AS MÁQUINAS
“Eis aqui a sabedoria! Quem tiver inteligência, calcule o número da fera, porque é número de um homem; e esse número é seiscentos e sessenta e seis.” (Apocalipse, 13, 18)
A dor daqueles seres já não era suportável. Seus corpos mutilados esbanjavam uma aparência que causava repulsa e aversão. Contorcidos agonizantemente em suas aflições buscavam formas alternativas de amenizar seus sofrimentos e anseios; perdidos em suas lutas diárias no mundo das sombras continuavam dispersos procurando atônitos os caminhos que revelam a verdade...
As Máquinas
(Um conto escrito por Ravell Souza Lopes)
Tudo começou quando um cyber-cientista e engenheiro construtor de circuitos eletrônicos desenvolveu um projeto pioneiro no campo de pesquisa na revitalização do corpo humano. Ele afirmava que através de implantes de componentes eletromecânicos regidos por micro-chips instalados em nosso organismo era possível devolver os movimentos naturais do membro afetado restabelecendo a normalidade na vida daqueles que um dia a sociedade classificou como deficiente físico.
Especialistas apoiavam a hipótese de que robotizar pessoas poderia abrir uma lacuna imprescindível no relacionamento cada vez mais conturbado entre os indivíduos de um sistema social preconceituoso e conservador; no entanto não descartavam o sucesso que aquela descoberta poderia ocasionar no cenário científico e tecnológico.
Mesmo depois de anos de amargura aquelas pessoas resolveram arriscar tudo num convite inesperado que cada membro daquele estimado grupo recebeu pessoalmente das mãos do Sr. Willy Thompson...
“Outra vez a ciência é utilizada como instrumento de Deus na cura de doenças e acidentes que insistem em destruir a vida dos homens na Terra. Após anos de pesquisa, foi descoberta uma forma de devolver as movimentações naturais do corpo com o auxílio da tecnologia. Com o fim das próteses removíveis será possível levar uma rotina normal sem dores e complicações postas em prática por um sistema de medicina completamente antiquado. O que lhe oferecemos é uma chance única de integrar a primeira equipe de testes em cobaias humanas utilizando próteses que são regidas por micro-chips implantados diretamente no corpo proporcionando uma performance satisfatória baseada em um avançado sistema eletrônico integrado e completamente seguro.”
Em pouco tempo o Sr. Willy finalmente conseguiu reunir cerca de vinte pessoas dispostas a apostar na nova metodologia idealizada e aplicada pelos misteriosos membros de sua equipe. Contudo, era necessário que cada integrante concordasse plenamente com algumas cláusulas do contrato estabelecido por ele: não saber a localização exata do laboratório; nem ter contato posterior com os responsáveis pela cirurgia. Um pedido razoável, porém perturbador quando aplicado a algumas condições.
Durante duas semanas esses pacientes fizeram diversos exames em vários hospitais até que fossem devidamente “aprovados” pela comissão e transferidos secretamente para um campo de pesquisa instalado em um deserto qualquer dos EUA.
Após a grande viagem todos acordaram repentinamente em uma sala completamente ofuscada por uma luz difusa. Havia várias macas espalhadas, equipamentos hospitalares, médicos e enfermeiros caminhando em todas as direções com o rosto completamente coberto por um capacete azul com viseiras espelhadas. Tanto do lado direito quanto do lado esquerdo dos capacetes dava para ver emblemas do Governo Federal e da Força Aérea dos EUA. Todos haviam sido devidamente sedados para não reconhecer o caminho até as instalações.
Aos poucos, cada membro recrutado acordava-se sem entender o que se passava em torno de si. Ficavam perplexos, deitados em suas macas tentando compreender a existência de tudo aquilo. No entanto, quanto mais pensavam menos entendiam aquela estranha situação.
A tortura inexplicável daquele momento foi quebrada quando o Sr. Thompson entrou agitado naquele cômodo balançando freneticamente os braços para atrair a atenção de todos...
- Senhores! Devo expressar minha imensa satisfação por cada um de vocês estar presente esta noite em minhas dependências contribuindo de maneira direta para o avanço da ciência e da tecnologia. Acredito que muitos devam ter dúvidas quanto aos procedimentos e ao fato de terem sido sedados durante o transporte, mas quero dizer que tudo foi isso para sua própria proteção. Afinal, não queremos problemas posteriores, não é mesmo?
Um leve ar de riso ficou vagando expressamente em seu rosto...
- Sr. Willy quando voltarei a andar?
- Logo em breve Sr. Lambert. Não queremos apressar nossos cientistas. Um único erro e as conseqüências seriam catastróficas.
- E quando seremos operados? (questionou outro paciente)
- A partir de amanhã. Por hora quero que descansem e se recuperem da viagem e dessa estranha tontura que estão sentindo. Estaremos monitorando cada um de vocês e finalizando os procedimentos pré-operatório. Agora boa noite! Preparem-se para entrar para a história.
