OIRÀTO OTAR IO - Parte II

Às vezes, nós é que roemos a imaginação de outros. Ou acreditamos seriamente nisso. O Senhor M… fazia ares de estar atento aos detalhes da casa enquanto o corretor discorria o texto decorado sobre o histórico da residência como se já tivesse repetido aquela ladainha milhares de vezes. O estilo é europeu, vitoriano, o primeiro proprietário era estrangeiro e não admitia morar nas casas que encontrou por aqui. O corretor faz o seu papel de corretor e o Sr. M. reflete que, por ser de madeira antiga, pode ter cupins. E ratos. Sentiu um calafrio. Fora obrigado a procurar uma morada provisória enquanto a empresa de dedetização e limpeza exterminava estas pragas de seu imóvel. Ficaria pelo menos uma semana fora de casa. Era pedir muito apenas um local calmo e sossegado para trabalhar? Quase não acreditou no anúncio que oferecia a casa mais que ideal por uma pechincha. Marcou uma visita para descobrir o que havia de errado. A casa tem ratos, cupins, baratas? Não, senhor, foi dedetizada há menos de seis meses. Todo o madeiramento comprometido foi trocado. Então por que do aluguel tão baixo? O corretor pretendia desconversar, mas como era uma pergunta direta que lhe garantiria pelo menos alguma comissão naquele mês fraco, resolveu usar a sua estratégia mais extrema: foi sincero. Bem, não vou lhe enganar, este preço é porque o proprietário foi assassinado nesta casa há alguns anos atrás e as pessoas da região, simplórias e supersticiosas, criaram algumas lendas a respeito. Que tipo de lendas? O de sempre: luzes acesas, barulhos estranhos e vultos durante a noite, coisas do imaginário popular. Mas são pessoas impressionáveis, não creio que seja o caso do senhor. O visitante concordou com um gesto e refletiu que as histórias entre vizinhos tendiam a aumentar como uma bola de neve. A sua sorte era que ele ficaria por pouco tempo e que seria extremamente feliz se não interagisse com ninguém.

A casa ficava na zona rural, mas em uma estrada repleta de sítios relativamente próximos. Depois de uma breve reflexão, o Sr. M. acabou aprovando o local, pois além dela vir mobiliada tinha os atributos que ele procurava. Silêncio, sossego, isolamento. Fechou o negócio naquele mesmo dia, assinou o contrato e pagou adiantado. Além das roupas, levou o computador e o novo equipamento de som, para terminar a música em que estava trabalhando. Não levou telefone celular porque não tinha. Era avesso as interrupções e considerava celulares uma fonte inesgotável e desnecessária delas. Vivia perguntando aos outros: você já reparou como só te ligam para pedir coisas ou em momentos inoportunos? Por isso, todo o seu contato era feito à moda antiga: por correspondência. Havia solicitado que as correspondências fossem reencaminhadas temporariamente para o novo endereço. Juntou todo alimento e bebida que restavam em sua despensa, suficientes para não precisar sair de casa por um longo tempo. Esperava descansar e energizar-se depois de passar por algumas semanas extenuantes. Instalou o equipamento na biblioteca e escolheu o maior quarto para si. A casa era enorme, daria para se perder facilmente em meio aos corredores intermináveis, quartos, sacadas, sótãos e porões. Seria um bom local para uma família grande morar, mas também para os avessos à socialização. Enquanto esquentava o almoço, ouviu a campainha tocar. Incomodado, desligou o fogo. Que diabos! Será que algum vizinho intrometido já o estaria importunando? Havia ficado contente cedo demais? Atravessou o corredor que levada da cozinha à sala de jantar, passou pela sala de visitas e hall de entrada, onde abriu a porta e… não encontrou ninguém. Droga! Na certa algum garoto da vizinhança pregando uma peça. Ao olhar para o chão viu um envelope branco. Correios, já? Não, o envelope estava sem selos. Dentro, uma única folha com apenas uma linha escrita. A SUA VIDA CORRE PERIGO, SAIA DA CASA. Um arrepio subiu-lhe a espinha. Aquilo não era coisa de criança. Era uma brincadeira de adulto, muito sem graça, mas na certa, alguém queria assustá-lo. Imbecis supersticiosos. Voltou para o almoço e depois de um breve cochilo resolveu começar a trabalhar. A melodia já estava quase pronta. Ele a perdera completamente na semana anterior, mas conseguira recupera-la rapidamente de memória. Contudo, o refrão insistia em não aparecer. Escreveu três variações diferentes, mas nenhuma parecia se encaixar. Soavam artificiais e não o trabalho de um artista. Resolveu espairecer um pouco explorando a casa.

