A menina dos cachinhos dourados

O fim de um relacionamento marcante de certa forma o deixa vazio, perdido, a esperança de um futuro melhor se perde, é como se do nada um buraco se abrisse e você fosse tragado, se vendo preso e sufocado embaixo da terra, seus verdadeiros amigos como os bombeiros, aqueles que vão cavar até resgatar você. E foi um desses amigos que me deu a dica que me ajudou bastante e, não foi nada demais, um dica bem corriqueira por sinal:

- Para se achar é preciso voltar as origens, ao ponto de partida, fazer coisas que você tinha deixado de fazer.

Voltar as origens talvez fosse recorrer a minha mãe, mas ela não mais pertence a esse plano espiritual, faleceu quando eu só tinha dois anos de idade. A causa principal do fim do meu relacionamento foi a incompatibilidade de crenças, ela evangélica fervorosa, eu um pária sem religião que flertava sempre com a mediunidade, recebia revelações e quando elas aconteciam, não dava créditos, pensava sempre que era apenas uma coincidência, nada além disso. No começo as diferenças não impediam o amor, ia com ela todos os domingos na igreja, ainda não tinha conseguido me sentir conectado com Jesus, ainda não conseguia aceitar, isso foi incomodando ela aos poucos, até o dia em que caí na asneira de contar meus dotes mediúnicos e algumas histórias, elaachou que eu tinha algum encosto, depois disso fomos nos afastando, deixei de ir na igreja com ela, queria ser aceito do jeito que sou, não fui.

Tendo que voltar as origens, coloquei algumas roupas na mochila, consegui dois dias de folga no trabalho e fui para a cidade da minha infância, foi lá que eu tive o meu primeiro contato com o sobrenatural, queria acreditar que era apenas uma coisa de criança com a imaginação fértil, mas até recentemente venho tendo esses contatos, queria continuar acreditando que tudo não passa de uma grande coincidência ou então fruto da imaginação, mas com o fim do relacionamento, não quero mais fechar os olhos a isso, quero entender, como bem meu amigo falou: “voltar as origens”.

No começo do fim, achei que ainda tinha volta, que era apenas um afastamento temporário, três meses depois desembarco em uma cidade que não visitava a muitos anos. Não sabia por onde começar a procurar, achei que assim que pisasse o solo da cidade, as imagens tomariam a minha cabeça como acontece nos filmes, mas nada aconteceu. Também, aquele terminal de ônibus nada representou para mim, tinha que visitar as escolas, foi lá que tudo começou.

Minha mãe era chefe de um terreiro de umbanda, uma alta graduação que a fazia ser bastante respeitada, recebia vários espíritos, mas isso era apenas histórias que me contavam, desde pequeno eu tinha um contato íntimo com a mediunidade, mesmo sem me dar conta disso, algo bem difícil de explicar. Cheguei na minha primeira escola, estudei ali meus primeiros anos de vida, foi aqui que com meus quatro anos de vida, a primeira coisa estranha aconteceu.

Hoje, no lugar da escolinha, havia uma casa com muros verdes, do outro lado da rua, a casa aonde eu morava, gostava de ficar sentado na janela, vendo o movimento das pessoas e o vôo das pipas, aproveitava para ver se a “nêga” estava lá na porta da escola, eu morria de medo daquela menina, era um medo totalmente irracional e, não sabia explicar, meus familiares não sabiam explicar. Ela era uma criança normal como todas as outras, mas quando a via, gelava todo, tremia, tinha um pavor tremendo, corria e me escondia, não queria ir mais para a escolinha, meu pai não sabia mais o que fazer, mas foi a minha avó que veio com a idéia:

- Vamos levar o menino para a mãe D`ângela.

Mãe D`ângela era muito amiga da minha mãe, quando minha mãe faleceu, ela que ficou como a chefe, adquirindo respeito e conhecimento, minha avó tinha a convicção que ela saberia como me ajudar.

Não me lembro como que foi o ritual em casa de mãe D`ângela, só que eu tinha ficado com muito medo e o ambiente era bastante escuro. O que eu sei era o que minha avó me contou anos depois, quando eu já era crescido, com certeza ficaria impressionado se escutasse aquilo ainda criança.

- Mãe D`ângela tinha conseguido entrar em contato com a sua mãe, ela nunca aceitou o fato de ter deixado um filho tão pequeno, seu espírito tinha encostado com o da menina, seu intuito era vigiá-lo, cuidar de você, mas inocentemente, ela não percebia que estava fazendo mal. Mãe D`ângela pediu que ela aceitasse isso e fosse embora, mesmo a contragosto, foi isso que ela fez.

Mesmo sabendo disso apenas vários depois, o que eu notei após visitar a mãe de santo, foi que o meu medo daquela menina desapareceu, simplesmente se foi, pude continuar indo na escola sem medo, estava me sentindo livre, era uma sensação excelente, mas essa sensação durou apenas três anos. Andando pela rua, estou me dirigindo ao segundo colégio, que foi aonde encontrei novamente com o sobrenatural.