Um clima de suspense podia ser experimentado no ar. Cada um sentia o peso de suas decisões, no entanto todos concordavam em prosseguir com base no que acreditavam e tinham esperança em conseguir...
No dia seguinte...
O sol despontou-se em sua plenitude. O clima era escaldante naquele deserto, porém mesmo àquela hora da manhã já existia uma movimentação intensa nas dependências da unidade misteriosa...
- (...) Isso é uma grande falta de respeito. Só porque somos aleijados não significa que podem nos tratar assim.
- Calma Sr. Lambert. Não se trata de privilégios. Este é um grupo de vinte pessoas e todos serão submetidos à cirurgia por ordem alfabética.
- Eu sou o mais velho filho. Não posso esperar.
- Lamento, são ordens superiores.
- Ah, vão se danar seus porcos açougueiros. Nunca irão saber dar valor a vida.
- Bom dia Mike! O que se passa?
- Bom dia Sr. Thompson! Nada de mais apenas o nosso amigo aqui, o Sr. Lambert, acordou de mau humor.
- Seus tolos! Sou muito mais do que podem imaginar. Não julguem um livro só pela capa estragada e páginas amareladas.
- Sinto muito se meus homens estão incomodando, mas estamos passando por momentos bastante estressantes. Tudo irá se esclarecer em breve.
- Assim espero. (um breve momento de silêncio) Como será a cirurgia?
- Começará dentro de uma hora. Os pacientes serão chamados por ordem alfabética e irá se submeter aos nossos experimentos. Primeiramente iremos analisar a região que será trabalhada, ou seja, o local exato onde cada um apresenta as lesões, mutilações e deformações. Então com base nos exames realizados até o momento implantaremos as próteses fixas interligando os circuitos eletrônicos com nervos, músculos, ossos e tendões. Depois dessa etapa o próximo passo é a implantação subcutânea do chip. Introduziremos cada equipamento por meio de sondas que pela corrente sanguínea os guiará através de controle remoto até o local desejado. Daí inicia-se o processo final da operação. Cada chip é dotado de um avançado sistema sensitivo que permite que nós, aqui do lado de fora, possamos fixá-lo adequadamente através micro grampos a alguma estrutura óssea realizando conexões neurotransmissoras por meio de raios gama. Após todo esse processo vocês simplesmente apagarão por dois dias. Dois dias mergulhados em sono profundo. Durante esse período estaremos configurando todo o sistema e ativando os chips adequadamente para que possam fazer aquilo que estão programados, mover suas novas próteses através do pensamento.
- Impressionante! Simplesmente magnífico!
- Estou muito ansioso para que chegue o momento dos resultados finais; onde poderemos avaliar todo o processo em si. Mas para isso precisamos da sua compreensão.
- Pode deixar. Doutor, só mais uma pergunta...
- Sim?
- Como esses chips serão carregados para funcionar em tempo integral?
- Muito simples. Eles serão carregados automaticamente com energia liberada pelo corpo humano. É essa força que liberamos exponencialmente que recarregará suas sensíveis baterias eletroquímicas proporcionando-lhe trabalho ininterrupto por todo o resto de sua vida. Sr. Lambert, prepare-se para uma nova era!
Seus olhos brilhavam, seu coração batia descompassadamente. Sua euforia era visível e o Sr. Thompson juntamente com os numerosos membros da sua equipe vangloriavam-se a cada segundo por conseguirem definir um novo rumo para a humanidade.
O que aquelas pessoas faziam trancadas naquela base militar secreta era imprimir um ritmo alucinante nas ciências tecnológicas daquele ponto em diante. Porém como tudo que é desconhecido eles jamais poderiam imaginar as conseqüências de tais fatos não apenas para o resto da sociedade, mas principalmente para cada um daqueles profissionais e cidadãos envolvidos naquele projeto. Às vezes o valor do progresso contínuo exige um preço muito grande que ninguém está preparado e disposto a pagar. Especialmente quando envolve muitas pessoas e os melhores cientistas do mundo. Até o final da experiência eles iriam se questionar se realmente tanto tempo de pesquisa e altos investimentos iriam valer à pena, no entanto nenhum pensava em algo do tipo nesse momento...
Uma hora mais tarde cada um dos vinte integrantes foram chamados progressivamente em ordem alfabética, um a cada hora. Eles eram encaminhados para uma sala mais ampla repleta de camas, equipamentos e divisórias. Um verdadeiro batalhão de cientistas, construtores eletrônicos, médicos e enfermeiros entravam em ação para as várias horas de cirurgia. Segundo o cronograma de planejamento deveriam ser aproximadamente três dias de operações minuciosas e dois dias de recuperação onde todas as atenções ainda se faziam banais. Por isso o Sr. Willy Thompson reuniu todo o pessoal da sua equipe antes dos procedimentos...
