O Reino de Muzib
Durante muito tempo a morte devastara os países. Jamais se vira peste tão fatal e terrível. O sangue era a sua encarnação e sina. Diziam que a dor era insuportável, o pior pesadelo dos homens, seguida da dor vinha descoloração, febre, paralisia de algumas partes do corpo, diminuição da frequência cardíaca, coma, então... parada cardíaca.
Muzib, nobre senhor feudal, era destemido, sábio e sagaz, por isso, não temia tais falácias. A intensidade de suas expressões de firmeza, de imutável resolução, mostravam com que rigor detinha seus feudos e esposas ante cavalos e criados. O nobre usava um desmedido casaco negro de peles, seu extenso cabelo grisalho e nariz pontudo destoavam a pele pálida como a lua cheia. Seus empregados sempre corriam para preparar-lhe a refeição matinal e naquela manhã não era diferente. Graças ao seu olfato apurado, concomitante com sua fome colossal, pressentiu o cheiro de uma suculenta carne avermelhada, típica de seus banquetes. Naquele dia, estava a esperar um sobrinho do sul de Gales para o banquete noturno, vinha a negócios a mando do pai.
O senhor feudal sentou-se à mesa e degustou um bom peixe, acompanhado de um grande pão de trigo. Serviu-se pelo menos de três porções grandes de peixe, um pouco mais do que o usual do nobre. - Satisfeito, meu senhor? No que mais lhe posso servir? – disse uma das criadas. Ele a dispensou com a cabeça e deitou-se em um grande móvel aveludado que estava no meio do aposento. Após um pequeno cochilo, para o seu espanto, continuava ávido. - O que poderia ser toda essa fome? - pensara. Pegou uma sineta, que estava em cima de uma pequena mesa ao lado do móvel, e a balançou. - blim! blim! blim! – bimbalhou o pequeno sino. Em poucos instantes uma criada veio aos tropeços pelos degraus e batendo as grandes portas de madeira do aposento, isso tudo para confirmar-se prestativa.
- Pois não, Monsenhor? Desculpe a demora, é que eu estava a cortar o peru quando ouvi a sineta e ainda tive dúvida devido à música que vem do salão principal. Não que eu não aprecie, mas os sons, o senhor sabe, às vezes não escutamos o que parece que escutamos – disse a criada.
- Ainda estou faminto! A de preparar algo mais para saciar o meu apetite – entoou o nobre.
- Claro, meu senhor! Tudo para lhe agradar meu mestre e adorado amo. Não me demoro – disse ela abandonando o aposento às pressas.
A dispensa do castelo estava fortemente provida. Tais precauções eram premeditadas pelo nobre que ouvira prematuramente os rumores de uma peste contagiosa ao sudeste das ilhas. Não que se importasse. Que o mundo exterior se arranjasse por si, ele havia administrado suprimentos para o seu reino. Enquanto isso, nada valia para ele pensar, ou afligir por sua causa. O nobre providenciara também para que não faltassem diversões lá dentro. Havia bardos, músicos e bailarinos. Havia beleza, comida e vinho em fartura em seu castelo de mais de quatrocentos e sessenta quilômetros quadrados, uma extraordinária magnificência de pedras achatadas e muros de mais de nove metros.
- Sua refeição majestade – disse a criada, depositando-a em uma pequena mesa a sua frente. Ao lado de uma taça de vinho francês envelhecido, um voluptuoso pernil de peru adornado por fatias de legumes verdes. Muzib devorou-o com voracidade, seus dentes pontudos rasgavam a carne, e com a língua num ato penoso lambia até o último dos ossos em busca de um sabor excêntrico.
