele me batesse até a morte a vê-lo daquele jeito...

– Ele não reagiu?

– Não. Deixou-se ferir como um cordeirinho indefeso. Depois caiu. Foi quando me dei conta da loucura que havia feito. Meu filho! Meu único filho! E eu o matei por que ele abdicou de sua missão!

Almeida levantou-se, dando ordem de prisão ao homem à sua frente. Enfim, pode dizer:

– Não. Tu o mataste porque ele abdicou da tua missão para ele. Da missão dele, só mesmo a morte o afastaria.

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Texto escrito para o 6° Desafio Literário da Câmara dos Deputados - Etapa 10.
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