Sempre tivera uma queda por sótãos. Amava os filmes estrangeiros onde os eventos fantasmagóricos aconteciam e o charme de ter um recanto escondido dentro de uma casa que já era um recanto escondido. Ao subir a escada, deparou-se com uma porta trancada. Gastou algumas horas e lugares procurando a chave, em vão. Parou quando encontrou um quarto de criança, com brinquedos e tudo. Sentou-se no tapete, brincou com alguns sentindo-se nostálgico. Onde será que a criança que ali dormira, brincara, crescera, estava hoje? Será que já era um homem feito? Ou será que tinha algo a ver com os boatos infelizes da vizinhança? Ao erguer uma pequena caixa de madeira, deixou cair um recorte de jornal. INGLÊS SOLITÁRIO É ENCONTRADO MORTO. Fevereiro de 2006. A matéria falava de ermitão moderno. E que o dono fora espancado até a morte dentro de casa. Sem sinal de invasão ou roubo. Não falava de fantasmas. E não teria sido um fantasma a recortar o jornal e guardá-lo como lembrança. Riu sozinho imaginando um fantasma segurando uma tesoura e papel. Encerrou a exploração e resolveu beber uma taça de vinho. Que virou uma garrafa. Que virou duas. O vinho é o melhor remédio quando o assunto é esquecer as perturbações ou fazer o mais profundo marasmo tornar-se interessante.

Acordou no meio da noite com barulhos abafados. Desesperou-se. Ultimamente, não tivera boas experiências com barulhos noturnos. Impossível haver ratos em uma casa dedetizada recentemente. Estaria o Universo conspirando contra ele? Pé ante pé, andou até a porta. O barulho vinha do térreo. Ao chegar na escada, ouviu o barulho na cozinha. Ao se aproximar, percebeu pelos vãos da porta que a luz estava ligada. Ratos não acendem luzes. E fantasmas acendem? Não, não deveria ser isso. Mas começou a tremer quando caiu em si percebendo que poderia ser um ladrão. No maior silêncio, pegou um castiçal em uma mesa próxima e deu a volta em outro cômodo onde conseguia ter uma visão parcial da cozinha, mas sem ser visto. Andando no escuro, as suas juntas e ossos estalavam a cada passo. Justo numa hora destas, o seu corpo resolvera conspirar contra ele. Mas atingiu o objetivo. Por um instante, a cozinha pareceu vazia. Só por um instante. Um homenzarrão passou de costas carregando uma faca. Dirigiu-se para a pia, onde cortou queijo e salame. Aquele era o seu queijo e o seu salame. O que o Sr. M. poderia fazer naquela situação? O homem deveria ter pelo menos três vezes o seu tamanho. É bem provável que a batida com um castiçal naquela cabeça enorme nem seria notada. Talvez o invasor estivesse apenas com fome. Resolveu observar. Percebeu que o homem movimentava-se com desenvoltura na casa. Sabia onde estavam os pratos, talheres, copos. Abriu uma garrafa de vinho retirada da geladeira. Mas que sacana! Depois, como se pressentisse a presença de alguém, parou e olhou diretamente para o local em que o Sr. M. se encontrava. Com o olhar fixo, esticou o braço direito e apertou um interruptor. O cômodo à sua frente se acendeu. Mas o estranho não viu ninguém lá. No corredor ao lado, o Sr. M. tentava fazer o seu coração bater mais baixo. Correu até a porta da frente o mais rápido e silenciosamente que conseguiu. Estava trancada e sem as chaves. As luzes do hall se acenderam. O Sr. M. só teve tempo de jogar-se na sala de visitas, caindo atrás de um sofá. Acabou batendo o joelho esquerdo na quina de uma bancada e teve de conter um grito de dor. Enquanto xingava em silêncio os mais altos palavrões que conhecia, espiou o homem se dirigir até as escadas e subir para o andar superior. As luzes se apagaram.