Andar pelos salões era atividade comum para ele, pois sentia os músculos enrijecidos pela manhã e, além do mais, apreciava. Havia no castelo uma série imperial de cinco salões. As sucessões de salas do palácio formavam uma longa e reta perspectiva em que quando as portas se abrem, de par em par, não há obstáculo à perfeita visão de todo o conjunto. Uma obra que mostra o amor do nobre pelo fantástico, aliás, pelo majestoso. À direita e à esquerda, no meio de cada parede, uma enorme e estreita janela gótica abria-se para um corredor fechado que levava a uma imensa sacada. As janelas eram providas de vitrais escarlates, da cor de sangue, já os aposentos eram ornamentados por tapeçarias argentas em sua maioria, os bordados e veludos que decoravam os móveis eram de um cinza escuro, quase negro. Candelabros iluminavam os grandes corredores e as grandes salas. Nos aposentos a luz provinha de uma trípode com um braseiro que projetava seus raios pelos vitrais e assim iluminava deslumbrantemente o quarto, produzindo inúmeros aspectos vistosos e fantasiosos.
No salão principal, do qual Muzib passeava agora, além de uma enorme mesa de mais de uma centena de lugares, um gigantesco relógio de madeira repousava na parede que dava para o norte. Seu pêndulo oscilava para lá e para cá, com um tique-taque vagaroso e monótono. E quando o ponteiro dos minutos concluía o circuito do mostrador e a hora ia soar, emanava dos seus pulmões de ouro um som claro, elevado, agudo e excessivamente musical, tão enfático que encantava a todos os criados e hóspedes do castelo. O senhor feudal tinha gostos característicos, sabia escolher cores e efeitos. Desprezava ornamentos em moda. Seus desenhos eram audazes e um tanto sombrios, dentre as suas paixões estavam os lustres bárbaros e as poltronas aveludadas. Muitos o julgavam louco. Mas seus cortesãos julgavam-no, simplesmente, excêntrico.
Por ocasião da vinda do sobrinho e da grande festa, decidira ele mesmo orientar, em sua maioria, os adornos mutáveis para o evento. Não havia dúvidas de que muitas de suas escolhas eram grotescas, mas era assim que queria, então, seria. Com o entardecer veio um céu avermelhado, coberto por nuvens negras, que se transformaram em uma chuva torrencial acompanhada de trovões.
- O duque do sul, sobrinho de Muzib, chegou! Abram o portão, rápido! Abram o portão! – gritava um dos guardas. O duque estava encharcado, aparentemente muito cansado e com uma palidez rara, parecia doente, notou o guarda. Tinha cabelos castanhos encaracolados, era alto, mas não muito forte, todavia um rapaz inteligente, bem educado e assaz hábil com a espada, como mandavam os costumes e criação nobres. Uma pequena comitiva de três soldados o acompanhava, todos vestiam armadura com o estandarte do reino do sul.
- Hei de ver meu tio, o nobre Muzib, nos encontramos no banquete – disse para a comitiva. Ao adentrar o salão principal viu a grande festa que estava para começar, os músicos e bailarinos se preparavam, e, as moças, já ensaiavam passos coreografados umas com as outras. Em uma grande mesa, no centro, eram colocadas as guloseimas. Havia carne de carneiro, porco, gado, peru e peixe. Diversas frutas como maçãs, melancias e tâmaras. Além disso, iguarias feitas com batata, tomate, aveia e trigo. Para beber, cerveja, vinho e chá estavam dentre os principais a serem oferecidos. E, por fim, em pequenas vasilhas, especiarias de produtos vegetais e aromáticos como cravo, canela, sal, açafrão e mel para condimentar as iguarias do banquete.
- Parem a música! Eu lhes peço a vossa atenção. Pois, lá quem chega é o meu sobrinho, o duque do sul, uma salva de palmas – bradou o senhor feudal. Todos aplaudiram e fizeram reverências, ficando rapidamente apoiados em um só joelho para o duque.
- Agora, sim. Que a festa comece! Música, por favor! – clamou o nobre. Então levou o sobrinho até o seu aposento para que pudesse trocar as vestimentas molhadas por secas. Movimentos lentos e solenes, como se quisessem despojar e não permutar de vestimentas, satisfação insuportável numa representação teatral de um simples ato, quê ato! Oh, que angústia... Conversa, dança e sussurros. Concomitantes viraram em convulsão, suor latente, paralisia, coração agitado... Silêncio.