- Caros Doutores! Como representante oficial deste projeto secreto posto em prática pelo Governo norte-americano é meu dever lembrar-lhes que além do futuro da ciência o que está em jogo é a reputação de nossas carreiras. Também é necessário salientar que estamos lhe dando com vidas, assim é nosso dever privar pelo bem estar daqueles que confiaram à continuidade de sua existência em nossas mãos. Portanto, quero que pensem e analisem cada movimento que fizerem a partir deste instante, pois cada um deles será o diferencial entre o sucesso e o fracasso absoluto desta experiência. E... acho que nem é preciso lembrar que o menor erro possível traria conseqüências arrebatadoras. Confio cegamente em cada um aqui presente; sei que recrutei os melhores e assim faço dos seus olhos os meus, das suas mãos as minhas e dos seus conhecimentos os próximos passos para a humanidade.
Uma salva de palmas ecoou pelos corredores que davam acesso à sala principal. Lá dentro os pacientes já devidamente sedados aguardavam inconscientes o milagre da ciência moderna. Os demais esperavam ansiosamente o desenrolar dos fatos. Todos entraram confiantes no centro cirúrgico e finalmente deu-se início ao momento que tanto esperavam.
Cinco dias depois...
- E então, já reconfigurou o sistema?
- Quase Sr. Thompson. Interligar milhões de neurônios com as descargas elétricas geradas pelos chips não é como havíamos previsto.
- Eu sei. Faz quase dois dias desde que terminamos os implantes e nesse momento deveríamos estar...
- Sr, veja! O primeiro deles está acordando!
- Quem é? Quem é?
- É a Sra. Sophia! Paralitica desde um acidente de carro aos vinte e quatro anos.
- Ótimo! Vamos das às boas vindas a nossa menina.
Correram desesperadamente para a sala de recuperação. Cada paciente estava conectado a um verdadeiro emaranhado de cabos que monitoravam os sinais vitais enviando milhões de dados para a central de processamento escondida no subsolo daquelas instalações.
- Como está se sentindo Sophia?
- Onde estou? Quem são vocês?
- Sou o Dr. Thompson, cientista e construtor de circuitos eletrônicos. A senhora foi submetida a um dos meus experimentos. Não está sentindo algo diferente em seu corpo?
- Apenas muita tontura e uma dor de cabeça fortíssima. (ao levar ligeiramente sua mão para a face Sophia sentiu uma estranha saliência em sua testa, mais precisamente entre seus olhos) O que é isso doutor?
- Um micro chip que foi implantado para mexer suas pernas de acordo com estímulos liberados por suas ondas cerebrais. Lembra que a senhora sofreu um acidente de carro e ficou paraplégica?
- Sim, mas...
- O que foi Sophia? (um silencio mortal invadiu o espaço)
- Continuo sem sentir minhas pernas.
Um calafrio cortante penetrou na espinha do Sr. Thompson. Sua boca ficou sêca em uma fração de segundos e sua carne finalmente tremeu diante do terror explicito em seus olhos. Certamente não esperava ouvir uma declaração dessas após tanto tempo de pesquisa e trabalho. Com sua voz, agora visivelmente acanhada, questionou...
- O que a senhora está sentindo?
- Algo muito esquisito. Não sei explicar exatamente o quê, mas... nunca senti isso antes.
Ao pronunciar estas palavras Sophia fez algo que nunca imaginou que seria capaz. Levitou por um instante e caiu bruscamente no chão. Ainda atordoada viu quando os outros acordaram de seu sono profundo e começaram a realizar coisas bizarras também.
O Sr. Thompson olhava incrédulo para aquele bando de máquinas deformadas fora de controle. Pernas e braços mecânicos agitavam-se num bailar aterrorizante. Cada pessoa recrutada havia desenvolvido habilidades espantosas provocadas pela mutação gerada pela exposição intensa aos raios gama liberados pelos chips. Órgãos e membros afetados que tiveram sua estrutura química alterada pela destruição intensa das células do corpo davam uma aparência surreal àqueles seres...
Sr. Willy Thompson, um grande cientista e construtor de circuitos eletrônicos. Idealizador de uma nova fórmula para acabar com os obstáculos estabelecidos e impostos pela vida; descobriu de forma trágica o preço pelo progresso da ciência. Agora um ser condenado a viver preso em um universo macabro na companhia de suas novas e inquietantes “máquinas” que apresentam as mais aterrorizantes e inimagináveis funcionalidades.
“... e então... Conseguiu que todos: pequenos e grandes, ricos e pobres, livres e escravos tivessem um sinal na mão direita ou na fronte. E que ninguém pudesse viver se não fosse marcado com o nome da fera ou com o numero do seu nome” (Apocalipse 13,16 e 17)