Quando terminamos eu não aceitei de bom grado, aos olhos das pessoas formávamos o casal ideal e de certa forma éramos unidos. Achei que ela terminou com medo que eu terminasse, mas essa hipótese nunca passou pela minha cabeça, gostava dela demais para tomar essa decisão tão difícil. Durante alguns dias fiquei na minha, estava bem tranquilo, mas a saudade aos poucos começou a me atormentar, cada ponto da cidade me trazia alguma lembrança dela, essas lembranças ofuscavam toda e qualquer lembrança do meu passado, era como se existisse apenas eu e ela no mundo, sufocante.

Liguei muito para ela, corri atrás, mandei flores, ela estava mudada, um paredão de gelo tinha sido erguido entre nós, mas após mostrar as alianças e que eu realmente tinha intuito de casar, ela mudou um pouco, se abriu um pouco mais, mas ainda ficava com aquele papo de querer ficar sozinha, fazer algumas coisas que tinha deixado para trás, até que um dia ela me pediu um tempo, queria segundo ela: “sentir a minha falta”, se achava sufocada, foi doloroso ter que me afastar, evitar de olhar para aquele lindo rosto, mas no fundo eu tinha uma esperança de que ela fosse sentir a minha falta, fosse me ligar dizendo isso, querendo reatar, eu ainda estou a espera disso, não obcecado, apenas esperando, enquanto isso venha em busca das respostas.

O segundo colégio se encontra em pleno funcionamento, muita coisa parece ter mudado de lugar, mas as cores da fachada continuam as mesmas: branco e azul. Senti um aperto no estômago assim quecomecei a subir as escadas, memórias de brincadeiras, lembrei de um amigo que havia falecido, acidente de carro, havia sido uma comoção na nossa sala, lembrei do nome da diretora e até como era o laboratório de ciências, mas não era isso que eu queria contar, preciso alcançar o pátio primeirio, foi ali que encontrei com a cachinhos dourados.

Ainda estava nos primeiros anos do colégio, deveria ter volta dos sete ou oito anos, ela não era da minha turma. Todo o recreio brincávamos de chutar latinhas, cinco cortes e pique-pega, sendo esse último a nossa diversão favorita. Olhando o pátio agora, ele parece bem menor que era na época da minha infância, embora ele seja enorme, isso não tem como negar. Ali as velhas meses de totó e de ping-pong, já devem ter sido trocadas algumas vezes. Experimento sensações estranhas, me sinto sufocado, um gosto acre na boca, não sei como explicar.

No pique-pega, eu era sempre o mais rápido, era muito agitado, elétrico, as professoras ficavam loucas comigo, só fui pego uma vez. Era sempre no recreio que eu me encontrava com a cachinhos dourados e tal como era com a menina negra de alguns anos antes, eu morria de medo. Para complicar a situação, ela sempre corria atrás de mim na brinacadeira e eu fugia dela como o diabo foge da cruz. Ela sempre com uma cara fechada e de poucas palavras, até aquele dia, de nenhuma palavra, esse medo irracional me fazia lembrar daquela frase: “O espírito da sua mãe estava encostado com o da menina”. Seria mesmo que minha mãe cometeu o mesmo erro? Nessa época ainda não sabia disso, mas hoje sei que não, acho mais que foi um delírio infantil.

Então foi quando tudo aconteceu, no pique-pega, fugia dela desesperadamente como sempre,mas o tênis desamarrado acabou com a minha invencibilidade, estava desabado no chão quando ela se aproximou, não estava sorrindo, não estava séria, apenas um olhar perdido. Eu estava muito amedrontado, não conseguia gritar, não tinha nenhuma criança perto, seus cachinhos brilhando, caindo pelos ombros, sua mãe branca como a neve alcançou o meu braço e me tocou:

- Te peguei. - Ela sussurrou.

Na hora ela segurou meu braço por alguns segundos, sua mão era muito gelada e fez tremer o meu corpo inteiro, seu olhar agora era penetrante, a encarei por um segundo, depois não pude mais. Ela retirou a mão do meu braço e se foi para sempre. Depois desse dia nunca mais vi a cachinhos dourados, perguntando aos meus colegas de pique-pega, ninguém se lembrava dela, era como se eu corresse sozinho pelo pátio, ela não existia, era mais uma aparição do sobrenatural na minha vida.

Uma lágrima cai do meu rosto, o sufocamento se torna um abraço caloroso, sinto um conforto, uma brisa e uma esperança de um bom futuro. Agora caio de joelhos no chão. Sim, algo bom está para acontecer, sinto o meu celular vibrar, acabo de receber uma mensagem:

“Sinto a sua falta, me procure”.

Mensagem da minha ex namorada, um milagre. Seria mais uma dessas coisas do sobrenatural agindo sobre mim? O abraço se dissipa e eu preciso voltar para minha casa, para a minha ex e encarar o meu futuro, sem medo de espíritos ou o que quiser continuar me assombrando.