O nobre senhor feudal e o duque do reino do sul, seu sobrinho, voltavam lentamente ao salão principal. Pareciam dispersos em conversas internas. O duque vestia agora um colete avermelhado, calça de uma espécie de linho e uma bonita bota negra. Muitos iam chegando-se à mesa e servindo-se da impressionante variedade de exóticos sabores. Entre os nobres havia marqueses, condes, barões, comendadores, senhores, cavaleiros, dentre outros. Esbaldavam-se todos em meio a iguarias tão deliciosas, amigos sadios e joviais dentre os cavalheiros e damas parabenizavam o Grão-Duque pela festa maravilhosa. Palpitava febrilmente o coração da vida e a folia perdurava no salão.
Havia muito de belo e muito de atrevido no salão, de esquisito até por assim dizer, algo de imoral de fato, a indecência tomava alguns que pareciam, deliberadamente, fornicar aos berros em determinados cômodos e corredores do mesmo andar, não obstante, causava aversão em muitos. O relógio apontava a meia-noite e o seu carrilhoar, de som agudo e excessivamente musical, tão enfático que encantava a todos no castelo como já mencionado anteriormente, agora, anunciava o início de um novo dia, de um pesadelo. Começou com os gritos de fornicação doutros. Candelabros que se apagavam e o salão que ficava a cada instante mais escuro. O relógio, o carrilhoar, o tempo, o silêncio deixou tudo claro. Os convidados reconheceram estar ali presente uma peste ou demônio que se apoderara de muitos. Pareciam possuídos, a pele antes amarelada tornara-se acinzentada como pedra e os olhos tornaram-se perdidos e sem vida. Muzib e seu sobrinho, que haviam saído para tomar ar na grande sacada, caminhavam calmamente em direção ao salão principal e a música extravagante da orquestra; cordas, oboés e percussões, parecia o eco de seus passos largos. Tinha os lábios lambuzados de sangue, vestimentas tingidas por um vermelho vívido e natural do ser humano, fazendo com que todos que assistiam à cena entrassem em pânico. Nobres, cortesãos, entre outros, corriam e gritavam desesperadamente, todavia logo eram capturados, já que os infectados pela epidemia eram maioria no castelo. Aquilo, que ali penetrara, era como uma infecção demoníaca, cujo fim era alimentar-se de morte, assim dizimava homens e mulheres, nobres e criados. Um a um, foram os nobres, foliões e servos nos salões principais e corredores, orvalhados de sangue, atacados em momento de refeição e com o mesmo propósito, por uma fome que não findava. Um adendo para que as carnes de carneiro, porco, gado, peru e peixe da festa extinguiram-se, mas a avidez persistira. O relógio, já não marcava as horas, pois ninguém se importava com o tempo. Não se ouvia mais música, apenas gritos destoantes de desespero. Microorganismos pelejavam por vermes, perante a fome que não findava, alimentavam-se de sua própria substância física. O direito da fome dominou o reino e não havia mais diferença hierárquica dentre os gulosos. A vida virara morte e era possível ver nos olhos.
Longe dali, um criado caminhava com as últimas forças que lhe restavam, conseguira fugir e, por sorte, encontrou um grupo de viajantes.
- Ajuda! Ajuda... Por favor. Eles... eles não estão mortos. Seus corpos, lar de vermes e imundícies. Não há vida em seus olhos, oh, nem calor em sua pele ou batimen¬tos em seu peito... Suas almas são negras como o céu noturno. Eles caminham pela terra, sentindo o aroma do doce sangue dos vivos, banqueteando-se sobre os nossos ossos... Maldita horda, famintos em busca de carne, carne humana... – sussurrava o criado.
- Ele precisa de cuidados. Está delirando em febre, pobre homem. Tem um castelo ao norte, lá, certamente, poderão ajudá-lo, fica a apenas um dia e meio daqui. – disse um dos viajantes. – Ao norte, rápido! Temos de salvar este homem!