O Sr. M. estava preso em uma casa com um invasor mais forte que ele. Lembrou do recorte de jornal. Seria o assassino do antigo dono? Instantaneamente, compreendeu tudo. Aquele homem era a causa dos ruídos e luzes no imóvel que levaram os vizinhos a acreditar em fantasmas. Mas também lembrou do bilhete na porta. Ele poderia ser perigoso. Ou o pior, poderia ser perigoso e aquele que havia escrito o bilhete. Neste caso, o estraho sabia que não estava sozinho na casa, apesar de agir como se não soubesse. No escuro e começando a tremer, as perguntas corriam desesperadas para a cabeça confusa do Sr. M. e as respostas pareciam fugir no mesmo ritmo de lá. Como o invasor entrou ali? Seria ele um assassino ou um mendigo, já que a única coisa que fizera até agora foi comer? E a mais importante: o que o Sr. M. faria agora? Ao tentar levantar-se, apoiou-se na parede e foi sugado para dentro dela. Caiu seco no chão sem entender nada. A parede havia cedido para o lado. Percebeu que era uma parede falsa, uma passagem secreta dentro daquela casa vitoriana. O Sr. M. trouxera uma lanterna que estava na cozinha. Sem o invasor por lá, resolveu ir buscá-la antes de se aventurar no escuro. Na cozinha, viu a bagunça deixada sobre a mesa, fogão e pia. Havia metade de um sanduíche sobre a mesa. O Sr. M. refletiu que seria inseguro se ele fizesse um prato idêntico sabendo que ele mesmo ouvira os barulhos no andar superior. Não queria chamar a atenção do estranho. Engoliu rapidamente o restante do sanduíche e foi para a sala.

A entrada levava a um corredor estreito entre as paredes. Dividia-se em várias direções e o Sr. M. escolheu uma delas. Apesar de abafado e estreito, tinha espaço suficiente para uma pessoa de porte médio andar tranquilamente, talvez até correr, ali dentro. Parou ao encontrar uma fresta na parede por onde passava uma luz suave. Pelo buraco, viu o hall de entrada por inteiro. Continuou andando até encontrar uma pequena escada, onde subiu ao andar superior. No final de um dos corredores havia uma luz forte, saindo de outra fresta. Foi até lá e espiou. Era um dos quartos onde a luz estava acesa. O estanho estava lá, arrumando a cama para se deitar. Deus do céu, pensou o Sr. M., ele vai dormir aqui. Aquela situação já estava ficando complicada demais. Foi quando o Sr. M. teve a sua grande ideia. Mas teria que aguardar que o invasor dormisse.

Duas horas depois, o homem que dormia na cama acordou com ruídos de garras ou dentes arranhando a madeira. Levantou-se de um pulo, ligou a luz e ficou observando. O barulho parou. Olhou para o quarto ao redor e não viu nada incomum. De volta à cama, o ruído recomeçou mais forte. O homeme levantou-se assustado. Parecia que o barulho vinha de outro lugar. O homem olhava para as paredes. O seu rosto era pura desolação, dúvida e raiva. A cena se repetiu a noite toda. O homem, visivelmente irritado, vestiu-se e foi para o andar de baixo. Enquanto andava, percebeu que algo o seguia. Era o barulho de passos, muito pequenos, que paravam quando ele parava, mas prosseguiam quando ele voltava a andar. Foi até a cozinha. Parou diante da mesa com uma interrogação no meio da cara. Algo ali desaparecera. Saiu pela porta dos fundos, usando a chave que tinha no bolso. Logo em seguida, uma prateleira abriu-se e dela saiu o Sr. M.. Foi até a janela e observou o homem afastando-se. Seu plano fora um sucesso.

Na manhã seguinte, o Sr. M. acordou em sua cama. Havia colocado um armário que impedia o acesso externo pela porta cozinha. Mas, apesar disso, não estava bem disposto, alguma coisa não lhe fazia bem no estômago. Passou o dia todo se contorcendo com pontadas de dor. Não conseguiu se concentrar em nada. Tomou os remédios que costumava tomar. Seria alguma dor causada pela tensão ou pelos nervos? Talvez. Mesmo não estando bem, temia pela volta do invasor, e resolveu explorar antecipadamente os acessos secretos da casa. Em uma rede de corredores construída exatamente entre a parede de um cômodo e outro. Quem mandara fazer aquela casa era alguém muito estranho. Nos principais cômodos da casa, havia uma entrada secreta. Desta forma, conseguiu adentrar o sótão trancado. Percebeu o motivo: a porta estava lacrada com tábuas e pregos. Era um quarto-biblioteca, e quem o usava não queria ser incomodado por ninguém. O Sr. M. compreendia bem aquele sentimento. Resolveu que passaria a dormir ali, seria o seu quarto do pânico caso o invasor voltasse. Após uma limpeza no ambiente, levou as suas coisas para lá. Manteve somente a comida perecível na geladeira, e nada mais denunciava a sua presença naquela casa.

A noite chegou e o Sr. M. estava preparado para ela. Havia descansado o dia todo e a adrenalina minimizava as dores no estômago. Estava pronto para a guerra. Faria qualquer um se arrepender de ter escolhido entrar ali. Mas ninguém apareceu naquela noite. Nem mesmo na seguinte. E as dores só faziam aumentar. No terceiro dia, sentindo-se enfraquecido enquanto esperava dentro das paredes da cozinha, escutou forçarem a porta. Por uma pequena entrada de ar viu o vulto do estranho. Desistiu após algumas tentativas. Melhor assim, pensou o Sr. M.. Foi quando ouviu o barulho da porta abrindo no hall de entrada. Correu até lá, a tempo de ver o homem, já dentro da casa, trancando a porta e guardando a chave no bolso. Droga. O Sr. M. esquecera completamente de que o homem havia pego a chave que ele deixara na porta da frente. Mas a noite recém começara.

O homem trazia mantimentos, garrafas de água e outros itens que guardou na cozinha. Era um cara de pau. Como poderia fazer aquilo? Ou o estranho o ignorava de propósito ou então desconhecia a sua existência. O Sr. M. não quis se arriscar a descobrir a resposta. Estava determinado a expulsá-lo. Esperou anoitecer para continuar o seu plano. Depois que o homem foi dormir, entrou na cozinha e percebeu que o homem havia jogado toda a comida do Sr. M. no lixo e substituído pela que ele trouxera. Que audácia a deste estranho! Resolveu acordar o homem fazendo mais barulho. Desta vez ele corria pelas paredes, arranhando a madeira com uma faca. Pulava sobre tábuas que ecoavam por toda a casa. Sentia prazer vendo o desespero daquele homem. Mas o estranho reagiu. Começou a dar socos nas paredes. O Sr. M. reagia aumentando a algazarra, seguindo o estranho aonde ele ia. Pela sala, cozinha, quartos. Quando percebeu que ele não tinha mais para onde ir, o Sr. M. ficou silencioso. Sabia que o silêncio, a partir de agora, seria o pior inimigo do invasor. Voltou para o sótão exausto e jantou os alimentos que havia deixado lá e se deitou. Era apenas uma questão de tempo.

Acordou no dia seguinte sentindo-se muito mal. Estava fraco. Tremia e suava frio. As pontadas no estômago agora eram intermitentes. A dor era lancinante. Mal conseguiu levantar-se. Parecia que ia morrer. Vomitou uma pasta gosmenta e malcheirosa. Desesperou-se quando pensou que se morresse no sótão ninguém o encontraria. Arrastou-se pelas paredes, precisava beber um pouco de água fresca. Vomitou outras três vezes antes de chegar a cozinha. Não conseguiu levantar-se para alcançar a pia. Arrastou-se para a porta da frente. Ao aproximar-se dela, viu uma carta no chão, provavelmente colocada embaixo da porta pelo carteiro. Trazia o seu nome escrito. Mesmo com a vista embaçada e as mãos trêmulas, abriu e a leu. Um olhar de pânico o atingiu. Só não foi maior que o que teve ao virar-se e ver o estranho enorme o observando perto da escada. Era o seu fim. Desmaiou.

Acordou em um quarto de hospital. Sozinho, zonzo, gosto ruim na boca. Depois de algum tempo, uma enfermeira entrou. Trazia com ela o estranho. Este apresentou-se se desculpando com o Sr. M.: era o herdeiro do falecido proprietário. Morava no exterior e por um engano da imobiliária não havia sido informado que a casa estava alugada. Contou que o Sr. M. estava no hospital há três dias, em tratamento para desintoxicação. Mostrou-lhe a carta que o Sr. M. recebera e que graças a ela conseguira salvar a sua vida.

PREZADO SR. M…

A dedetização foi concluída em menos tempo que o previsto. O senhor já pode retornar à sua residência. Os nossos agentes fizeram uma vistoria completa em seu imóvel e perceberam uma grande quantidade de pacotes de veneno vazios jogados na sua despensa, próximos às prateleiras dos alimentos. Recomendamos seriamente que o senhor não armazene veneno perto dos alimentos, por motivos óbvios. Algum alimento pode ter sido comprometido. Aliás, este foi o único indício de ratos encontrado na sua propriedade. Conforme a sua especificação, verificamos o forro da casa procurando por mau cheiro ou vestígios de roedores, porém nada foi encontrado.

Cordialmente,

EMPRESA DEDETIZADORA BOMFIM